Quão urgente é vacinar crianças e jovens contra a covid-19?

Os cientistas discordam quanto ao risco do vírus continuar a circular entre crianças e adolescentes. “Não há ninguém no mundo que não vá ser infetado”, diz Pedro Simas. Mas “mais vale ser infetado tendo tomado a vacina”.

Com cada vez mais países a vacinar contra a covid-19 a faixa etária acima dos 18 anos, incluindo Portugal, aproxima-se o momento de vacinar menores. Ainda há muita gente mais velha por inocular – entre os 25 e os 49 anos menos de 40% já receberam pelo menos uma dose de vacina, entre os 50 e os 64 foram menos de 80%, enquanto acima dos 65 a taxa bate os 95%, segundo dados da Direção-Geral de Saúde (DGS). Mas rapidamente se colocará a questão de como incentivar a vacinação de menores – os EUA até montaram campanhas de vacinação com brindes à portas de escolas, enquanto a Grécia oferece vouchers de 150 euros a jovens e adolescentes que sejam vacinados, utilizáveis em viagens de avião, comboio e bar, acomodação para férias ou atividades culturais – ou até de quão crucial é este passo para chegar à tão desejada imunidade de grupo, sobretudo com novas variantes mais transmissíveis a surgir, como a variante Delta. Basta fazer as contas para nos preocuparmos: se é preciso ter 85% da população imunizada para ter imunidade de grupo, como consideram cada vez mais cientistas, só os menores de 15 anos compõe mais de quase 14% da população portuguesa, segundo os dados do INE.

No entanto, antes dessa discussão, é preciso esclarecer o que entendemos por imunidade de grupo, considera o virologista Pedro Simas. Se falamos de parar por completo a transmissão do vírus na comunidade – as vacinas são extremamente eficazes a impedir hospitalizações ou mortes por covid-19, mas não tanto a impedir a infeção –  ou da “a proteção da vida humana e a não disseminação exponencial do vírus”, nota o investigador do Instituto Molecular da Universidade de Lisboa (IMM), ao i.

Para chegar a esse segundo cenário, “não é preciso vacinar crianças, pelo menos dos zero aos seis anos”, considera Simas. E, já no que toca a expandir a vacinação a menores de 18 anos, parece-lhe uma progressão natural, para garantir que todas as doses de vacina disponíveis vão sendo utilizadas e compensar a hesitação quanto à vacinação em faixas etárias mais velhas. “Mas não é que precisemos necessariamente de cobrir 85% ou 90% dos adolescentes. Vamos ver”, avalia. É que, à medida que os programas de alguns países vão avançando, nota-se um certo aumento das infeções com a Delta, sobretudo nas faixas etárias por vacinar, certo, mas as hospitalizações e morte vão se mantendo-se estáveis ou até diminuindo, com os mais vulneráveis protegidos. E “a partir do momento em que, consistentemente, mês após mês, não houver internamentos, estes problemas desaparecem todos. Quando há um problema tem de se resolver. Se o problema deixa de existir qual é a motivação para vacinar crianças?”, questiona o cientista.

É um debate que não está fechado. Já para Miguel Castanho, colega de Simas no IMM, não há qualquer dúvida que a aposta em vacinar crianças e adolescentes será essencial para regressar à normalidade. “Se nunca chegarmos a vacinar crianças e jovens, existe sempre uma fração muito grande da população onde pode circular o vírus”, salienta o investigador, ao i. “Se juntarmos a isso o facto de as vacinas não serem 100% eficazes para infeção, embora sejam muito eficazes contra doença grave, isto quer dizer que vamos estar sempre com o credo na boca, como se costuma dizer”.

“Teremos um problema latente que, embora possa não ter a forma que tem hoje, mas que continua a ser uma preocupação para a saúde pública e economia”. Por um lado, pelo constante envio de turmas e professores para casa, nota o cientista, numa altura em que os surtos em escolas se tornarem uma das grandes fontes de contágio – aliás, dos mais de 300 surtos de covid-19 ativos em Portugal na terça-feira, mais de 120 deles eram contexto escolar, informou a DGS ao i. Por outro, pelo problema da chamada covid prolongada, ou seja, dos crescentes relatos de sintomas – incluindo coisas como inflamação cardíaca, depressão, fibrose pulmonar e dificuldade cognitiva – muito depois dos pacientes deixarem de testar negativo. Suspeita-se que as crianças são menos suscetíveis a tal, mas já há bastantes casos registados, e continua sem se saber exatamente qual a proteção que as vacinas oferecem face ao problema.

