“Viajei no Cessna de Sá Carneiro horas antes da tragédia de Camarate”

É um dos fotógrafos que mais lidou com políticos. Trabalhou diretamente com Sá Carneiro, Balsemão, Cavaco e Marcelo, de quem é fotógrafo oficial. Deste, diz o melhor, que é um humanista. As histórias de Rui Ochoa que estreia esta semana uma exposição diferente.

“Viajei no Cessna de Sá Carneiro horas antes da tragédia de Camarate”

Lembro-me do Rui Ochoa há mais de 30 anos, quando a sua pronúncia do norte se fazia ouvir nos corredores da Duque de Palmela. Quando passei a jornalista o Rui acompanhou-me em muitos trabalhos. Fosse em reportagem ou em entrevistas. Apesar de ele ser um dos nomes maiores da fotografia e eu um jovem em início de carreira – depois de ter sido estafeta e secretário de redação –, o Rui perguntava sempre qual era o ângulo do trabalho e se eu precisava de alguma fotografia em específico. Algo que muito poucos praticavam, pois na altura muitos fotógrafos não sabiam ainda bem o que era trabalho de equipa – recordo-me de ir fazer um ‘comício’ da ASPP na Voz do Operário, no tempo em que o histórico José Carreira era o líder dos polícias, e Álvaro Marçal, o agente que tinha estado nos secos e passara para os molhados. Isto é: na célebre manifestação de polícias contra polícias, Marçal foi um dos agrediu com canhões de água os seus companheiros, tendo depois passado para o outro lado da barricada quando se ‘sindicalizou’. Como ia escrever sobre ele disse ao fotógrafo que queria uma foto do Marçal, sendo a resposta lapidar: ‘Faz o teu trabalho que eu faço o meu’. O Rui, no que diz respeito ao trabalho, nunca foi dessa turma. Tantos anos depois estamos frente-a-frente, eu a entrevistá-lo e ele a responder. No dia 22 inaugurará a sua exposição Acasos, que estará patente ao público até 28 de agosto, na Galeria de arte moderna da Sociedade Nacional de Belas Artes, na Rua Barata Salgueiro, em Lisboa. Com curadoria de Elisa Ochoa, sua filha, Rui pretende mostrar um outro olhar fora da política.

«Com o alto patrocínio da Presidência da República, a exposição reúne 23 trabalhos do fotógrafo, focando na captação dos Acasos na fotografia e, por essa razão, no papel da expressão artística enquanto tal», lê-se no catálogo da exposição. Aqui fica a entrevista do homem que foi fotógrafo ‘oficial’ de Sá Carneiro, Francisco Pinto Balsemão, Cavaco Silva e Marcelo Rebelo de Sousa – de quem ainda é.

Tens 72 anos, há 30 anos imaginavas-te a fazer uma exposição de fotografia totalmente diferente daquilo que tinha sido o teu percurso?

Sempre pensei isso, sempre tive isso na cabeça. Não sou apenas um fotojornalista. Quer dizer, a minha grande paixão é de facto o jornalismo. Mas todo o fotojornalista guarda sempre umas coisas que faz à margem e esta exposição é um bocadinho à margem. São as pequenas histórias e os pequenos pormenores, objetos que fotografei, que fui apanhando. Uns há muito tempo, outros há pouco tempo. A última fotografia foi feita em junho na Eslovénia. E, portanto, esta era uma ideia que tinha há muito tempo. Provavelmente, vai ficar por aqui, porque tenho um livro para fazer de memórias do jornalismo puro e duro, que está mais ou menos alinhavado. Ainda não sei se será apenas um volume, porque é imenso material. São cerca de 20 milhões de negativos que eu tenho tentado fazer uma escolha muito seletiva e rigorosa. Estou há 10 anos a fazer isso. E ainda só apanhei cerca de 25%. Antes de ir para Belém, no primeiro mandato (de Marcelo) em 2016, tinha já um livro com tudo pronto, tinha sponsors, mas de repente o então professor e apenas e só professor Marcelo convidou-me para trabalhar na campanha eleitoral. Ele ganhou e eu fiquei. Sinto-me bem e gosto de trabalhar com ele.

