O Rei de Copas nasceu duas vezes

Orsi em italiano quer dizer ursos. Raimundo não tinha nada desses plantígrados. Pelo contrário, podia passar por tísico

Raimundo Bibiani tinha um diminutivo: Mumo. O seu nome de família era Orsi Iuturriaga. Nasceu duas vezes. Primeiro em Mendoza, na Argentina, no ano de 1901. Depois, quando, mais tarde, resolveu jogar no Flamengo, no Rio de Janeiro, em 1939, descobriram que, ao contrário do que se escrevia nas suas biografias, viera ao mundo em 1904, em Avellaneda, nos subúrbios da grande Buenos Aires.

Para ele ia dar no mesmo. Tinha o descaramento divino de desafiar o tempo. O seu primeiro clube foi o Independiente, em 1920, o último o Santiago Nacional, do Chile, em 1943. Pelo caminho foi o menino bonito de clubes tão grandes como a Juventus, o Boca Juniors, o Flamengo e o Peñarol. Brilhava fosse em que estádio fosse. Encostado à esquerda, tão sobre a linha que, muitas vezes tinha de contornar o fiscal para ir apanhar a bola do outro lado, tirava cruzamentos como nunca ninguém antes dele, descrevendo elipses perfeitas na direção da cabeça dos seus avançados. Depois, de vez em quando, fartava-se de ficar lá na esquerda, e surgia no meio para marcar golos. Muitos, muitos golos. E muitos golos não lhe chegavam. Adotou um estilo acrobático de disparar bolas para as balizas adversárias: pontapés de bicicleta, pontapés de moinho, remates de primeira sem deixar a bola tocar o chão.

Em italiano, a palavra Orsi significa ursos. Raimundo não se parecia minimamente com um desses plantígrados com tendência natural para serem peludos e brutos. Fisicamente passava por um tísico. Depois, quando corria, tornava-se praticamente invisível, uma sombra desdobrando-se em ziguezagues por entre defesas que procuravam pará-lo a patadas. Ganhou a alcunha de Rei de Copas. Era o seu trunfo. No quinteto atacante do Independiente, tinha a companhia ilustre de Zoilo Cabavery, na ponta-direita, Alberto Lalín como interior-direito, Manoel Seoane, interior-esquerdo, e Luis Ravaschino, a ponta-de-lança. Eram Los Diablos Rojos.

Em 1924, com 17 ou 20 anos, depende das versões, El Mumo vestiu pela primeira vez a camisola da seleção argentina. Um empate de zero-a-zero com os vizinhos uruguaios. A seu lado, estreou-se também Luis Monti. Dez anos mais tarde seriam amigo inseparáveis.

Orsi tinha jeito de vencedor. Depois de conquistar o campeonato argentino que há anos fugia ao Independiente, fez parte da equipa da Argentina que ganhou a Copa América em 1927, no Peru, com uma vitória inesquecível frente aos peruanos por 5-1. No ano seguinte esteve em Amesterdão, no torneio de futebol dos Jogos Olímpicos, perdendo a final para o Uruguai (1-2) na finalíssima de desempate. Ganhou outra alcunha: El Cometa de Amsterdam!

Se na Argentina o futebol continuava profundamente amador, na Itália já se pagavam fortunas pelos grandes jogadores do mundo. Ainda por cima se tivessem antecedentes italianos, como Orsi, cujos avós tinham emigrado para a América do Sul. Abriu-se uma guerra entre o Independiente e a Juventus por causa de Mumo. Este já tinha assinado com o clube de Turim um contrato no valor de 100 mil liras e um automóvel da marca FIAT, a empresa a que o clube pertencia. A FIFA meteu-se ao barulho. O Rei de Copas ficaria um ano fora do baralho.

Entre 1931 e 1935, a Velha Senhora foi uma colónia de argentinos: além de Orsi e do seu grande amigo Luis Monti, havia Renato Cesarini, Juan Maglio e Eugenio Castellucci. Em 1934, com a camisola da Itália vestida, Mumo tornou-se campeão do mundo e marcou um golo na final. Monti jogara a final do Mundial de 1930, no Uruguai – seria o único jogador da história a jogar duas finais com duas camisolas diferentes. Os italianos não estavam nem aí para o assunto: se tivesse um trisavô italiano, qualquer jogador podia envergar a camisola da ‘squadra azzurra’. A estreia de Orsi pela Itália foi contra Portugal – vitória por 6-1 com dois golos marcados por ele.

Eram chamados de ‘oriundi’, esses netos e bisnetos de italianos chamados à equipa nacional do país de Mussolini. Il Duce, que resolvera fazer da nação um império, lançando-se na estapafúrdia guerra da Etiópia e da Abissínia, declarou que, como italianos, estavam disponíveis para o serviço militar. A fuga foi maciça.

Raimundo regressou ao Independiente e a Juventus passou 16 anos sem ser campeã. Mas não voltou apenas ao clube. Voltou também à seleção da Argentina. Em 1936, com a camisola das risquinhas azuis-claras e brancas, venceu o Uruguai por 1-0. Foi olá e adeus.

Orsi já não era nenhum garoto, tivesse nascido em 1901 ou 1904. Como veterano foi jogando aqui e ali, mas não prescindido dos grandes emblemas, como os do Boca Juniors, Peñarol e Flamengo. O Flamengo era como a Juventus: Agustín Cosso, Arcadio Lopéz, Atmio Villa, Agustín Valido, Francisco Provvidente e Raimundo Orsi. Um mundo argentino. «Estou velho», dizia ele. «Mas o futebol é um canto de sereia ao qual não consigo resistir…».

afonso.melo@newsplex.pt