Crime no feminino: “As mulheres têm necessidades e vontades próprias”

Depois de uma idosa de 79 anos ter sido detida por encabeçar uma rede de tráfico de cocaína, a criminóloga Ana Guerreiro esclarece o papel das mulheres no crime e, mais especificamente, no crime organizado. ‘As mulheres não são mais do que seres humanos’, diz.

Uma mulher de 79 anos usava uma empresa portuguesa de telas como justificação para transportar cocaína escondida em contentores até Espanha, onde cobrava adiantado a outros grupos do narcotráfico. A informação veiculada pelo jornal espanhol El País, no decorrer desta semana, tornou-se polémica. No entanto, a liderança feminina no crime organizado não surpreende Ana Guerreiro, doutoranda em Criminologia que está a desenvolver a tese intitulada ‘O crime organizado segundo uma lente de género: estudo exploratório no contexto português’.

«A literatura internacional tem apontado a presença das mulheres no crime organizado. Este tema está a ser cada vez mais estudado e Portugal não o tem descurado. Tanto é que há um projeto de investigação na escola de criminologia da Faculdade de Direito do Porto que estuda a participação das mulheres no crime organizado enquanto ofensoras», explica a licenciada em Criminologia pelo Instituto Universitário da Maia (ISMAI), adiantando, porém, que este tópico «foi negligenciado à semelhança do da participação das mulheres no crime em geral», tendo começado a ser aprofundado a partir da década de 70 do séc. XX «para que se perceba a agencialidade das mulheres no crime e a sua participação, muitas das vezes, voluntária».

A mestre em Medicina Legal com Especialização em Falsificação e Contrafação de Documentos, pelo Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, avança que é comum as mulheres terem uma agencialidade própria, quererem fazer parte destas organizações – que até são muito criadas pelas mesmas – e não estarem visíveis nos papéis de liderança. Contudo, também ocupam estes lugares. É o caso da espanhola que, a caminho dos 80 anos, importava e decidia as quantidades e o tipo de estupefacientes que deviam ser comercializados.

«A verdade é que costumam fazer parte da estrutura em posições ditas secundárias, subalternas, designadamente em lugares de logística como no transporte ou recrutamento. Não estamos a falar em concreto do tráfico de droga, mas sim do crime organizado em geral, mas há registos de mulheres que lideram estas organizações», diz a assistente convidada do ISMAI aludindo à rede que atuava em variados pontos de Espanha, mas em especial na região da Andaluzia.

Segundo o El País, a droga chegaria pela empresa de fachada montada em Portugal, que tinha como função retirar a droga no revestimento dos contentores que transportavam pedra a partir da América do Sul e todo este processo seria controlado pela idosa, a cabecilha do grupo. «Temos de continuar a investigar e perceber as motivações subjacentes à entrada e manutenção das mulheres nestes grupos. As mulheres não são mais do que seres humanos: têm necessidades e vontades próprias», lembra Ana Guerreiro, condenando os estereótipos associados à mulher.

«É alegadamente subalterna, maternal, serve para reprodução sexual, portanto, passa mais despercebida do que os homens na prática criminal. Tem um papel supostamente passivo. Por isso, é utilizada para mascarar uma rede criminosa», afirma, sendo que a idosa residente em Alió, em Tarragona, foi detida juntamente com dois homens de 26 e 60 anos, em Vila Real, e tal leva a que Ana Guerreiro pondere a hipótese dos suspeitos terem ligações familiares.

«Estamos perante o crime de tráfico de estupefacientes e não raras vezes há aqui um elemento fundamental: a família. É primordial quando se fala em crime organizado, pois não se desliga um do outro. Provavelmente, seria a matriarca da família», equaciona a criminóloga acerca da líder do grupo que tratava da importação da substância, que depois vendia a traficantes que faziam a distribuição e venda direta aos consumidores. A empresa, registada em Portugal, tinha como atividade declarada a importação de pedra coralina, da República Dominicana.

«Esta questão de entendermos o papel da mulher como secundário tem de mudar. O conceito de secundário não deverá ser discutido também? Se não tivéssemos estas pessoas, provavelmente, a prática criminal não teria os efeitos que tem e não se atingiriam os objetivos da rede criminosa», elucida a profissional que foi professora visitante na Università di Bologna, em 2017.