Mas como surgiu esta ideia?

O projeto do ACASOS surgiu devido à pandemia. Não fiquei muito tempo parado, foi cerca de um mês, nem tanto, logo no início entre abril e maio do ano passado, mais até por imposição interna da Presidência porque era preciso acautelar a saúde das pessoas. Mas isso ajudou-me a pensar um pouco nesse projeto antigo que eu tinha de aproveitamento de determinadas imagens que não são de todo fotojornalismo. A exposição era para ter sido no Porto em fevereiro, só que a situação pandémica piorou, fechou tudo novamente. Entretanto, há cerca de dois meses a Sociedade Nacional de Belas Artes convidou-me, por intermédio da minha filha que estudou curadoria, para fazer uma exposição, que é agora inaugurada no dia 22 de julho.

Nestes anos todos, quais foram as grandes mudanças que assististe no mundo do jornalismo?

Mudou tudo, a partir do momento em que a digitalização tomou conta disto tudo, evidentemente que a forma como se faz fotografia hoje em dia é completamente diferente. Antigamente fotografávamos com uma pistola, agora fotografamos com uma metralhadora. Ou seja, com uma metralhadora não se pensa muito, é para rajada e para matar o maior número de pessoas. Com uma pistola somos mais seletivos e o tempo do analógico era exatamente esse, era o do tiro certeiro. Basta dizer que antes em cada trabalho utilizávamos dois ou três filmes, os chamados rolos, com 36 imagens cada um. Hoje faço três mil imagens por dia. Dei comigo próprio a mudar também a minha forma de trabalhar. Vejo, por exemplo, muitos jovens com quem trabalho que disparam como se fosse infindável o disparo da máquina, com aquele barulho todo que parece uma metralhadora. Não sou assim, mas ando lá perto. Só que isso tem uma grande dificuldade que é a escolha. Por um lado, é bom porque a possibilidade de falharmos o shot é menor, mas por outro lado pensamos muito pouco. Há uma frase fantástica do Henri Cartier-Bresson sobre isso. ‘O meu dedo é a extensão do meu cérebro’, ou seja quando eu disparo a máquina quem deve dar a ordem seletivamente é o cérebro. Portanto, nós fazemos uma escolha consoante a nossa capacidade de estética e a partir dela o cérebro ordena-nos que façamos no momento próprio aquela imagem. E se nós não respondermos ao cérebro acabamos por fazer um trabalho dispare, sem qualquer rigor.

Mas muitas das tuas fotos mais icónicas foram precisamente por disparares rapidamente, nomeadamente as agressões a Mário Soares, na Marinha Grande em janeiro de 1986.

Uma coisa é o instinto do fotógrafo que está atento ao que se passa e que tem de ser rápido a pensar, lá está o cérebro a dar ordens ao dedo. Aqui não é o caso de nós termos muita rapidez a carregar no botão. Mas sim, no momento próprio, o nosso espírito seletivo, a nossa capacidade de observar e de antever os pormenores. Essa fotografia da Marinha Grande tem duas componentes muito importantes. Tem uma componente de previsão, ou melhor, de informação, isto é o fotojornalista sabe o que se vai passar. Não sabia o que se ia passar exatamente, mas sabia que ia haver problemas. Fui para a Nazaré, que era a paragem antes da Marinha Grande, e todos os fotógrafos ficaram com a comitiva de Mário Soares e eu fui à frente porque sabia que ia haver problemas na Marinha Grande, isto porque naquela altura havia a crise da indústria vidraceira, muito desemprego e a maioria das pessoas acusava o Governo do qual Mário Soares tinha feito parte de ser responsável por essa crise. Quando cheguei deparei-me com uma grande manifestação. Mário Soares chegou, eu já lá estava e aquilo passou-se em cinco minutos e todos os outros fotógrafos quando chegaram já tudo tinha acabado. É essa capacidade que nós temos de recolher informação e depois no momento certo captar e sentir que aquilo é um momento importante.

