André Coelho Lima: “Se António Arnaut fosse vivo concordaria com esta lei”

André Coelho Lima fala sobre a lei dos políticos e detentores de altos cargos públicos terem de declarar a sua pertença à maçonaria, de que foi ‘pai’. Diz-se um homem ‘sem medo’.

André Coelho Lima, vice-presidente do PSD, foi o ideólogo da lei que obriga os detentores de altos cargos públicos a revelaram se fazem parte da Maçonaria ou de outras associações. A entrevista aconteceu em Guimarães, terra do deputado.

A Assembleia da República aprovou recentemente um projeto lei do PSD que obriga os altos quadros públicos a declararem a que associações pertencem. Como surgiu este projeto? 

Isto começou por uma iniciativa do PAN, que procurava criar uma opção de inserção da informação da pertença a associações discretas. Percebe-se a iniciativa, o objetivo político por trás da iniciativa, mas, no entanto, tinha duas questões com as quais o PSD não concordava manifestamente: a primeira, a facultatividade – ou seja, se consideramos que uma informação desta natureza pode ou não ser relevante, ela não pode ser facultativa, tem de ser obrigatória; e a segunda: a circunstância de identificar determinado tipo de associações (que inclusivamente na exposição de motivos do projeto do PAN é o que dá origem a esta iniciativa legislativa) – designadamente a maçonaria e o Opus Dei. Ora, nós também não concordamos com isto: não concordamos com leis ad hominem que visem pessoas ou instituições, como era o caso. E, por isso, o PSD foi a jogo, transformando a facultatividade em obrigatoriedade. As declarações de pertença a associações deviam ser obrigatórias e, por outro lado, estendidas a todo o universo associativo. Ou seja, não visando especificamente determinado tipo de associações ou as suas vidas, mas sim todo o universo associativo.

Sentiu ter havido apoio popular a esta lei? 

Sinto claramente que sim. Aliás, se há coisa que me pareceu sempre estranha neste processo é que isto é um processo absolutamente natural em que, de facto, quem não tenha nada a esconder não tem nenhum tipo de problema. Agora é preciso dizer aqui uma coisa que é muito importante: esta lei, contrariamente à ideia que se tenta passar, não é persecutória de quaisquer tipo de instituições, designadamente da maçonaria. É muito importante perceber isto: nós só queremos saber quem, sendo titular de cargos políticos ou altos cargos públicos, também pertence a associações. Por que se não for titular de cargos políticos ou altos cargos públicos não tem nada a ver connosco. Nós não nos imiscuímos na vida privada das associações. Nós estamos a gerir aquilo que é domínio público e quem está em funções públicas tem deveres especiais de transparência. É esse o ponto.

Então por que razão algumas pessoas a consideram persecutória?

 Eu tenho muita dificuldade em compreender isso. E digo isto com a mesma franqueza com que disse aos diferentes representantes de diferentes maçonarias que estiveram na sala do Senado, na Assembleia da República, em audição parlamentar, que foi, aliás, um momento até particularmente nobre e edificante quer da atividade parlamentar, quer desta abrangência. Eu disse sempre, designadamente ao grão-mestre do Grande Oriente Lusitano, que estava disponível para discutir isto na própria sede do Grande Oriente Lusitano. E disse-o porque acredito convictamente na justeza e na bondade desta proposta – que em momento nenhum é persecutória. Portanto, tenho mesmo muita dificuldade em compreender como é que uma organização que durante séculos lutou pela liberdade, lutou pela transparência e contra a opacidade agora esteja enclausurada num certo conservadorismo que procura manter essa opacidade. É estranho para mim, porque são organizações às quais eu sou estranho, porque não pertenço, mas que respeito. Respeito pela sua posição histórica, respeito pela enorme influência que tiveram em várias passagens da história de Portugal e da história da Humanidade e acho que essa história até se reduz com esta resistência. No fundo, é uma resistência ao contrário, ou seja, enquanto a maçonaria está ligada a momentos de libertação, aqui está a resistir. Está do lado contrário da história em que esteve ao longo da vida, e isso intelectualmente entristece-me ver.

Será por haver alguma coisa a esconder?  

Não quero especular acerca disso, portanto vou passar essa pergunta. Mas não deixando de dizer o seguinte: há uma resposta que eles próprios dão e que é a única que eu vou a adotar: que é a de terem sido perseguidos ao longo de vários momentos históricos. É um facto. É um facto historicamente documentado. Não há dúvida quanto a isso. Hoje em dia não existem essas razões e por isso tenho alguma dificuldade em compreender que no fundo seja só assente neste empirismo da história da maçonaria. Lembro-me de ter tido um debate que gostei imenso com João Soares, em que ele chegou e falou antes de mim e disse o seu nome maçon e a loja a que pertencia – disse tudo! E quando chegou a minha vez de falar, eu disse: ‘Não preciso dizer mais nada que o Doutor João Soares já disse tudo’. Isto é fazer cair a suspeição. Eu acho convictamente que não há razões objetivas para uma certa desconfiança sobre determinado tipo de organizações. Não só desta em concreto. E a melhor prova disso mesmo é esta. A maçonaria, nos Estados Unidos e no Brasil, onde foram responsáveis pelos movimentos independentistas, é, digamos, uma participação pública reconhecida. Pertencer a uma organização dessa natureza não é uma capitis diminutio. Não é cadastro. 

