O mercado livre do populismo

Chora o avô liberal, chora a avó liberal, chora o pai liberal, chora a mãe liberal, chora a irmã liberal, chora o bebé liberal, chora o cão, gato, castor e crocodilo liberais. Ó Mar Salgado, quanto do teu sal São lágrimas de um liberal Até citei um dos vossos, em solidariedade. Esta semana, o azul…

Chora o avô liberal, chora a avó liberal, chora o pai liberal, chora a mãe liberal, chora a irmã liberal, chora o bebé liberal, chora o cão, gato, castor e crocodilo liberais.

Ó Mar Salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de um liberal

Até citei um dos vossos, em solidariedade. Esta semana, o azul do Twitter era feito de lágrimas liberais. Como foi possível os bandidos da eSqUeRdA terem querido manter a ‘censura’? Que coisa tão ignóbil. Se pelo menos tivessem sido absolutamente íntegros e tivessem votado contra, ao vosso lado… 

Só que não.

Se há coisa que me irrita nesta história da revogação do artigo 6.º da Carta de Direitos Humanos na Era Digital é o populismo pornográfico que os liberais têm feito à volta dele. «qUeM nÃo VoTa CoNnOsCo É a FaVoR dA cEnSuRa», bradam. Desconstruamo-lo.

Apesar de ser verdade que a IL votou contra a lei em outubro – e que está tão trémula que até posta clips disso –, verdade também é que se absteve na votação final global, em abril de 2021. Ora, considerando que se absteve, conclui-se então que a IL não se opôs, de facto, à criação do tal ‘Ministério da Verdade’. Aqui chegados, bifurcamos: 1) ou a IL não se opôs porque estava de acordo com a sua criação; ou 2) a IL não se opôs porque Cotrim, por desatenção, não detetou riscos assim tão graves no artº 6. A segunda parece-me a correta, prossigamos com ela. Com a lei já promulgada e fora das cavernas parlamentares, o debate sobre o artigo começou a borbulhar nas redes sociais, tendo um conjunto de proeminentes intelectuais considerando-o censório. «Mas como é que um partido liberal se pôde abster perante tamanha patada na liberdade de expressão?» – perguntou-se. Pois, nem os próprios sabem.

Após algumas semanas de silêncio e pressão do eleitorado, Cotrim admitiu o «erro» e logo enveredou numa guerra santa contra o que nem sequer merecia oposição há um mês. Populismo 101: por um lado, saciou o eleitorado; por outro, aproveitou e vendeu-se como o hércules da liberdade em Portugal. Seria o mesmo que eu ver uma girafa a ser espancada, não mandar sequer um grito para parar, e depois, por saber que os meus pares desgostaram da minha passividade, vender-lhes a ideia de não sou só contra o espancamento de girafas como sou o principal lutador pelos direitos das girafas. É mentira, é populismo e é uma maneira desesperada de sinalizar virtude. A mesma tentativa de nacionalização da virtude não foi observada no PC, PEV e Chega – que igualmente se abstiveram em abril. 

Antes do debate, os liberais maniqueizaram-no com a história do «vamos ver quem é pela censura e quem é contra». Depois, concluíram essa maniqueização e identificaram os inimigos: «O PS, BE e PAN (…) [abriram] a porta à reintrodução de mecanismos censórios do discurso político em Portugal». Mas como é que podem ter uma atitude tão persecutória se nem sequer se opuseram na altura? Sendo que também não trancaram a porta à ‘censura’, a maneira carniceira como perseguem quem votou a favor é desproporcional ao facto de se lhe terem abstido. Como é que podem assumir uma cruzada tão populista? 

Na Teoria dos Sentimentos Morais, o vosso querido Adam Smith não funda apenas o conceito da ‘mão invisível’. Explica também que o nosso «senso moral» não vem necessariamente de experiências vividas na primeira-pessoa, podendo igualmente construir-se através do olhar sobre o infortúnio dos outros. Assim, sugiro que sigam Smith ortodoxamente e que, olhando ao vosso redor, entendam que o populismo levará inevitavelmente ao infortúnio da descredibilização política, poupando-vos então a que o vivam na primeira pessoa como parecem querer fazer.

Guimarães, 23 de julho de 2021