O médico da alma que partiu achando que foi amado

Controverso pelo modo como encarava a homossexualidade ou doenças como os distúrbios alimentares, nunca se vergou e lutou, até ao final, pelo fim da ‘desvalorização do outro’, tendo morrido aos 91 anos e não atingido o marco dos 100 como ambicionava.

Dormia entre cinco e seis horas por noite. Mesmo com 80 anos, António Coimbra de Matos continuava a trabalhar muito, a fumar bastante e a descansar só o mínimo necessário. Às oito da manhã já estava a conversar com o primeiro paciente e por regra só terminava as consultas pelas 20h30, às vezes às 22h. Talvez por isso, uma característica que imediatamente saltava à vista no seu rosto eram as olheiras bem marcadas. Se sempre dormiu pouco, nos últimos meses passava as noites em branco, pois recusava-se a tomar soporíferos. Mas a energia não lhe faltava, e continuou sempre a dar consultas – até há bem pouco tempo.

«O que é que eu ia fazer? Calçar as pantufas. Só escrever livros e artigos?», questionou numa entrevista ao Expresso. «Deixei de dar aulas na Faculdade de Psicologia porque fui obrigado. No hospital também. Aos 61 e 60 anos, respetivamente», recordou.

Recentemente interrompera a atividade, primeiro por causa de um problema de saúde, depois por causa da pandemia. Continuava com planos para o futuro e tencionava regressar às consultas em setembro. A família e os amigos foram, pois, apanhados de surpresa pela sua morte.

Natural da Lixa, em Felgueiras, onde vivia um tio médico a cuja casa as mulheres da família «iam parir», passou a infância na aldeia da Galafura. 

A mãe definia-o como o filho que mais lhe tinha custado a criar. «A partir dos dois, três anos, só sabia de ti quando tinhas fome. Porque de resto andavas aí pela aldeia. Quando tinhas fome vinhas a casa», dizia-lhe a progenitora. O pai estava ligado à agricultura, trabalhando em grandes propriedades. E muitas vezes era o pequeno António quem ia «duas ou três vezes por ano ao Porto negociar o vinho que produzia». Fiel às suas raízes já na idade adulta dedicou-se a produzir vinhos.

Mudou-se para a Invicta aos dez anos e mais tarde aí se formou em Medicina, casou e teve o primeiro filho.
«Fui bom aluno. A pior nota que tirei foi a Anatomia. Foi o único 10 que tirei na vida. Achei que meter nos cornos aqueles nomes todos de ossos e artérias era um teste à estupidez humana», elucidou. Embora não tivesse «grandes paixões por nenhuma das áreas», costumava auxiliar os professores e instigaram-no a ser cirurgião. «E eu deixei-me ir. Ainda estive seis meses a trabalhar num serviço de cirurgia cardíaca, foi assim que comecei. Mas não passava do jeito. Era uma coisa demasiado pragmática, não me seduzia muito», confessou.

Acabou por especializar-se em Psiquiatria. Orgulhava-se de ser o médico psiquiatra com a cédula número 34 de 1958, quando nem psicólogos existiam. «A raiz do termo psiquiatria é ‘medicina da alma’. Psique – alma, atre – médico. Médico da alma. Psicologia é o estudo da alma. A psiquiatria é mais antiga, começa no século XVII, enquanto a psicologia é uma ciência do século XIX», gostava de contar. Em 1959 decidiu rumar à capital. Lisboa já tinha sido a sua casa durante o segundo ano do curso. «Não fiquei porque baixei muito as notas. Foi o ano em que fui pior aluno. Tinha outros interesses. Estudei menos, faltava às aulas, andava aí numa boa-vai-ela», declarou ao SOL.
Candidatou-se a um lugar de assistente hospitalar do Hospital Júlio de Matos (Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa) quando começou a entender que auxiliar quem mais sofria psicologicamente seria o caminho a trilhar. 
«Fui a concurso em Outubro de 1959 e tomei posse no dia 2 de Janeiro de 1960. Nessa altura já tinha o meu filho mais velho, que é médico, e instalei-me no Júlio de Matos com um salário razoável».

