“A pandemia teve efeitos na saúde que perdurarão muito além da duração da pandemia”, defendem médicos

“Os adiamentos continuam a ser uma realidade em quase um terço dos serviços, com as consultas a serem as mais penalizadas”, concluíram a Ordem dos Médicos, a Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares e a Roche.

Quase dois terços dos médicos consideram que os doentes não-covid foram profundamente impactados pela pandemia e pelas opções feitas. Esta é uma das principais conclusões do estudo O impacto da pandemia COVID-19 e as medidas de recuperação necessárias, levado a cabo pelo Movimento Saúde em Dia.

A entidade composta pela Ordem dos Médicos, a Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares e a Roche entrevistou quatro administradores hospitalares, 315 médicos e 153 doentes inscritos em associações. Naquilo que diz respeito aos desafios gerados pela pandemia, os primeiros não esconderam que foi árduo gerir equipas condicionadas pelo número de elementos disponível e pelo número de casos de covid em doentes e nas próprias equipas. Por outro lado, deu-se o aumento dos custos associados a higienização, equipamentos de proteção individual e em transformações de serviços em alas covid. À sua vez, também não escondem que tiveram de lidar com obstáculos na prossecução da missão de tratar os pacientes.

Deste modo, para o futuro, sugerem as seguintes medidas: a revisão dos modelos de capacidade de resposta em cenários de contingência, ou seja, por exemplo, as instituições devem rever limites na capacidade de internamento; o foco mais acentuado em patologias como as do foro oncológico cuja "recuperação" pode estar comprometida; o investimento num acompanhamento diferenciado e na gestão de proximidade das doenças crónicas – como a hipertensão, a diabetes ou o cancro; a flexibilização do modelo de gestão interdepartamental, pois "a pandemia ensinou que modelos rígidos não são compatíveis com realidades dinâmicas que desafiam a oferta instalada dos serviços de cuidados de saúde"; a persistência "em modelos de maior e melhor coordenação regional para maximização da oferta com eficiência máxima"; o aprofundamento da articulação de cuidados pré-hospitalares, hospitalares e continuados e a revisão do modelo de financiamento dos hospitais "baseado somente em volume e não em valor", na medida em que o "agravamento da 'conta de exploração' em tempos de covid coloca os hospitais numa forte pressão, sendo que nalguns casos, no limite em termos de sustentabilidade".

Naquilo que concerne os médicos, dois terços consideram que os doentes não-covid foram profundamente impactados pela pandemia, sendo que a maioria admite que é frequente/muito frequente os doentes não procurarem cuidados de saúde de que necessitam ou, quando os procuram, ser já após agravamento severo. Neste sentido, metade garante que a qualidade dos atos clínicos realizados foi muito ou extremamente afetada.

É de referir que, com exceção da renovação de prescrições, todos os atos médicos foram afetados, com as cirurgias a destacarem-se. Entre estas, aquelas que se encontram relacionadas com doenças oncológicas foram as mais impactadas. Por isso, estes profissionais de saúde sugerem a criação de medidas reativas à pandemia – para recuperar situações relegadas para segundo plano, que "ficaram para trás", incidindo especialmente nas consultas, rastreios e exames, e prestando especial atenção a doenças oncológicas e cardiovasculares – e medidas dirigidas a problemas estruturais da saúde – tendo em conta a qualidade de trabalho dos médicos, deve aligeirar-se a carga de doentes por meio da contratação de mais profissionais de saúde e minimizar o trabalho burocrático/informático através da contratação de pessoal administrativo e, ainda, proceder ao melhoramento dos equipamentos e à agilização dos processos que já existem.

"Os adiamentos continuam a ser uma realidade em quase um terço dos serviços, com as consultas a
serem as mais penalizadas", lê-se, sendo que esta realidade – organizada por meio de um "sistema de prioridades" – afeta mais as consultas de seguimento e check-up, os exames ou meios de diagnóstico complementar e terapêutica e a referenciação para especialidades. As áreas menos impactadas são as cirurgias programadas, os internamentos e os pedidos e renovações de receitas médicas. É de referir que os médicos dividem-se sobre quanto tempo mais a pandemia durará, mas só cerca de um terço acredita numa normalização até ao final do ano. Por conseguinte, explicitam que "a pandemia teve efeitos na saúde que perdurarão muito além da duração da pandemia" e "os atos clínicos que ficaram em atraso por causa da pandemia não vão poder ser recuperados sem um reforço de profissionais
de saúde (médicos e enfermeiros)". 

Do lado dos doentes, percebeu-se que 4 em cada 10 doentes crónicos – 3,5 milhões em Portugal, de acordo com dados da Federação Nacional de Associações de Doenças Crónicas (FENDOC) – sentiram um agravamento da sua doença. Destes, 21% não procuraram cuidados médicos. Entre aqueles que o fizeram, nem todos tiveram uma experiência positiva, sendo que 37% tiveram sentimentos de insatisfação com os cuidados de saúde recebidos, abandono e menor atenção. Entre os 21% que não procuraram os serviços de saúde, 46% referem ter receio de contrair o novo coronavírus nos mesmos e 27% apontam o tempo de espera como entrave.

Por outro lado, quem vai ao encontro desta linha de pensamento são os 42% daqueles que, sentindo-se doentes, não procuraram cuidados de saúde, admitindo que tiveram receio da pandemia e que em situações normais teriam procurado cuidados médicos. "Só aproximadamente 20% dos doentes está otimista quanto a uma normalização até ao final do ano. Quase metade não arrisca prognóstico", constata-se, sendo que "o agendamento de consultas e cumprimento do horário são muito valorizados, para evitar aglomerações e aumentar a eficiência no atendimento", insistindo na importância de rastreios/campanhas de sensibilização tendo em vista a deteção atempada da doença e do acompanhamento psicológico/cuidados de saúde mental. Atualmente, metade dos inquiridos afirma que, no atual contexto, recorreria a cuidados de saúde em caso de necessidade. enquanto mais de um terço admite que só o faria se o caso fosse grave.

É de lembrar que, no passado dia 24 de março, a FENDOC apresentou uma proposta para a criação do estatuto do doente crónico. O documento foi criado e subscrito por dez associações e “tem como objetivo garantir que todas as doenças crónicas têm o mesmo tratamento de base, bem como igualdade de direitos naquilo que é transversal a todas as doenças crónicas”, como é possível ler em comunicado. As prioridades são a definição da doença crónica, a definição dos níveis da doença, a atualização da lista das doenças crónicas existentes em Portugal e a criação da base legal que permitirá o reconhecimento e a proteção da “Pessoa com Doença Crónica”, por meio de um regime jurídico-legal.

Já as associações de doentes solicitam "o estabelecimento de protocolos com o setor privado, sob forma de vaucher para a realização de exames complementares no privado, com correspondente financiamento do setor público, a priorização de consultas e atos médicos associados à reabilitação, recuperação, fisioterapia e fisiatria, podendo envolver, em termos de cuidados mais genéricos, parceria com o sector Social, com correspondente financiamento do setor público, a recuperação das medidas inscritas no plano nacional de saúde promulgado pouco antes do início da pandemia", assim como o "aproveitamento do papel das autarquias no modelo de maior comparticipação e participação do poder local no sector da saúde", o desenvolvimento de "campanhas de sensibilização para procura de cuidados de saúde assegurando a segurança e higiene nos equipamentos de saúde" e a "promoção de ações de sensibilização e rastreio de patologias, nomeadamente na área do cancro".