Como é trabalhar com Marcelo em pandemia? Ele é hipocondríaco ou isso é apenas um boato?

Eu andei sempre com Marcelo, só estive cerca de um mês em casa. Mas ele não é hipocondríaco, alguém inventou isso. Ele tem cuidado com a sua saúde e automedica-se, como todos nós o fazemos. E ele fá-lo de uma outra maneira, pois não nos esqueçamos que ele é filho de um médico. Se calhar ele gostaria também de ter sido médico. Ele tem uma capacidade muito grande de saber o que tem e de poder medicar-se.

Como consegues acompanhar a agitação do Presidente da República?

Primeiro, por paixão. Adoro fotografar e para mim isto não é um sacrifício. Ainda ontem uma das minhas filhas dizia assim preocupada: ‘Ó pai tens 72 anos não era melhor parar?’, ao que eu lhe respondi: ‘Mas parar para quê?’. Não posso ir para casa porque enlouqueço. Se não estivesse em Belém, estaria perfeitamente disponível para trabalhar num jornal. Não com a mesma agilidade que os mais novos têm. Aliás, a idade também nos dá essa vantagem de sermos seletivos e sabermos muito bem dosear os nossos movimentos. E isso também tem que ver com uma certa inteligência emocional, um certo traquejo.

Que momentos mais curiosos, dramáticos ou frustrantes recordas ao lado de Marcelo, Cavaco, Soares e Sá Carneiro?

Conheci Sá Carneiro no Grémio Literário, ele tinha vindo de Londres e na altura eu trabalhava no JN, na rua da Misericórdia e, portanto, fui lá para o fotografar para uma entrevista. Eu tinha um bocado de sotaque do Porto e quando cheguei ele disse: ‘Você é do Porto’. Ele estava muito nervoso, não estava à vontade perante a câmara. Ele disse-me que não era muito fotogénico e eu respondi-lhe: ‘Não há pessoas que não tenham fotogenia. Há é maus fotógrafos’. Quando o Sá Carneiro é eleito, fiquei como fotógrafo dele e trabalhei com ele até ao último dia, aliás viajei no avião em que ele morreu. Na madrugada do dia em que ele morreu, de 3 para 4 de dezembro, eu cheguei ao aeroporto de Lisboa no avião Cessna que caiu, onde vinha o Balsemão, o Sá Carneiro, o António Patrício Gouveia. Vínhamos do Porto, da campanha do Soares Carneiro, e chegámos às 4h da manhã, porque os comícios naquela altura eram até de madrugada, terminavam perto das 2h da manhã. Cerca das 12h ligou-me o António Capucho, que era o diretor da campanha, para ir fotografar um almoço ao Tavares, onde estava o Sá Carneiro, o Adelino Amaro da Costa e o Arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles. Esse almoço decorreu, entretanto eu saí e eles ficaram por lá. Resultou dali que teriam de ir de novo ao Porto fazer outro comício, porque as coisas estavam muito más em termos de sondagens. À tarde quando me ligou o António Capucho disse-me que tínhamos de ir para Setúbal e eu perguntei-lhe: ‘Mas então não vamos para o Porto?’, e ele disse que o primeiro-ministro ia ao Porto mas não queria levar ninguém. Acabei por também não ir a Setúbal, foi um outro colega meu e eu fiquei em casa e ouvi a notícia da queda do avião em casa. O Sá Carneiro era uma pessoa impressionante. Todos os dias de manhã durante a campanha eleitoral, à descida no hotel lembro-me que a primeira coisa que a Snu me dizia era: ‘Parabéns pelo trabalho que fez ontem’, porque naquela altura eu garantia as fotografias para todos os jornais, porque os jornais não tinham dinheiro e depois mandávamos as imagens por uma máquina Xerox, que funcionava através de uma espécie de internet tacanha e grosseira. Há uma história fabulosa em que estava eu, o Sá Carneiro, o Adelino Amaro da Costa e o Ribeiro Telles em Fornos de Algodres ao meio-dia. Eu tinha alugado um quarto num hotel e montei um estúdio na casa de banho do quarto para revelar as fotografias. E fotografei durante dez minutos, porque tinha de enviar as imagens para os jornais da tarde, A Capital, o Diário Popular, o Diário de Lisboa, eram chamados os vespertinos. Depois fui a correr para o quarto para revelar os filmes e comecei a imprimir as fotografias e coloquei-as no chão do quarto a secar. De repente bateram à porta e era o dono do hotel a perguntar se não queríamos uma bebida. Entretanto fechei o papel fotográfico porque não podia apanhar luz e quando o homem abre a porta novamente vê as fotografias todas lá e diz: ‘Milagre! Isto é um milagre!’. Naquela altura, normalmente, quando se faziam fotografias nós entregávamos o rolo numa casa e oito dias depois íamos lá buscar as fotografias. E, ali, passado um quarto de hora tu tens as fotografias no chão.

