Norte. “Se o ritmo não abrandar, será inevitável impacto na resposta não covid”

O Norte deverá superar o pico de infeções que se vive em Lisboa. “A maioria dos doentes que temos em UCI são jovens”, diz Roberto Roncon, intensivista no São João, que confessa ser chocante ver doentes que queriam ser vacinados mas não tiveram essa oportunidade.

Com a epidemia a estabilizar na região de Lisboa e Vale do Tejo, o pico de infeções na região Norte deverá ser atingido mais tarde e chegar a um patamar superior ao que se verifica em Lisboa, onde os especialistas que fazem a monitorização da covid-19 admitem que a transmissão possa já estar a ceder. Nos últimos sete dias, a região Norte já se aproximou da incidência de novos casos da região de Lisboa, com 1157 novos no espaço de uma semana contra 1360 em Lisboa, mas enquanto em Lisboa houve um aumento de 2%, no Norte os casos dispararam 45% e a tendência de aumento mantém-se. Aos hospitais estão a chegar também mais doentes: embora a maioria dos doentes internados se concentre na região de Lisboa, assiste-se agora no Norte à mesma subida que se viveu nos hospitais da grande Lisboa. Na capital, o número de doentes em cuidados intensivos, a área hospitalar onde a gestão de recursos é mais complexa, passou de 97 para 99 na última semana e tem andado neste patamar, entre entradas e saída de doentes, mantendo-se acima da linha vermelha de 88 camas inicialmente prevista e depois de já terem sido reforçadas as camas para doentes críticos. No Norte, no espaço de sete dias, subiram de 32 para 45 os doentes em UCI, revelou ao i a Administração Regional de Saúde do Norte, confirmando um “aumento progressivo” de hospitalizações sem sinais de abrandamento.

Roberto Roncon, coordenador de Medicina Intensiva do Hospital de São João, admite que o aumento de doentes, maioritariamente jovens, está a causar apreensão, não só pela pressão a nível hospitalar mas pelos quadros graves mostrarem maior severidade do que em vagas anteriores, o que poderá estar relacionado com a nova variante delta, dominante em todo o país. “Os casos que falham a estratégia inicial de tratamento são mais graves e mais difíceis de tratar”, diz.

No São João, passou-se de quatro doentes com covid-19 internados em UCI há uma semana e meia para 14 doentes. O médico salienta que, comparando com a vaga de janeiro/fevereiro, a proporção de doentes graves entre os infetados é muito menor – são cinco a seis vezes menos do que em janeiro/fevereiro, fruto da vacinação e de predominarem os contágios em pessoas mais novas, com menor risco de complicações, aponta – mas o cenário em que a resposta a doentes não covid volta a ser afetada surge de novo no horizonte. “A capacidade pode sempre aumentar, o problema é o impacto nos doentes não covid. O que não queríamos era ter de alocar camas de doentes não covid a doentes covid. Neste momento não chegámos a esse ponto, mas se o ritmo de crescimento continuar penso que será inevitável”, diz o médico, revelando que no S. João se está a 10% a 20% da capacidade desse limite.

Num cenário de pressão, além de transferências de doentes de outros hospitais, a resposta cirúrgica não urgente é a primeira a ser condicionada. Em Lisboa, ao que o i apurou, já tem havido necessidade de transferir doentes críticos entre hospitais mas não houve uma ordem para suspensão de atividade.

Para Roncon, na linha da frente da resposta à pandemia desde o início do março, são notórios os impactos na vacinação na prevenção de doença grave, mas confessa ser chocante encontrar a unidade de cuidados intensivos com uma maioria de doentes jovens. “Neste momento, 70% a 80% dos nossos doentes são jovens, pessoas na casa dos 20, 30, 40 anos, que não tiveram ainda a oportunidade de ser vacinadas”, descreve. “Sou médico, a minha formação é tentar salvar vidas e ajudar doentes. Mas há sempre algo que nos choca muito, que é vermos um doente que tem uma doença potencialmente evitável na sua forma mais grave por não ter tido acesso a uma medicação, neste caso uma vacina. Acho que neste momento não devemos dicotomizar a questão da vacina entre aqueles que querem ser vacinados e os que não querem. Sendo questionável em termos de saúde pública, é uma decisão individual. Acho que o que deve ser a discussão é se estamos a tomar as melhores decisões em termos de controlo da epidemia numa altura em que ainda nem toda a população teve o direito de escolher”, diz o médico, para quem a resposta o leva a recusar uma estratégia como a que iniciou no Reino Unido ou de apelos ao levantamento imediato de todas as restrições, como foi o caso de um manifesto “Reconquistar o direito a viver” divulgado na semana passada. “Que eu saiba, todos os que redigiram e assinaram esse manifesto já estão vacinados, mas há muita gente que não está. Neste momento ainda existem segmentos de população significativos que estão a um/dois meses de completar a sua vacinação. E isso merece reflexão, porque esses doentes estão nas nossas unidades de cuidados intensivos e muitos deles querem ser vacinados”, diz Roncon, lembrando um doente de 48 anos, previamente saudável, que morreu com covid-19 na semana passada e que tinha sido admitido no hospital na véspera do dia em que tinha a vacina marcada.

Reconhecendo a necessidade de responder à crise social e de saúde, considera que a resposta não pode ser fingir que o risco atualmente não existe, quer em quadros graves entre a população mais nova onde se registam os maiores níveis de incidência quer em casos de long covid. “Se no início se falava dos mais velhos, estamos numa sociedade que em termos éticos está a desprezar os mais jovens, que ainda não estão protegidos. Depois de um ano e meio, a minha pergunta é se não vale a pena esperar mais um ou dois meses, sabendo que este esperar já não é o mesmo de há um ano e meio. Fui ver um concerto com os meus filhos, posso ir jantar fora numa esplanada, posso ir a restaurante ao fim de semana com o certificado. Já não é uma prisão”, continua.

 

Críticas

Com algumas críticas concorda. Para Roncon, as medidas de controlo da quarta vaga anunciadas pelo Governo têm sido erráticas e a comunicação com os mais jovens insuficiente, propondo uma campanha sobre vacinação que utilize as redes sociais e “caras novas” e que sejam transmitidos à população objetivos tangíveis. “Em setembro, com 80% a 90% da população vacinada, estaremos numa situação diferente. Obviamente que o vírus não vai desaparecer, mas é como uma maratona em que estamos a entrar no estádio e esta parte final continua a ser importante. Pode surgir uma variante que ultrapasse a imunidade conferida pelas vacinas e sobre isso temos de ser realistas, mas isso não depende só de nós, depende de outros países. Essa consciência de que é um problema global pode ser transmitida aos jovens. O que está ao nosso alcance é termos uma cobertura vacinal acima dos 90% e não é daqui a um ano, é daqui a um, dois meses. Acredito que em setembro a vida seja quase normal mas até lá não podemos fingir que não há problemas”.

 

As idades dos doentes em UCI

Em Lisboa, onde a 4.ª vaga começou mais cedo, há 99 doentes em UCI. Segundo o i conseguiu apurar, a maioria tem menos de 60 anos, o que contrasta com as vagas anteriores da pandemia: 22 doentes têm entre 20 e 39 anos, 24 doentes estão na faixa etária dos 40 aos 49 e dez na faixa dos 50 aos 59. Há 24 doentes na faixa etária dos 60 anos, 15 dos 70 e quatro com 80 ou mais anos.