Teve, ainda assim, uma surpresa. «Quando vim para Lisboa achava que a Psiquiatria no Porto era muito má e tinha ideia que o Júlio de Matos era o tal hospital de ponta. Passado pouco tempo vi que pouca diferença fazia do Conde Ferreira e dos outros hospitais do Porto. Nessa altura decepcionei-me bastante com a Psiquiatria e comecei a voltar-me para a psicanálise», a disciplina de que se tornou um dos pioneiros e, mais tarde, um dos decanos em  Portugal. Há nove anos, recebeu o título de Distinto Professor de Psicanálise, nos Estados Unidos, e foi condecorado pelo Presidente da República, em 2013, como Grande Oficial da Ordem da Instrução Pública.

 «Aos alunos dizia que a psicanálise antiga era como o condutor que estava sempre a olhar pelo espelho retrovisor. Ora, eu quando vou na estrada tenho de olhar para a frente», disse há mais de uma década numa entrevista ao semanário Sol. 

Iniciou a sua carreira na docência em 1982, tornando-se, a partir de 1990,  professor associado convidado do Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA).

«Fiz-me psiquiatra, para não ter de ir ao psiquiatra; psicanalista, na procura de me entender; professor, com a finalidade de aprender», pode ler-se no artigo em que o ISPA – instituição de Ensino Superior onde lecionou até aos 83 anos, quando deixou de lhe apetecer dar aulas – assinalava a atribuição do título de Doutor Honoris Causa ao antigo dirigente do Centro de Saúde Mental Infantil e Juvenil e do departamento de pedopsiquiatria do Hospital D. Estefânia, onde realizou o seu trabalho hospitalar até se reformar.

A psicologia do amor

Coimbra de Matos era um «otimista por natureza, acreditava no amor e nos afetos como elementos fundamentais na vivência humana», salientou o Presidente da República, numa nota de condolências publicada no site oficial da Presidência da República.

«Foi um homem à frente do seu tempo, para quem as gerações mais novas eram uma fonte de inspiração e aprendizagem», escreveu MarceloRebelo de Sousa.

O psiquiatra não discordaria. Ele própria contava que fora uma analisanda quem lhe tirara as medidas. «Tive uma analisanda — professora de Psicologia — que um dia me disse que tinha descoberto que eu era religioso, que o meu deus era o amor. Acho que é verdade. É a coisa que nos mantém, que nos entusiasma e pelo qual vale a pena lutar». Considerava, acima de tudo, que «a depressão é uma consequência da desvalorização do outro».

Embora respeitadíssimo pelos seus pares e venerado pelos seus alunos e discípulos, não era de modo algum um homem consensual. Contestava a autoridade, fazia afirmações contraditórias, enfrentava poderes instalados – grandes ou pequenos. Quando chegou ao Júlio de Matos, por exemplo, indignou-se com o tratamento que os enfermeiros davam aos pacientes, a quem pediam para irem buscar e fazerem recados. Dos 102 enfermeiros do hospital, 101 fizeram queixa dele, recordava. Viam-no, descreveu mais tarde, como «um psiquiatra meio maluco que volta e meia gritava com eles». Coimbra de Matos, por sua vez, via os hospitais psiquiátricos como «coisas muito antiquadas, quase medievais» e insurgia-se contra esse estado de coisas. 

«Também não estou de acordo com muitas coisas que você faz, às vezes exagera um bocado – a prova é que os doentes fogem e antes não fugiam. Mas também acho que os enfermeiros não têm razão nenhuma», disse-lhe o diretor da instituição hospital quando era diretor do serviço de agudos. Os seus processos pouco ortodoxos nem sempre eram bem compreendidos. «Uma das coisas que eles diziam é que eu até me deitava na relva a jogar à bola com os doentes lá dentro do hospital e que aquilo era uma indisciplina total».

De resto, essa irreverência e falta de consideração pelas normas era uma das suas marcas d’água. Quando estava na tropa em Abrantes, um dia requisitou um carro de combate para ir à vila tomar café. Quando foi chamado a prestar contas, disse que se não saísse do quartel enlouquecia – e ninguém queria um psiquiatra louco.

Combatia os estereótipos e desconfiava dos que aparentavam ser ‘demasiado normais. «Os mais malucos de todos são os normopatas. Aqueles todos certinhos são os mais doentes», defendia. «Os que têm um grão de loucura são  muito mais saudáveis».