Depois do que contaste, achas que Sá Carneiro foi assassinado?

Engraçado, ainda um dia destes estive a falar sobre isso com alguém ligado à aviação que dizia que o avião estava todo partido. Eu andei pelo menos dez vezes no avião durante a campanha, porque esse avião estava ao serviço da campanha, e acho que o avião estava impecável. Diziam inclusive que o piloto, o Albuquerque, era um louco e eu nunca percebi isso. Se foi atentado não foi para o Sá Carneiro.

Então se não era para Sá Carneiro é porque era para Adelino Amaro da Costa?

Isso é o que toda a gente diz. Agora que houve negligência do piloto ou que o avião estava em más condições, provavelmente estava, não sei. Curiosamente, só fui chamado à comissão parlamentar de Camarate há cinco ou seis anos para prestar declarações, ou seja, apenas 20 anos depois.

Qual foi a foto que mais gostaste de fazer de Sá Carneiro, e a que gostaste menos?

O Sá Carneiro era uma pessoa doente que tinha muitos problemas de coluna, tinha até sido operado em Londres e há uma fotografia durante um comício em Setúbal alguns dias antes dele morrer. Eu estava a fotografá-lo e ele estava extremamente incomodado, a contorcer-se com dores no corpo. Ao meu lado, a Maria João Avillez disse-me assim: ‘Já viste que o Sá Carneiro está com um ar muito abatido’, e passados nem dez dias ele morreu. Essa fotografia depois marcou-me bastante, acho que havia ali um pressentimento qualquer. Pode ser estúpido dizer isto, mas sinto-o. Foi uma fotografia que para mim foi de certa forma premonitória. A fotografia que eu gostei menos de fazer dele foi numa conferência de imprensa no Altis, uma hora antes dele morrer – a foto foi publicada no Expresso na primeira página, em que ele aparece muito sério e preocupado em primeiro plano e depois está o Soares Carneiro e Freitas de Amaral em segundo plano, já quase desfocados. Longe estava eu de saber que era a última fotografia dele. Nós os fotógrafos acabamos por ser as testemunhas da História e fixamo-la.

E memórias de trabalhares com Balsemão enquanto primeiro-ministro?

Com Balsemão trabalhei pouco, apesar dele ter sido primeiro-ministro durante 29 meses. Fiz pouca coisa, fiz uma viagem com ele a Moçambique no tempo do Samora Machel e pouco mais. Fiz a fotografia oficial dele. Mas sinceramente não tenho assim nada de especial. Tenho sempre um problema de desvalorizar as coisas que faço porque são tão intensas e em quantidade também extensas.

Em termos oficiais nunca trabalhaste com Mário Soares, mas conviveste muito com ele.

Sim, nunca. Fiz muitas coisas enquanto jornalista, viajei muito com ele, fui à China. Mas com Mário Soares foi o episódio da Marinha Grande. Havia muita gente na altura que dizia que a minha fotografia lhe tinha dado a vitória, porque ele começou a campanha eleitoral com 7% nas sondagens. Essa fotografia deu-lhe um grande solavanco para cima.

Depois apanhas Cavaco nas duas vertentes, enquanto primeiro ministro e depois como Presidente da República. Quais são os grandes momentos?

