Inglaterra. Há nevoeiro sobre a Mancha, o continente está isolado

Em Londres, recordação de um livro sobre ingleses, a sua idiossincrasia, o seu fantástico complexo de superioridade, o seu ímpar sentido de humor e capacidade de se rirem de si próprios. Páginas revisitadas de A Terra é um Planeta Onde Existe a Inglaterra…

LONDRES – Gosto da Inglaterra. Aliás, gosto muito da Inglaterra. Há qualquer coisa nos ingleses que me fascina. O quê? A resposta não é fácil, if I may say so… Por um lado, talvez aquele absurdo complexo de superioridade. Oh!, you know, old chap… Earth is the planet where England stands. Era isto que eu queria dizer: A Terra é o planeta no qual existe a Inglaterra. Francamente extraordinário! Ou, invertendo a frase de Woody Allen, o mais inglês dos americanos, no que ao humor diz respeito: «Não têm qualquer complexo de superioridade, já sabem que são superiores». Façam a experiência: peguem num alemão, num italiano, num português (se quiserem), e deixem-nos durante três anos num acampamento de sarauís, ali para os lados da cratera de Tenoumer, na Mauritânia. Regressem ao final do tempo estabelecido. Que verificam? Qualquer deles se transformou num autêntico beduíno. O alemão pode continuar braquicéfalo e com o cabelo cor de palha, arrastando os erres a falar, mas levanta-se ainda de noite para ir ao poço buscar água para toda a tribo. O italiano pode arregaçar as mangas da dishdasha para gesticular a torto e a direito chamando pela mamma e pela madonna, mas leva as cabras aos espinheiros como o mais sensato dos tuaregues. O português pode ter posto toda a gente a dizer foda-se e a cuspir para o chão, mas é um obediente condutor de camelos, avançando a passo lento pelos trilhos convencionais do sahel.

Agora, refaçam a experiência: peguem num inglês e deixem-no três, cinco, vinte anos no mesmíssimo acampamento dos mesmíssimos sarauís, ali, como já especifiquei, para os lados da cratera de Tenoumer, na Mauritânia. Regressem ao final do tempo estabelecido. Que verificam? Os beduínos aprenderam a jogar cricket; um deles funciona como valete pessoal do inglês; o inglês continua a fazer a barba pela manhã e a vestir-se como se fosse fazer uma caminhada pelas charnecas do Cheshire, esse belo condado cerimonial e não-metropolitano. Além disso, não dispensa o chá às cinco da tarde e grita Ta-Li-Hoo a plenos pulmões sempre que monta uma pileca qualquer.

Estão a perceber a diferença? Bem, não há dúvida, isto merece uma quadra de John Nicholson, o poeta de Airedale: «The bugle sounds, our otter hounds/At 3 o’clock in the morning/Left Bingley fair, for the Bridge on the Air/With a loud Talihoo, as a warning». Esta história do deserto fez-me sede: vou beber uma pint de lagger e já volto.

O que um inglês é capaz de fazer

Eis-me de volta para falar agora de Robert Falcon Scott. O capitão Robert Falcon Scott é um caso raro de um inglês que falhou a sua epopeia e, mesmo assim, saiu dela como um herói. Ora, como é do senso comum, os ingleses lidam mal com as derrotas. Rule Britannia! Britannia rule the waves… e por aí fora. O nosso bom Robert Falcon Scott, teimoso como qualquer inglês que se preze, fixou-se na ideia de ser o primeiro homem a atingir o Polo Sul. Saiu de Londres no seu navio, o Terra Nova, no dia 1 de Junho de 1910. E atingiu o Polo Sul, sim senhor, mas precisamente uma semana depois de o norueguês Roald Amundsen lá ter colocado a bandeirinha com a cruz escandinava em fundo vermelho.

Robert Falcon Scott também terá ficado vermelho de indignação, mas isto já sou eu a supor. Um dos membros do seu grupo, talvez não Edgar Evans ou Lawrence Oates, mas sim Dr. Wilson, o médico da expedição, soltou muito provavelmente uma imprecação em voga na época:

– Well, I’ll be damned!, ou algo do género, mais própria de um cavalheiro do que de um marinheiro, e regressaram a casa. Ou melhor: tentaram regressar a casa, mas morreram todos pelo caminho. Há várias teorias sobre os despojos de Robert Falcon Scott. Gosto daquela que diz que no bolso do seu casaco foi encontrado um papel com uma frase escrita pelo seu punho: «Fiz isto para mostrar aquilo de que um inglês é capaz». Mesmo depois de morto, Robert Falcon Scott foi ordenado cavaleiro. O rei Jorge V, que num gesto profundamente britânico mudou o nome da Casa Real de Saxe Coburgo-Gotha para um muito menos pomposo e germânico Windsor, terá considerado que para uma empreitada como a de atingir o Polo Sul mais semana menos semana não era relevante. De qualquer forma, aquele papelinho no bolso de Scott valia bem o título de Sir.