Como o SOL salientou em 2014, antes de abrir o consultório também passou pelo divã: fez «cinco anos de análise», o que considerava «uma experiência necessária para ser psicanalista». Via na terapia «uma coisa de colaboração, em que o analista colabora com o analisando. O analisando não é sujeito a sacrifício nenhum». E, se havia resistência do paciente,  «era mais um problema do psicanalista que outra coisa». Sem papas na língua, dizia que «não há doentes resistentes, há é psicanalistas incompetentes» que «põem os problemas de tal maneira que o doente fecha-se».

Contudo, também houve ocasiões em que sentiu dificuldades durante o processo. Por exemplo, quando um adolescente.

Sentiu que não conseguiu ajudar um paciente e sugere que, quando tal acontece, se deve sugerir que o doente procure outro especialista. «Isto é uma coisa que põe muito em jogo a personalidade das duas pessoas e há situações do par analítico que não têm solução», recordava, tecendo o quadro de «um homem com uma agressividade muito grande» que levou a que ficasse sem paciência para levar a cabo o processo. «Isto connosco não corre. Você é um homem de facto muito agressivo e eu aguento mal a sua agressividade, também me irrito’», fazendo o paralelismo com um paciente que era vaidoso ao ponto de ter compreendido que não conseguiria auxiliá-lo devidamente.

«Quando um indivíduo está a exibir a sua inteligência é porque não está muito convencido da sua inteligência. É como ver uma mulher que esteja convencida que é bonita. Não se exibe muito. São geralmente aquelas que se sentem mais feias que se exibem nuns preparos esquisitos», afirmava o homem que teve como mestres João dos Santos – definido, no site que lhe foi dedicado, como criador da moderna Saúde Mental Infantil em Portugal e o grande impulsionador da mudança de paradigma da Psiquiatria Infantil -, Francisco Alvim – especializado em Neuropsiquiatria, foi o primeiro Presidente e o primeiro diretor da Revista Portuguesa de Psicanálise – e Hanna Seagal, psicanalista britânica com a qual trabalhou variadas vezes e que  foi presidente da British Psychoanalytical Society.

Num século em que se condenam as terapias de reconversão LGBTI, Coimbra de Matos não se inibia de contar a história de um paciente que teve, pai de dois filhos, que não aceitava a orientação sexual. «A maior parte das vezes a pessoa que aparece já se instalou na sua identidade gay, portanto vem para afinar algumas coisas. (…) Lembro-me de outro doente. Esse mudou porque esse era homossexual mas não se sentia bem nessa pele. Achava que tinham conseguido levá-lo por aquele caminho mas não era a sua orientação verdadeira. E mudou» após 14 anos de terapia com a periodicidade de quatro sessões semanais, por vezes cinco. «Esse curou-se totalmente». assumindo que, na sua ótica, a homossexualidade podia ser um problema que os doentes precisavam de solucionar.

Para além disso, a sua posição em relação à identificação e ao tratamento dos distúrbios alimentares – doença que  conduziu a 4.485 hospitalizações entre 2000 e 2014, segundo dados apurados por um grupo de investigadores do CINTESIS, em colaboração com a Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP) – podia ser igualmente reprovada. «Os distúrbios alimentares não são assim tão importantes quanto isso. São empolados por alguns médicos, psicólogos e serviços hospitalares, que vivem à custa disso e criam depois a sua própria clientela. O problema que se põe é a depressão. Há mais depressões».

«Os meus prazeres passam fundamentalmente por estar com as pessoas de quem gosto, mas também gosto de comer, de passear, de beber um bom vinho, de ir a um bom espectáculo, de ler um bom livro», narrava o médico que encarava a vontade de comprar um Mercedes descapotável, há cerca de 20 anos, como «sinal do início da velhice» e, apesar de ter desistido da ideia, via-a como «uma maluqueira como outra qualquer».

Autor de variados livros, o hedonista assumido, em entrevista ao SOL, evocava Vária. Existo porque fui amado, publicado em 2007, e, confrontado com a pergunta «Sente que foi uma pessoa amada ao longo da vida?», respondeu: «Acho que sim».