De uma capa de revista à biblioteca ideal

O que deve e o que não deve ter uma biblioteca ideal? Não bastam alicerces e paredes sólidas. E até pode haver sentimentos menos nobres à mistura…

Julgo que foi nos meus tempos de estudante universitário, já lá vão uns 20 anos, que passei a ver as revistas como parte integrante de uma boa biblioteca. Na altura era frequentador assíduo da Biblioteca de Arte da Fundação Gulbenkian e, enquanto aguardava que o número do meu pedido aparecesse no visor ao fundo da sala (o que significava que podia ir ao balcão recolher os livros requisitados), entretinha-me a ler alguma entrada do dicionário Grove da música e dos músicos ou ia buscar um dos vários periódicos que havia à disposição nas estantes. Quando estava mais virado para a arte antiga, pegava na elitista Burlington Magazine. Se estivesse mais virado para o mercado, a arte contemporânea ou de vanguarda, abria o The Art Newspaper, a ArtForum ou a FlashArt.

A seu tempo, também eu me tornaria consumidor de revistas, e foi precisamente numa delas que certo dia encontrei uma capa que haveria de ter alguma influência na minha vida adulta. Tratava-se de um número especial da Sciences Humaines de 2003, com o título: 'La Bibliothèque idéale des Sciences humaines’ – a biblioteca ideal das ciências humanas. No miolo, apresentava várias secções temáticas, com textos de estudiosos, e listas de clássicos que não podiam faltar a uma boa biblioteca desta área. Recordo-me de alguns deles: O Suicídio, de Émile Durkheim; Guilherme, o Marechal, de Georges Duby; A Sociedade de Corte, de Norbert Elias; Tristes Trópicos, de Claude Lévi-Strauss.

Essa ideia de biblioteca ideal ficou-me a ruminar na cabeça. E estou convencido de que foi daí em diante que passei a olhar menos para os livros que tinha, e mais para os que tinha de ter. Passei a pensar não em termos do que ia ler mas de quais eram os tijolos essenciais para construir uma biblioteca de alicerces e paredes sólidas. A par disso, desenvolvi uma consciência aguda do que me faltava – ou, se preferirmos, da dimensão da minha ignorância.

D evo dizer, ainda assim, que nunca concebi a biblioteca ideal como uma biblioteca ‘totalitária’, como a infindável Biblioteca de Babel de Borges, um arquivo imaginário que conteria todas as combinações de letras possíveis em todas as línguas possíveis e impossíveis. Há uma quantidade a partir da qual os livros, em vez de serem uma bênção, se tornam um problema, uma dor de cabeça. Por isso, tenho para mim que uma biblioteca privada deve ser manejável.

Depois, para ser ideal, não basta ter os clássicos ou os alicerces: tem de ter também livros que nos dão prazer, livros com os quais estabelecemos uma relação afetiva, livros que associamos a momentos da vida ou a pessoas de quem gostamos.

E, por fim – como dizer isto de outra maneira? –, para o proprietário estar apaziguado tem de sentir que a sua biblioteca não é pior do que a de outros aficionados do seu campeonato. Por isso sucede com alguma frequência ele não ficar descansado enquanto não adquire um título qualquer que viu na estante do amigo ou conhecido. Como noutros domínios humanos, a competição (para não dizer a inveja…) tem um papel a desempenhar. Ninguém disse que na origem da biblioteca ideal não podia haver sentimentos mesquinhos à mistura.