“Há muita gente que teve uma forma ligeira da doença, tiveram sintomas como cansaço e a febre, aquilo passou no tempo normal. Mas depois foram ficando as falhas de memória, desorientação, a incapacidade de se concentrarem, o cansaço prematuro…  E há pessoas que se estão a interrogar neste momento sobre quando é que aquilo vai passar”, alerta Castanho. “E se muita gente ficar doente ou com sequelas isso paga-se em termos económicos também”, continua o investigador, acrescentando que, sem um foco em apostar em vacinar crianças e adolescentes, “a qualquer altura existem massas de vírus circulantes que podem ir provocando doença moderada a muita gente. Ou sofrer alterações, criando as novas variantes”.

 

Vírus a circular

Ainda assim, uma coisa é o surgimento de uma variante da covid-19 que seja mais contagiosa, como a Delta, que torna a corrida entre os programas de vacinação e o vírus ainda mais complicada, outra é o surgimento de uma variante que ponha em risco significativo a nossa imunidade, considera Pedro Simas. Exemplificando que, em tempos mais normais, cada indivíduo com mais de seis anos costuma ter entre duas a três infeções virais respiratórias anualmente. Entre elas, nota o virologista, entre 10% a 15% são causadas por coronavírus comuns em humanos, que causam pouco mais que uma constipação.

“Esses vírus são endémicos, já estão connosco há muitos anos. Em tempos causaram uma pandemia, agora são endémicos, sazonais”, salienta Simas. Fazendo as contas, significa que há em média entre dois a quatro milhões de infeções por coronavírus endémicos só em Portugal. “Porque é que nunca apareceu uma variante que quebrasse a imunidade de grupo? É que esta pandemia aconteceu porque o vírus surge de uma transmissão zoonótica, é um novo vírus”, explica. “Repare no caso da gripe, que, entre todos os vírus respiratórios, é o que tem mais mutações que resultam em variação antigénica”. Ou seja, numa mutação que afeta os nossos anticorpos. “Isso não quebra a imunidade celular e a imunidade de grupo. Os eventos pandémicos, como com a gripe suína e aviária, surgiram por transmissão de outras espécies. Na história, nunca houve um vírus da gripe sazonal, que está endémico, que causasse mais do que surtos e pequenas epidemias”

“Há outonos e invernos em que há mais gripe, isso é normal. Nós controlamos isso com a vacinação de grupos de risco, e o vírus circula na mesma”. Para o cientista, é isso que o futuro reserva à covid-19, que o se adapte e aprenda a viver entre humanos, sobrevivendo sem causar grandes estragos – o problema é conseguir chegar a esse ponto.

“Temos de estar atentos, temos de ser prudentes. Mas este perigo de que falam, de ter de vacinar a população quase toda em Portugal para que não surjam variantes que ponham em causa a nossa imunidade, não me parece previsível. Acho que a natureza vai seguir o seu curso”, considera Simas. “Não há ninguém no mundo que não vá ser infetado por este vírus ao longo da vida, quer esteja vacinado ou não. Este vírus não vai desaparecer”, alerta o virologista. “Mais vale ser infetado tendo tomado a vacina”. E neste ponto já todos concordam.

 

Pais e rebeldia

O maior problema no que toca a inocular crianças e adolescentes pode ser mesmo a adesão. Em países mais avançados na vacinação contra a covid-19, como Israel, os EUA ou o Reino Unido, a tendência é de uma quebra da adesão em função de quanto mais baixa a faixa etária, estando os os mais jovens menos expostos ao risco.

“Isso é porque sentem o problema mais longe. No início da pandemia associou-se muito esta doença a um problema de pessoas mais velhas”, lamenta Miguel Castanho. “É algo humano creio, as pessoas que mais sentem o perigo são quem mais quer uma solução. Mas é claro que quando chegamos aos adolescentes, quanto mais nas crianças, as regras do jogo já não são bem essas, porque eles fazem o que os pais mandarem”.

“Tudo dependerá se os pais levam os filhos à vacinação ou não. Aqui é que é difícil prever o que vai acontecer, por causa dos movimentos antivacinas”, continua o cientista do IMM.

Aliás, nos EUA, um dos grandes polos do movimento negacionista, vêm-se casos incríveis, de adolescentes que se rebelaram, mas, em vez de se beberem, terem relações sexuais ou saírem à noite às escondidas dos pais, optam por se vacinar contra vontade dos seus pais. Às vezes, esses instintos de revolta até se alinham. “Os meus amigos vão dar uma festa e convidaram-me. Mas depois perguntaram: ‘Estás vacinada?’. Então não pude ir. Magoou”, queixou-se uma jovem de 15 anos da Florida, que a mãe proibiu de tomar a vacina, ao New York Times. O assunto está a reabrir velhos debates éticos, com os diferentes estados americanos a imporem diferentes regras sobre o controlo que os pais têm sobre a saúde dos filhos. “Quando pais discordam entre si, quem é o árbitro? A que idade são as crianças capazes de fazer as suas próprias decisões de saúde, e como é que isso deve ser determinado?”, questionava o jornal nova-iorquino. Muito em breve, poderemos fazer as mesmas questões em Portugal.