O Cavaco primeiro-ministro, com quem trabalhei durante dez anos, era uma pessoa muito comunicativa, muito interessada. No primeiro dia em que o fotografei, ele tinha acabado de ganhar as eleições e ligou-me de São Bento o José Arantes, que era o assessor dele antes de chegar o Fernando Lima, a convidar-me para fazer a fotografia oficial do primeiro-ministro. Combinámos um dia e quando cheguei lá, montei as luzes todas, levei uma maquilhadora e estava tudo preparado. De repente entra na sala fulgurantemente o Cavaco e olha para aquilo tudo e diz: ‘Temos cinco minutos’. E eu disse assim: ‘Sr. primeiro-ministro, cinco minutos não dá. Tem que ficar para outra altura. Cinco minutos nem chegam para eu falar um bocadinho consigo, pois preciso de o conhecer. Quero saber quem é o homem por trás do político’. Ainda fiz umas coisas ali que acabou por demorar meia hora e combinámos uma sessão noutro dia. Foi num sábado e verifiquei que ele tinha alguns problemas de visual e, portanto, quando fomos para fotografar, com a combinação de estar o tempo que eu quisesse – estive duas horas e meia –, levei-lhe uma gravata. Toda a gente estava a torcer o nariz, porque era uma gravata muito ousada. Mas eu, na altura, lia uma revista americana que tinha fotografias com o visual de vários líderes empresariais. E portanto a gravata era daquelas às riscas que os líderes internacionais usavam muito. Ele gostou muito da gravata, eu fiz-lhe o nó, porque o dele não dava, e a sessão correu muito bem. E é engraçado porque nós fazíamos uma fotografia oficial por ano e eu quando lá chegava ele perguntava-me sempre: ‘Então e a minha gravata?’. Era uma pessoa com muito sentido de humor e que desde o primeiro encontro em termos da pose e postura que ele tinha perante o fotógrafo mudou radicalmente, ao ponto de ele dizer ‘Ah, já sei o que você quer’ e fazia uma pose. Portanto, é uma pessoa que facilitava muito o meu trabalho. Era muito disciplinado. Depois fui convidado para trabalhar com ele já em Belém, mas estive dois meses e vim embora, porque eu estava ainda no Expresso e a Presidência naturalmente exigiu que fosse em regime full time e eu não podia porque não queria deixar o jornalismo.

Há uma grande diferença em termos de personalidade de Cavaco enquanto primeiro-ministro e depois enquanto Presidente da República. Quais são essas diferenças comportamentais?

Ele foi aprisionado em Belém porque havia alguém que lhe dava jeito aprisionar o Presidente da República e obrigá-lo a fazer apenas o que essas pessoas queriam.

Algo que era completamente impossível de se fazer a Marcelo?

Sim, completamente impossível.

Então a culpa foi de Cavaco?

Sim, a culpa foi dele porque se deixou aprisionar.

E as experiências com Marcelo que conheces há muito.

Conheci o Marcelo em 1979, quando o Vicente Jorge Silva me convidou para trabalhar no Expresso. Depois ele foi para o Governo, eu continuei no Expresso, depois houve aquela revolução do Público, e em 1989 fui convidado para editor por Francisco Pinto Balsemão. Mas eu convivia muito com o Marcelo, íamos a alguns almoços com amigos comuns, mantivemos sempre alguma amizade, éramos de facto pessoas com uma certa proximidade. Quando ele decidiu que era candidato à Presidência ligou-me e eu fiz a campanha eleitoral toda pro bono durante três meses. Depois pediram-me para ficar lá e cá estou.

Como é trabalhar com Marcelo? Segundo dizem tem um momento selfie.

