Banhos Velhos: É cultura, senhor

Noite de Banhos Velhos no Polidesportivo das Caldas das Taipas. Dois concertos estavam programados: David Bruno e Bruno de Seda. Não foi, contudo, nem o Bruno 1 ou o Bruno 2 que mais brilharam no Maracanã das Taipas. Foi, sim, Marquito

Noite de Banhos Velhos no Polidesportivo das Caldas das Taipas. A frase parece encriptada, vamos espremê-la. Os Banhos Velhos, localizados nas Caldas das Taipas, em Guimarães, eram uma estância termal de origem romana. Depois de ter sido abandonada na época de 1970, em 2010 o nome volta à tona quando passa a receber atividades culturais e lúdicas no seu sacro-chão: concertos, cinema, exposições, projetos e iniciativas. Assim, os Banhos Velhos estabeleceram-se – fisicamente e organizacionalmente – como um marco cultural primaveril e veranil da Vila das Caldas das Taipas. Aqui chegados, esclarece-se que a Organização dos Banhos Velhos organizou, no último sábado, dois concertos no Polidesportivo da mesma vila: houve, então, uma noite de Banhos Velhos no Polidesportivo das Caldas das Taipas.

Dois concertos estavam programados: David Bruno e Bruno de Seda. Dois concertos se realizaram: David Bruno e Bruno de Seda. Não foi, contudo, nem o Bruno 1 ou o Bruno 2 que mais brilharam no Maracanã das Taipas. Foi, sim, Marquito, não só guitarrista de ambos mas, também, o mais maroto do norte.

O chão do Polidesportivo das Caldas das Taipas já viu muitos jogos a acontecer. Neste sábado, contudo, jogou-se um especial: o da cultura. Lugares sentados, distanciados conforme a patrística da DGS e tudo de máscara. O local é difícil de descrever, mas imagine-se meia caixa torácica – no bom sentido -, toda em madeira, cujo chão é marcado pelas linhas de todos os desportos do mundo. Nas duas clareiras laterais da caixa torácica de madeira só quase há verde. Dentro dela, os pulmões da cultura vimaranense respiravam com saúde. O sítio era tão aleatório quanto giro.

Começou Bruno de Seda. Todo de branco tipo anjo, com uma estética romântica e kitsch. Trouxe Marco Duarte – na guitarra – e José Pedro Santos – nos batuques. Bruno de Seda será sempre a aproximação viva de José Pinhal –  a estrela maior do hipsterismo português. Não porque, por acaso, até é vocalista do projeto “José Pinhal Post-Mortem Experience”, mas porque, de facto, a sua música é propositadamente próxima da dele. Além disso, traz um farto bigode que materializa um statement de aproximação à estética e espírito do português dos anos 80. De teclado romântico e sotaque carregadíssimo – maravilhoso, diga-se – Bruno de Seda dirigiu-se a uma sala a três quartos. Apresentou o seu álbum homónimo. A destacar, uma versão portuguesa e tasqueira do Amor e Sexo de Rita Lee – que não pertence ao álbum – e a destreza de José Pedro Santos nos batuques. A postura de Bruno de Seda em palco é leve e solarenga: o seu aspeto invernal e pesado não se traduziu na sua performance –esta, por isso, foi melhor do que a por mim esperada.   

21h00 a apitarem no meu Casio, hora de David Bruno. A noite foi boa para os fãs de David Bruno que preferem os álbuns a solo ao lançado em coautoria com Mike El Nite. Os Banhos Velhos receberam, via áudio, o “Museu David Bruno”: visitou todos os seus álbuns a solo – mergulhando assim nos tempos em que pedir uma sopa no McDonalds era suficientemente divertido ao ponto de introduzir um clip disso numa música. Diversão. É palavra de ordem na música de David Bruno. E se a “sopa no Mac”, em 2016, não pareceu irónica, o humor, ironia e sensibilidade apuradíssimos que tem vindo a demonstrar depois desse álbum vêm provar estarmos na presença de um dos músicos mais inteligentes e interessantes do panorama português. Este panorama, esperto como os feirantes do norte que David Bruno canta, sabe-o: e por isso um pavilhão polidesportivo praticamente cheio sentou-se para ouvi-lo.