O deputado Jorge Lacão, do PS, veio defender, sob a égide do Regulamento Europeu da Proteção de Dados, que estas declarações associativas jamais poderão ser obrigatórias.

Na Suécia fez-se uma reforma da administração pública com meia dúzia de artigos. Porquê? Porque quem está de boa fé na vida pública percebe os objetivos e, portanto, não é preciso esmiuçar. A última coisa que eu gostaria de ver era pessoas e organizações com esta grandeza – alegada pelos próprios – agora à procura de subterfúgios legais para não cumprir aquilo que é evidente para quem esteja de boa-fé. A Assembleia da República, o órgão legislativo por excelência deste país, aprovou uma lei cujo objetivo é claro. Querer arranjar subterfúgios para o seu incumprimento não é próprio de quem tenha a grandeza intelectual e social que alega. Mas há algo que eu também queria dizer relativamente e diretamente a Jorge Lacão: foram extremamente infelizes as suas declarações. Por uma razão muito simples: o deputado Jorge Lacão tem a sua autonomia como deputado do PS, mas é presidente da Comissão de Transparência. Foi a Comissão que aprovou este diploma em cujo debate ele participou. Ele tem todo o direito de deixar uma declaração de voto e a ter a sua posição pessoal, mas devia claramente em nome da posição de presidente da Comissão abster-se de procurar limitar ou condicionar o alcance de uma lei que ele sabe muito bem qual foi o seu objetivo. Mas tenho também um segundo desafio para o deputado Jorge Lacão: já que ele desceu do patamar de presidente da Comissão de Transparência, eu pergunto-lhe como considera então que fica a liberdade de consciência e todos esses direitos que considera violados perante a lei que já existe hoje que obriga a que os sócios de quaisquer associações, mas que sejam dirigentes, tenham que declará-lo. Porque viola a mesma liberdade de consciência ser dirigente ou ser mero associado. Não há nenhuma diferença. Até antes pelo contrário: hoje em dia um membro da maçonaria que seja dirigente de qualquer uma das organizações maçónicas já tem obrigação de o declarar. E, portanto, se for violador de todas esses princípios que Jorge Lacão diz, já é violador hoje – o que é uma incongruência que fica mal a uma pessoa com autoridade jurídica do deputado Jorge Lacão.

A lei foi aprovada com o voto contra do PS. Por que acha que o PS votou contra?

Isso é simples, porque o PS é o sistema, ou seja, o PS é o partido mais conservador do panorama democrático e parlamentar português, é o partido que tenta manter as coisas como estão. O povo usa a expressão ‘quem não deve não teme’ e aqui é um pouco isso. Quem não quer ir para cargos públicos tem direito a toda a privacidade que entender – pessoal e associativa. Quem quer vir para cargos públicos, naturalmente, tem que estar disponível para um outro tipo de escrutínio.

O PS teme esta lei?

Sinceramente, acho que sobre a posição do PS, caberá ao PS dizer o porquê de a ter.  Todos os restantes partidos votaram em sentido contrário. Isto também tem uma mensagem política muito clara. Ou seja, que há um consenso absoluto, ao qual apenas foge o partido com a maior representação parlamentar.

Quando o debate saiu da bolha parlamentar e veio para a comunicação social, o PSD foi, muitas vezes, acusado de radicalismo e de atividade persecutória. Às vezes, foi até comparado com o Chega.

Nesse momento, senti-me como se fizesse parte da maçonaria em vários momentos históricos em que disseram o mesmo da maçonaria. Foi exatamente isso que senti. O antigo grão-mestre do Grande Oriente Lusitano, António Arnaut, assumiu publicamente que antes do diploma do Serviço Nacional de Saúde ter subido a plenário na Assembleia da República foi discutido no Grande Oriente Lusitano. Esta discussão não tem mal nenhum. Ela com certeza foi enriquecedora para o próprio diploma que depois veio a conhecer a luz do dia. O grande problema é que esta discussão não seja escrutinada pelo público. Esse é o ponto. Porque que esta discussão exista acho muito bem, todos nós, até nas nossas famílias, às vezes discutimos processos legislativos em que estamos envolvidos nos nossos ciclos de relacionamento. São sindicáveis. Se isto é discutido em outros patamares para além dos institucionais, não tem mal nenhum. O que é preciso é que saiba. E o desvelo com que António Arnaut disse o que disse devia ser um exemplo para os dias de hoje. Estou certo que se fosse vivo haveria de concordar com esta iniciativa legislativa

Adelino Maltez disse no Parlamento: ‘A Assembleia da República é o templo da maçonaria’. Naturalmente dentro de todos os partidos deve haver gente maçom e o PSD não será exceção. Como é que os membros do PSD maçons estão a lidar com isto?