Saltemos do Pólo Sul para Birmingham. Birmingham é uma cidade confusa. Estive lá várias vezes e uma delas era quase Natal. Fazia um frio de gelo que teria agradado o próprio capitão Robert Falcon Scott. Gosto de contar esta história. Centenary Square: duas horas da manhã. Um homem ocasional é dono da praça. Ignora o vento em lâminas que abre brechas nos lábios e nos cantos dos olhos. A praça está deserta: só ele no centro. E eu ao longe.

De pé, viola nas mãos, camisa de manga curta aberta no peito. Dedilha as cordas num frenesi enlouquecido, o som toma conta de todos os espaços, para lá de Paradise Circus, Victoria Square e New Street, ecoa no volume dos edifícios modernos e espelhados. Uma solidão obstinada. Foi aí que me lembrei de uma outra frase, muito antiga: «De cada vez que julgas que um inglês está a ser ridículo, ele está simplesmente a ser sublime». É impossível deixar de gostar de um povo que tem tamanha coleção de frases sobre si mesmo.

Reginald!

Outra figura inglesa que me fascina é o almirante Sir Reginald Aylmer Ranfurly Plunkett-Ernle-Erle-Drax, filho mais novo do 17º Barão de Dunsany. Esta extraordinária contração de quatro apelidos in a row esconde um personagem absolutamente vulgar. Aliás há nomes ingleses verdadeiramente encantadores. McGillicudy, por exemplo. Certo: este é irlandês, portanto não vale. Mas Wichcombe; ou Coggeshall; ou Puttenham; ou Fauntleroy, Oxembridge of Sussex; Robert Fitz Maldred; Gary Lewis Unfreville; ou Iggulden de Ygolvyndenne, conhecido pelo The Most Mispelled Name of History. Por detrás de nomes tonitruantes escondem-se figures sem qualquer interesse. E esta é uma característica intrinsecamente inglesa abundantemente exportada ao longo de séculos.

Regressemos ao almirante. Ficou para a História Universal como o enviado especial inglês na delegação anglo-francesa que se deslocou a Moscovo, em Agosto de 1939, para discutir com Molotov um possível pacto com a União Soviética. Era tal o interesse dos aliados na rápida resolução do problema que Sir Reginald viajou por via marítima até São Petersburgo, nesse tempo Leningrado, e daí para Moscovo de comboio. Essencialmente prático, Iossif Vissarionovich Djugashvili tratou de simplificar o nome para José Estaline. E não levou a sério um parlamentário chamado Plunkett-Ernle-Erle-Drax. Era demais para o seu espírito bolchevique. E, por via disso, o papel de Sir Reginald na História Universal resume-se à autoria de um opúsculo titulado «Handbook of Solar Heating» e aos comentários jocosos inspirados no seu quadruple-barrelled name por romancistas igualmente jocosos como foram os casos de P.G. Woodehouse e Evelyn Waugh.Mas em redor da História, existem as histórias. Ou as estórias.

O irmão mais velho de Sir Reginald Aylmer Ranfurly Plunkett-Ernle-Erle-Drax, Edward John Moreton Drax Plunkett, 18º Barão de Dunsany, embora sem a excelência literária do nome do almirante, escreveu livros prolificamente sob a assinatura de Lord Dunsany. Mais de 80 livros publicados e algumas centenas de contos, pequenas novelas e peças de teatro se espalham pelas bibliotecas da Grande Ilha. O que não lhe evitou uma morte meio grotesca e certamente confrangedora para uma pessoa de tão alta posição social ao ser atacado por uma súbita appendicitis, assim galopante como devastadora, à mesa, em plena receção oferecida pelo Earl e pela Condessa de Fingall, na sua propriedade nos arredores de Dublin, enquanto degustavam o resultado de uma recente caçada ao faisão.

– Really unnecessary, if I may express myself in these terms, terá murmurado o Earl of Fingall, profundamente contrariado com o incómodo que o surpreendente mergulho de Lord Edward John Moreton Drax Plunkett numa terrina de molho de mostarda e vinagre de cidra provocou na sua vasta plateia de convidados.

Há que acrescentar que este Earl of Fingall era o 12º do nome e ainda parente do Barão de Dunsany, Oliver James Horace Plunkett, nesse ano de 1957 atravessando o seu 61º dos 88 aniversários que foi capaz de somar antes que a morte cumprisse a sua suprema função.

