A arte de fazer ouvidos de mercador

O governo anunciou finalmente com pompa e circunstância que criou esse programa de testagem massiva gratuita. Aplausos. Só que (há sempre um “mas”) ficam de fora: 1) aqueles que foram infetados com Sars-Cov-2, 2) os portadores de Certificado Digital de Vacinação e 3) as crianças com menos de 12 anos. Está, portanto, o governo a…

por Sofia Aureliano

Sabem aquela música do “Assobia para o lado”? Se mudássemos umas estrofes, podia ser dedicada ao governo. Com boa onda e sorrisos simpáticos, lá vai dando as más notícias, impondo práticas impossíveis e fingindo agir com assertividade quando, na realidade, não está a mudar rigorosamente nada. O título de “governo do faz de conta” ninguém lhes tira e, honras lhe sejam feitas, o de “executivo dos espertos” também não.

1. Testes gratuitos. Mas para quem? Andávamos todos a pedir que o governo executasse a testagem massiva da população que anunciou como a estratégia base do segundo desconfinamento. Em março. E pedíamos, sustentando o argumento num princípio básico de igualdade que, havendo obrigatoriedade em fazer testes, tinham de ser gratuitos, para que não se estivesse a criar mais um fator de desigualdade económica.

O governo anunciou finalmente com pompa e circunstância que criou esse programa de testagem massiva gratuita. Aplausos. Só que (há sempre um “mas”) ficam de fora: 1) aqueles que foram infetados com Sars-Cov-2, 2) os portadores de Certificado Digital de Vacinação e 3) as crianças com menos de 12 anos.

Está, portanto, o governo a assumir que, em Portugal, ao contrário do que acontece nos outros países do mundo, o vírus nunca é reincidente, não atinge os que já foram vacinados, tampouco as crianças. É isso? Somos especiais, certamente, mas temo que aqui se esteja a padecer de um excesso de otimismo. Ou de mais uma ação de manicura porque, com estas exceçõezitas, fica de fora, para já, metade da população portuguesa. Publicidade da medida – 1, Eficácia – 0.

2. Campanha de incentivo à vacinação. Já o disse aqui e insisto, porque os números estão cada vez mais a provar que é necessário intervir. Imediatamente. Existe uma task force comportamental criada em março que deveria estar a preparar uma estratégia para incentivar os diferentes públicos-alvo a aderir à vacinação. Sendo esta a única ferramenta de combate à pandemia, a funcionar em velocidade de cruzeiro, de que realmente dispomos (porque, como se vê, a testagem massiva e o rastreio epidemiológico são sonhos de uma noite de verão), o trabalho desta task force seria, segundo o que entendo por ciências comportamentais, avaliar o que está a bloquear a adesão à vacinação e combater esses obstáculos cognitivos. Sejam o medo de reações adversas, as incertezas sobre o vírus ou a vacina, o negacionismo, a ideia de que se é invencível ou de que a Covid é um fenómeno que só ataca os outros, quaisquer teorias da conspiração, ou uma postura de protesto contra o grande capital. Qualquer que seja o motivo tem de ser desconstruído e têm de ser criados mecanismos de incentivo para que os diferentes targets resistentes à vacinação adiram. Já existem exemplos internacionais, já foram dadas dicas do que se podia fazer internamente, mais à medida do orçamento do país, e certamente uma equipa especializada em ciências comportamentais terá outras ideias para apresentar. Gostava que tornassem público o resultado deste trabalho que, a existir, pode verdadeiramente fazer a diferença. 

3. Ouvidos moucos. Os especialistas falam em matriz de risco obsoleta, tomada de decisão política com atraso de 20 dias, ação extemporânea que não tem efeitos porque atua sobre o passado. São pedidas mudanças na matriz de risco, nomeadamente, que se trabalhem com taxas médias de incidência a sete dias e que se ponderem fatores atenuantes como a taxa de cobertura vacinal ou a taxa de positividade. O que se está a dizer parece óbvio: um concelho que esteja com risco elevado ou muito elevado que tenha 90% da população vacinada, não deve ser alvo das mesmas restrições que um concelho com o mesmo nível de risco mas em que apenas 40% da população está vacinada. Também parece óbvio que, com um vírus de transmissibilidade galopante como se sabe que é a variante Delta, ainda dominante no país, tomar decisões com dados médios de há 14 dias é o mesmo que tentar esvaziar uma piscina cheia com um balde de cinco litros.

Depois de muitos pedidos de alteração da matriz, lá se ouviram os pivots a abrir telejornais com a frase “Governo alterou a matriz de risco”. Excelente.

Mas vamos ver bem e alterou-se efetivamente o quê? Ora bem: foi preciso aumentar o  eixo do número de casos porque, mesmo com média a 14 dias, que se manteve em uso, o ponto em que alegadamente nos encontramos já ultrapassa o limite dos 240 casos por 100 mil habitantes. Que eram o máximo considerado na figura geométrica. Então aumentou-se o eixo vertical (da incidência) e o retângulo ficou maior. Fez-se alterações na matriz? Sim. Estéticas. Na fórmula de cálculo do risco não mudou absolutamente nada.

4. Certo é que os meios de comunicação social compraram a parangona. E, demitindo-se do verdadeiro serviço de informar que alegadamente os devia mover, transmitiram-na exemplarmente aos portugueses. Como fiéis assessores de comunicação do governo. É, aliás, algo que sinto há algum tempo: este executivo é extraordinário na propaganda, é um facto inquestionável. Fosse tão bom a governar como é a vender que bem governa e estaríamos num “great country to live”.

Mas conta com a ajuda inestimável de um conjunto de jornalistas que parece não ter grande vontade de fazer as perguntas certas. Ou por desconhecimento, impreparação, falta de brio ou mesmo por frete. Às vezes, é tão evidente que seria hipocrisia minha dizer que não coloco todas as hipóteses em cima da mesa. Ultimamente, o que assisto é a um governo sem contraponto e com demasiados aliados improváveis.

Haverá sempre quem faça o seu trabalho e obrigue à devida prestação de  contas, não caia nas armadilhas gastas e seja mais inteligente. Pena é que essa seja a exceção e não a regra, porque precisamos de um jornalismo sério, sem medos, vigilante e ágil. Que questione o que lhe é dito e não se fique pelas perguntas de superfície.

5. A Eslovénia assumiu a Presidência rotativa do Conselho da União Europeia, deixando para trás um mandato português que não ficará para a História. Já a presidência eslovena entrou a pé juntos com um puxão de orelhas à Alemanha, por esta querer impor restrições adicionais à entrada de cidadãos no país, por via aérea, para além da posse do Certificado Digital, que tinha sido acordado como exigência única de acesso entre todos os Estados Membros. Restrições essas que, curiosamente, não afetariam a Eslovénia, mas afetariam Portugal.

Uma vénia ao novo país Presidente do Conselho da União Europeia, que já mostrou ter fibra e saber o que realmente significa dever de neutralidade, para além de claramente não sofrer de uma patologia grave que se disseminou pelo executivo nacional que dá pelo nome de “miaúfa”, vulgo “cobardia”.