No PSD isto foi debatido como é próprio de um partido aberto e plural, foi discutido abertamente nas reuniões do grupo parlamentar. O que é que o PSD visa na Comissão de Transparência? É uma coisa muito simples: nós devemos ser o mais transparentes possível para sermos o menos condicionados possível, ou seja, nós temos que dar o  máximo de transparência para em troca podermos receber o menor condicionamento, porque também não é sério e nem sequer é real alguns dos condicionamentos que são constantemente exigidos aos titulares de cargos políticos que têm quase de ser pessoas que não têm património, pessoas que que não têm interesses, pessoas ascéticas que não existiam antes de serem políticos. Isto não é verdade, e depois nós tentamos passar uma imagem que não é verdade. Portanto, a forma de se poder expor, das pessoas poderem vir de forma desabrida para as funções públicas é precisamente poderem fazê-lo do modo o mais transparente possível. Acho que aqui não é cedência a populismos no sentido de divulgação total. Não, é o contrário: é ganhar costas quentes para poder exercer a função legislativa e política da forma mais desinteressada e da forma mais séria possível.

Quer dizer que no PSD a discussão sobre o assunto da declaração associativa foi plural e não causou transtorno?

A votação foi consensual, o partido votou sem alterações, o que até nem tem acontecido em todos os diplomas e, portanto, sem votos dissonantes. A discussão também houve, como há noutros diplomas com pessoas mais favoráveis, outros menos favoráveis, alguns menos favoráveis por argumentos diferentes e depois, como é habitual, num partido plural, mas democrático, tomou-se uma decisão no sentido de avançar e também aí houve compromisso, porque o objetivo desta lei não era ela ser uma violência, nem para pessoas nem para instituições, não é? Era, pelo contrário, perseguir este fim benigno, que penso que é claro.

O diploma do PSD, se não me engano, até março, incluía declarações de cariz religioso ou de cariz de saúde. Contudo, penso que, por questões constitucionais, isso teve que ser alterado, não visando, o Opus Dei. Fernando Lima, grão-mestre do Oriente Lusitano, disse que a maçonaria também não se encontrava visada, exatamente pela questão das convicções legais. Ainda vai haver bastante debate ou a lei vai ser promulgada com celeridade?

Como em tudo na vida, sou pela teoria dos pequenos passos, e acho que isto se faz por passos. Este é um primeiro passo. Agora ver-se-ão os passos subsequentes, que são necessários dar, mas vou voltar a dizer: ficaria desiludido como cidadão se visse – que estou convencido que não vou ver – organizações e personalidades de prestígio à procura de subterfúgios legais para não cumprir a aquilo que é óbvio para todos que se pretende com esta legislação. É absolutamente óbvio. A alteração que se fez, não foi por salvaguardas constitucionais, porque em bom rigor, se a Constituição já existe, não é necessário pôr o que a Constituição diz nas leis.

Este diploma valeu muitas críticas ao líder do PSD, que chegou a ser apresentado como ‘um tiranete que trata o país com autoridade desmedida’. Acha estas críticas justas?

Acho que Rui Rio, que eu tenho a oportunidade de conhecer pessoalmente, é uma personalidade com características humanas únicas e incomuns, que o país tem à sua disposição, e que é uma oportunidade que não deveria perder. Tudo o resto são apenas ataques de personalidade, que é o que se faz, infelizmente, num país que se diz plural, a quem tenta ser alternativa, porque aqui ninguém tenta conquistar poder, tenta-se ser alternativa. É bom para a democracia que haja alternativa e, num sistema semi presidencialista como aquele em que vivemos, mais importante é ainda. A verdade é que hoje a nossa democracia vive com um défice desse contrapoder na Presidência da República, porque aquilo a que assiste é um colaboracionismo excessivo entre dois órgãos de soberania que se deveriam apenas complementar, que se deveriam equilibrar, e este equilíbrio não está a acontecer e o PSD, partido de que o actual Presidente da República é militante e foi presidente, naturalmente que acaba por perder com essa circunstância. Mas, terminando por onde comecei, Rui Rio tem um sentido social, um sentido de humanidade, um sentido de serviço. E de seriedade total na gestão da causa pública, que o país não devia desperdiçar.

A maçonaria é muitas vezes vistacomo um órgão com bastante poder na sociedade portuguesa. Considerando que esta lei, de certa forma, acaba por beliscar a maçonaria, não tem medo do que do que possa vir a acontecer na sua carreira política?

Primeiro, acho que essa imagem é injusta para a maçonaria e não a subscrevo. Segundo, medo é um sentimento que desconheço. Acho que sem haver algum desvelo não se consegue fazer nada. A Humanidade nunca andou para a frente com situacionistas, é preciso quem queira romper algo e eu estou claramente do lado desses.