Vestido de preto do cabelo aos tornozelos, David Bruno vem a palco e, consigo, traz Marco Duarte – guitarrista – de volta. A esta altura, não estávamos preparados para o que este segundo senhor iria fazer. Marco, de camisa violeta aberta – com tufos de pêlo a sairem – posta por dentro de umas calças pretas e calçado com sapatos bicudos (sem meias), encarnava a estética da personagem romântica portuguesa que David Bruno costuma cantar. Na ausência de António Bandeiras, Marquito. Ouve-se, do “Raiashopping” – álbum dedicado aos emigrantes portugueses – a “Doucement”: David Bruno ajoelha-se como que chorando a morte daqueles partem na estrada. A beleza e – detesto, mas arrisco – genialidade, de David Bruno é esta: faz música do Portugal mundano que ninguém repara. Lê as entrelinhas do país. Pega na medula mais portugalinha de Portugal e faz música dela. Quantos com menos de 30 anos fazem música boa sobre os emigrantes portugueses com Lo-Fi e vaporwave de fundo? Os graves iam enchendo os pulmões à caixa torácica da cultura vimaranense, a passo que os agudos da guitarra de Marco faziam lembrar noites quentes em hotéis baratos no sul de Espanha. O público respondia com palmas. A essas, David Bruno retorquiu com um dos melhores memes da cultura portuguesa: “Gondomar, Gondomar!” – gritou-se nas Taipas. E já que se fala em cultura portuguesa, não só os Banhos Velhos a fomentaram como viram o seu público, instigado por um David Bruno aguerrido, a aplaudi-la. Obrigado, Banhos Velhos.

Houve, contudo, quem recebesse mais palmas que a cultura: Marco Duarte, aka Marquito. O guitarrista dos dois Brunos, com solos atrás de solos, deslumbrou o público no segundo concerto. A noite, sem menosprezo aos Brunos, foi, efetivamente, de Marquito. Considerando que, em palco, se sente um notório paternalismo de David Bruno para com Marquito – mais carinhoso do que tóxico –, não seria de admirar que David Bruno estivesse a procurar destacá-lo, ideia que sai ainda mais reforçada pelo facto de o reportório trazido às Taipas lhe dar bastante destaque.

Surge a “Salamanca by Night” e David Bruno derrama a ausência de António Bandeiras, alter-ego performativo de Renato Cruz Santos que acompanha David nas suas digressões musicais. Após muita dança e fumo, seguiu-se-lhe “Bebe & Dorme” do álbum “Miramar Confidencial”. A cada-vez-maior-ginga de Marco Duarte bebia da energia do público que, em uníssono, cantava “vou-te levar a Miramar não a Benidorm”. Do mesmo álbum surgiu depois uma música “dedicada às pessoas que se metem em negócios que correm mal”: a “Interveniente Acidental”, claro está. Mais uma vez, nesta música, ao fazer arte dos clássicos caloteiros banais de uma cidade urbana, mostra o seu superior sentido de humor, sensibilidade e criatividade. Canta ainda a “Não gosto k me mentem”, apresentado a história por de trás da canção mais badalada da noite, que, acompanhada por um jogo de luzes quentes, fez lembrar as salas do Pacha Ofir. E já que se fala em Pacha Ofir, David trouxe ainda o principal hit do seu “Raiashopping”, a deliciosa “Festa de Espuma”. Nesta, dizem-me os meus apontamentos, Marquito parecia estar a “exorcizar a guitarra”.

Por fim, algo que nunca tinha visto: um artista a fazer um encore declarado. “Então, eu vou agora sair, vocês vão bater muitas palmas e eu vou voltar a entrar, ok?”. Assim dito, assim feito. Voltou, divertidíssimo, a atirar beijos a um público que já havia derretido: “Vocês são muito gentis”. Termina com o maior hit do seu primeiro álbum que, suponho, tinha saudades de tocar: “#150ml” – a quantidade de sopa que pediu num MacDrive perto de Gaia. David Bruno tinha o público tão na mão que, após esta canção, conseguiu dele receber repetidos “Drive” quando o incentivava dizendo “Mac”. Missão cumprida. De sorriso no rrrosto (ler no tom), sinaliza românticos e gordos corações ao público, abandonando depois o palco. Com ele – e trazendo os Banhos Velhos debaixo do seu regaço – sai também o príncipe da noite.

– O que trazeis vós aí, Marquito?                                 

– É cultura, senhor.