Isso das selfies é muito espontâneo. Ele gosta disso porque gosta do contacto com as pessoas. É genuinamente uma pessoa que gosta das pessoas. Aqui há uns anos ele foi a uma visita oficial ao Luxemburgo e o Grão Duque, que ao início nos parecia uma pessoa muito austera, ao fim do segundo dia de visita também entrou na onda das selfies. Ele adorou aquilo de tal maneira que, no final dessa visita oficial, numa festa da comunidade portuguesa do Luxemburgo, onde não era suposto de todo ele falar, o Grão Duque resolveu falar e disse esta frase fantástica: ‘Vous avez un Président qui vous aime’. E é verdade, ele ama o povo, ele é genuinamente uma pessoa que se aproxima das pessoas porque tem necessidade disso, mas também acha que as pessoas precisam disso. Mas não há momento selfie, claro que tem que haver um programa, mas ele muda as coisas até porque tem uma grande perceção da notícia, de tal forma que ele muda e nós achamos esquisito, mas depois ele tem sempre razão. Isto porque ele pensa muito à frente e alguém que queira dirigi-lo que esqueça. Ele não é dirigível.

Mas achas que perdes muitos momentos que deviam ser fotografados por causa da agitação do Presidente?

Movimento-me como quero. Se perco os momentos é por inépcia. Claro que temos de ter pernas. Ainda agora quando fomos a Vila Flor visitar uma barragem no centenário do Engenheiro Camilo Mendonça, o programa incluía uma volta de carro à barragem e no final estavam os jornalistas com quem ele ia falar. O Marcelo estava acompanhado pela ministra da Agricultura e pelos presidentes de Câmara de Vila Flor e de Alfândega da Fé. Depois deu a tal volta e quando chega vem até ao pé dos jornalistas e diz: ‘Vamos dar mais uma volta’. E deu uma volta a pé, foram três quilómetros à volta da barragem. E foi tudo atrás, com a pobre da ministra em tacões.

Com o Marcelo tens batido todos os recordes em quilómetros percorridos?

Ainda há 15 dias fomos a Guimarães de manhã e chegámos à noite, ou seja, fizemos cerca de 700 km e andamos lá o dia todo a pé, a visitar indústrias, enquanto chovia torrencialmente.

Numa palavra, como defines Marcelo, Cavaco, Soares, Balsemão e Sá Carneiro

Marcelo, o Humanista; Cavaco, o Pragmático; Soares, o Pai da Democracia, Balsemão, o Amigo dos Jornalistas; Sá Carneiro, o Príncipe da Política.

É verdade que estiveste para ser fundador Público?

Eu morava em Alfragide e, num sábado de manhã, o Acácio Gomes – antigo jornalista de economia do Expresso e um homem ligado à bolsa – que também morava lá, convidou-me para ir tomar um café. Quando ele chegou ao pé de mim, disse-me assim: ‘Eu sei que tu te dás bem com o Vicente e há uns gajos aí que querem investir um milhão de contos num jornal diário. Mas só aceitam que seja o Vicente o diretor’. Na segunda-feira fui ao Expresso e convidei o Vicente para almoçar comigo e contei-lhe: ‘O Acácio disse-me que há uns gajos que querem investir um milhão de contos para fazer um jornal diário e querem que tu sejas o diretor’. O Vicente olhou para mim e perguntou-me se eu também ia e eu disse-lhe: ‘Eu vou, mas tenho duas condições. Primeiro, quero fazer parte do capital social disso e quero ser eu a escolher a equipa’. Eu seria o editor. Depois houve pessoas que falharam, O Jorge Wemans começou a contratar pessoas sem me dizer nada, não me deram as ações e eu acabei por não ir, porque quebraram as condições. Mas a equipa que lá ficou fui eu que a fiz. Entretanto, o Balsemão enviou-me uma carta, naquela letra horrível dele, a convidar-me para almoçar para falar sobre a continuidade do Expresso.

Mas como começaste a trabalhar no Expresso?

Quando trabalhava no JN, fui para os Açores fazer uma reportagem de um terramoto e fui o primeiro a lá chegar, porque apareci no aeroporto e meti-me no avião militar, no C130, com o Ramalho Eanes. Tudo isso era possível naquela altura. Portanto, eu cheguei de manhã cedo e comecei logo a trabalhar e à noite começaram a chegar os outros jornalistas. Estava no hotel e também estava o Vicente Jorge Silva e o Baptista-Bastos do Diário Popular, de quem eu era muito amigo. Às tantas, o Vicente — eu detestava-o, ele tinha um programa na televisão e eu detestava aquela arrogância dele, que depois vim a ver que não era nada arrogância – enquanto estávamos a jantar, diz ao Baptista-Bastos: ‘Preciso de um puto para fazer umas fotografias para o Expresso’, e o Baptista-Bastos diz-lhe: ‘Tens ali um gajo do caraças’ e chamou-me para a mesa deles. O Vicente diz assim: ‘Quer fazer umas fotografias para o Expresso?’ e eu disse que queria e fiz as fotografias. Depois, o Vicente adorou o meu trabalho e convidou-me para ficar lá.