Este mesmo Eearl of Fingall, homem de razoável eloquência, permitiu-se à liberdade de um devaneio poético no momento em que, no pátio da velha igreja de St. Peter and St. Paul, em Shoreham, no Condado de Kent, acompanhou as exéquias do falecido, já limpo da sua inconveniente máscara de mustard sauce, e fez notar aos presentes que sobre a cerimónia voava um bando de gansos selvagens, gesto que a todos abriu o apetite.

Os plantagenetas

À portuguesa: Plantageneta.

Os Plantagenetas eram franceses de sangue. Isto é: quando o filho de Geoffroy V de Anjou subiu ao trono de Inglaterra, em 1154, com a denominação de Henrique II, deu à casa real o nome de Plantagenet. E os Plantagenetas governaram a Grande Ilha até 1485, quando a rivalidade entre dois dos ramos da família, os York e os Lencaster, deu lugar à Guerra das Rosas. Mas deixemos isso por agora.

Se mo permitem, diria que os ingleses têm com os franceses uma relação de certa forma romântica. O major W Marmaduke Thompson, de Pierre Daninos, não teria dúvidas em esclarecer que os franceses pertencem àquela espécie que, como todas as outras, pretende ser ela a melhor. Como todas as outras – exceto uma: a inglesa. O inglês é como o butler, à imagem do seu patrão: sabe que é o primeiro do mundo, sabe que isso se sabe e não precisa portanto de o afirmar. Confuso? Não especialmente. Apenas inglês.

Aparentemente, os ingleses desprezam os franceses; intimamente, vivem fascinados por eles. Há na relação entre ambos uma vertente gastronómica não de todo negligenciável. Os ingleses odeiam a comida francesa e o seu tempero. Vendo bem, os ingleses odeiam comida tout court. Tirando as kidney pie. E as bangers and mash. Escrito isto, reconsidero a questão e acrescento: os ingleses odeiam profundamente a comida. Um milionário francês que comprou um yatch em Inglaterra, requisitando a respetiva tripulação, viu-se obrigado a juntar à sua equipagem de trinta e cinco homens dois cozinheiros. E justificava-se:

– Se eu tiver só um cozinheiro francês, os meus marinheiros ingleses não comem. Se tiver só um cozinheiro inglês, morro…

De uma forma extremamente medieval, os ingleses acham repulsiva a ingestão de animais que, em vez de se deixarem caçar, se deixam simplesmente apanhar, não revelando qualquer respeito pela sua própria sobrevivência. Ora, isto exclui liminarmente qualquer possibilidade remota de um verdadeiro súbdito de Sua Majestade deglutir seres como escargots ou grenouilles que deveriam ter como finalidade habitar charnecas e pântanos e não contribuir para o requinte da cozinha francesa. Não admira, assim, que os ingleses tratem carinhosamente os franceses por froggies.

Durante muitos séculos, os ingleses gostavam de dizer: «Há nevoeiro sobre a Mancha; o Continente está isolado». Para a grande maioria dos ingleses, o Continente é a França. E, até certo ponto, a Alemanha.

Deus atribuiu-lhes a graça de serem uma ilha. E, dessa forma, evitou-lhes o sempre desconfortável embaraço de serem obrigados a repartir fronteiras com outros países. «A very wealthy distance, old sport», como diria um cavalheiro que se recusasse a partilhar a sua carruagem de comboio com a populaça. Ah! Para lá da Mancha existe uma disgusting promiscuidade de fronteiras.

Depois veio o Túnel. The Tunnel. The Channel Tunnel. The Chunnel! Com o Tunnel, por mais nevoeiro que haja, o Continente deixou de estar isolado. 50,450 quilómetros de comprimento, dos quais 37,9 debaixo de água. Calais já não é o lado de lá de Dover; agora há também Folkestone. A primeira vez que tentei atravessar a Mancha de túnel não consegui. Havia uma greve geral em França e nada funcionava. Se há coisas em que os franceses são bons é em greves. No dia 1 de Dezembro de 1990, um operário francês da TransManche Link perfurou os últimos metros enquanto, do lado inglês, um seu colega britânico fazia exatamente o mesmo. Assomaram ambos à abertura e, perante os fotógrafos, apertaram as mãos. À imprensa do seu país, o operário francês descreveu o seu sentimento de alegria, a sensação de ter feito parte da História moderna da Humanidade. A um tabloide inglês, o operário britânico, confrontado com a pergunta – o que sentiu quando, finalmente, percebeu que tinha atingido o lado francês? – limitou-se a responder: «An intense and penetrating odour of garlic!». l

 

(Textos retirados do livro A Terra é Um Planeta Onde Existe a Inglaterra, de Afonso de Melo, 2012, Editora Zebra)