Mas quando é que descobriste que querias ser fotógrafo?

Entrei para o DN do Porto como secretário de redação, ou seja, era o tipo que fazia a agenda e escolhia os temas. Entretanto, já fazia fotografia, porque quando vim do Porto já tinha uma máquina fotográfica.

Mas de onde veio o gosto pela fotografia?

Boa pergunta. Sabes qual foi a minha primeira fotografia? Publiquei uma fotografia em 1966, no Diário de Notícias, quando Portugal ficou em terceiro lugar no Mundial e ganhou à Coreia do Norte 5-3. Era uma fotografia da multidão louca no Porto.

E quem te deu a primeira máquina?

Foi um tio que foi a Londres e comprou uma máquina View Master. Mas aqui há tempos descobri como é que nasceu o fotógrafo Rui Ochoa. Eu era miúdo, com 8 ou 9 anos, e então um dia lembrei-me de pegar numa caixa de sapatos, fazer um buraco, pegar nuns livros de banda desenhada, cortar e fazer um filme, e com uns arames fiz umas manivelas e passava a banda desenhada como se fosse cinema para os meus amigos. Só me lembrei disso há um ano. Já era o gosto que tinha por essas coisas. Na verdade, eu andei a estudar Economia no curso comercial e depois fui para o Instituto Comercial do Porto. Mas tinha um tio que era jornalista no JN. Os jornalistas na altura tinham muito má fama: bêbados e noctívagos. E portanto a minha mãe tinha uma péssima imagem daquilo e dizia que eu tinha de ir trabalhar para um banco – que era um emprego muito bem visto e seguro. Mas eu queria ser jornalista. E, antes de ir para a tropa, entrei para o DN, aos 18 anos, como secretário de redação. A minha incumbência era todos os dias telefonar para os bombeiros e para a Polícia à noite e saber o que havia. E tinha um chefe de redação que era o António Brochado, um intelectual e uma pessoa fantástica. Escrevia sobre ópera e ballet, falava grego e dizia-se que era um autodidata. E então fazia os telefonemas e chegava ao chefe de redação e dizia: ‘Chefe, há aqui uma notícia fantástica. Houve um morto em Espinho…’ Ao que ele respondia: ‘Ó rapaz, menos de cinco mortos não é notícia’.

A tua passagem mais longa foi pelo Expresso, onde estiveste 30 anos. E saíste porquê?

Quando saiu a equipa do José António Saraiva [N.R. onde me incluo], o doutor Balsemão deixou-se enganar pelos novos paladinos do jornalismo.

Que eram?

O diretor que se seguiu.

Henrique Monteiro. Mas porque é que dizes que o Balsemão se deixou enganar?

Porque arruinaram o jornal, desbarataram o que o Expresso tinha de melhor que era a massa cinzenta. Não foi só a mim, mas foram dezenas de pessoas que foram postas na rua por serem velhas, com cinquenta anos, exceto os amigos do diretor que se seguiu ao José António Saraiva. Acho que foi um indivíduo que entrou ali, não sei como. Curiosamente, a primeira vez que soube que o José António Saraiva ia sair do cargo de diretor foi através de Cavaco Silva. No dia a seguir, dei os parabéns ao Monteiro, claro que com muito sarcasmo, e ele ficou completamente à rasca, muito surpreendido, porque não era suposto eu saber. Na semana em que o Saraiva saiu vendemos 139 mil exemplares e passados 6 meses estávamos com 90 mil. E foi por aí abaixo.

Há uma história do tempo da Rua Duque de Palmela que acho deliciosa. Uma das guerras mais divertidas que assisti foi precisamente sobre a publicação da fotografia de Cavaco Silva em cima de um coqueiro, em São Tomé, de autoria do magnífico repórter Fernando Gaspar. A tua equipa fez um escândalo na sala do diretor insurgindo-se contra a publicação porque a mesma não tinha qualidade e tinha sido tirada por um jornalista.

Não me lembro de qual foi a minha posição, mas não estive contra. Eu estava de férias, a fotografia foi publicada normalmente por indicação do diretor José António Saraiva. Mas eu não vi nada de mal. O que interessa é que é um documento. Não tenho uma posição muito dogmática em relação a isso.

Em algumas entrevistas tens dito que os fotógrafos são feios, porcos e maus. Por que dizes isso?

Alguns são mesmo feios. Alguns são mesmo maus no sentido de qualidade. E porcos porque alguns não se lavam. Mas valha a verdade que a maioria lava-se.

Em Portugal quais são as tuas referências na fotografia?

Alfredo Cunha, Eduardo Gageiro nos anos 60 e 70, Daniel Rocha e António Pedro Ferreira.

E referências internacionais?

Henri Cartier-Bresson, Robert Capa e Sebastião Salgado.

Por que razão houve sempre tanta rivalidade na fotografia? As ‘guerras’ entre fotógrafos são históricas.

Isso tem a ver um pouco com a natureza do trabalho, que é feito de alguma pressão física. Obter a melhor imagem obriga-nos a usar o físico, a empurrar o outro e no momento de fotografar isso deve causar muitas inimizades entre fotógrafos se calhar. Também tem a ver com outra coisa. A partir da minha geração, o nível intelectual, cultural e académico dos fotógrafos evoluiu muito. No DN, nós tínhamos um fotógrafo analfabeto que não sabia ler, mas que tinha uma intuição fantástica e era bom a fotografar o momento. Antigamente, ia para fotógrafo a malta que não sabia fazer mais nada.

Achas que os telemóveis mataram a fotografia?

Antes de ir para Belém estava a dar aulas a cursos profissionais numa escola em Sintra. Uma vez os alunos perguntaram-me sobre isso e eu respondi: ‘Não tem problema nenhum’. Primeiro, o telemóvel acabou por dar acesso a pessoas que não tinham nenhum jeito para a fotografia, mas que descobriram em si uma nova forma de comunicar. Vejo pela minha filha mais nova que não ligava nenhuma às minhas fotos e agora, com o telemóvel, adora fotografar e está sempre a perguntar-me o que acho. Mas isto é como tudo, ficam sempre os melhores. Há uns que fotografam e põem na internet as imagens que fazem. Outros depois a partir dali vão fazer cursos de fotografia.

Qual achas que foi a foto em que captaste melhor a alma da pessoa fotografada?

Eu adoro fotografar pessoas. Não sou um retratista, mas gostava muito de fazer retratos encenados. Na verdade, gostava de ser cineasta, porque o cinema fascina-me. Vou ao cinema três vezes por semana. Portanto, acho que deveria ter sido cineasta. E as minhas fotografias, normalmente, têm algo mais para além da pessoa, têm sempre um cenário ou uma situação, uma informação para além da expressão da pessoa. De facto, a pessoa que eu mais gostava de fotografar era o Mário Soares. Ele era uma pessoa que se estava a marimbar se estava com o dedo na boca ou no nariz. Evidentemente, por uma questão de educação nunca me aproveitei disso.

Nunca terias feito a foto de Cavaco com o bolo rei?

Tê-la-ia feito mas nunca a publicaria. Nem que fosse alguém de esquerda.

Sabendo-se que tu eras uma pessoa ligada à direita, quando ias fotografar alguém de esquerda tinhas algum problema?

Não. Por exemplo, eu tinha uma relação fantástica com o doutor Álvaro Cunhal, privilegiada até. E, no entanto, ele sabia muito bem em quem eu votava. A minha relação com as pessoas da esquerda era sempre muito normal.

*Com Joana Mourão Carvalho