«Devemos problematizar este conceito. A maior parte das notícias dizia que a mulher liderava a organização criminosa e destacava no título que era uma idosa. A novidade de ser uma mulher é aquilo que chama a atenção e é associado a um estereótipo de género», esclarece Ana Guerreiro, referindo-se à panóplia de artigos em que a diferença do tratamento entre os géneros masculino e feminino é notória. A título de exemplo, nos órgãos de informação nacionais, podiam ler-se títulos como A empresária de 79 anos presa em Vila Real que afinal era narcotraficante ou Mulher de 79 anos chefiava rede de tráfico de droga que operava em Portugal e Espanha, mas o The Olive Press, que se autointitula de «jornal em inglês para a comunidade de expatriados na Espanha», optou por Little old lady, aged 79, arrested for being a drugs kingpin smuggler of cocaine into Portugal and Spain.

«Tratarem-na como velhinha não me surpreende», continua Ana Guerreiro, confrontada com o título suprarreferido. «Em termos de idades, esta não me parece assim tão avançada. A média é entre os 35 e os 50 anos. Há uma diferença muito pouca entre homens e mulheres e elas tendem a ser um bocadinho mais velhas do que os homens».

 

Mulheres no crime: Eis os casos mais famosos

Considerada uma fora da lei do Texas no século XIX, Belle Starr (nascida Myra Belle Shirley) viveu uma vida de bandida, associando-se a pessoas não muito bem vistas pela sociedade como Jesse James. Juntamente com o marido, um índio Cherokee chamado Sam Starr, eram conhecidos por abrigar bandidos no seu rancho no Território Indígena de Oklahoma e por atacar viajantes e cowboys de passagem. Ela e o companheiro acabaram por ser condenados por roubo de cavalos em 1883 e cumpriram pena numa penitenciária federal. Tendo sido acusada de variados outros crimes antes de ser baleada e morta no seu rancho, em 1889, o seu assassino nunca foi identificado. A sua história foi popularizada por Richard K. Fox – editor do National Police Gazette, revista norte-americana fundada em 1845 – e mais tarde tornou-se uma personagem popular na televisão e no cinema.

Segundo o relatório Women in crime, elaborado por Nadia Campaniello, da Universidade de Essex, no_Reino Unido, as mulheres tendem a cometer mais furtos (38% dos crimes cometidos por mulheres e 23% dos crimes cometidos por homens) e fraude (13% para mulheres e 6% para homens), enquanto os homens cometem mais roubos (8% para homens e 4% para mulheres) e violência contra pessoas (18% para homens e 10% para mulheres). Além de Belle, também Moll Cutpurse, nascida Mary Frith, em 1584, integra a lista das mulheres que se tornaram conhecidas pelos ilícitos cometidos tendo sido famosa na Londres do século XVII por ter começado a sua vida no crime como ladra de carteiras e ter modificado o modus operandi quando decidiu vestir-se de homem e assaltar transeuntes nas estradas. Após uma temporada na prisão, abriu uma loja em Londres que usava como disfarce para a venda de itens roubados.

Anne Bonny, nascida em 1721, foi uma pirata irlandesa que percorreu o Mar das Caraíbas com o pirata John Rackham no séc. XVIII. Rackham contrariou o pensamento comum de que as mulheres davam azar a bordo de um navio e, consequentemente, Bonny e a sua tripulação tiveram sucesso no sequestro e pilhagem de navios mercantes. Quando foram capturados, em 1720, Bonny escapou da execução porque estava grávida. Quando foi libertada, mudou-se para o estado norte-americano da Carolina do Sul, onde terá levado uma vida dita comum.

Já Charlotte Corday tornou-se assassina aos 25 anos. Filha de nobres franceses, a lealdade de Corday durante a Revolução Francesa pertencia aos girondinos – políticos republicanos franceses – e à Constituição francesa. Assim, focou a sua atenção em Jean-Paul Marat, um líder da Revolução Francesa e inimigo de tudo o que ela representava. Corday mentiu para se encontrar com o físico, teórico e cientista – e também jornalista – Marat cara a cara e esfaqueou-o até à morte, na sua banheira, a 13 de julho de 1793. Foi presa e morta na guilhotina quatro dias depois. Durante o curto julgamento, terá dito:_«Eu matei um homem para salvar cem mil». O assassinato de Marat foi eternizado por meio do quadro A Morte de Marat, de 1793, de Jacques-Louis David, provando os conflitos internos associados ao processo revolucionário e que somente tiveram um fim com a ascensão de Napoleão Bonaparte.

Mary Surratt, nascida entre os anos de 1820 e 1823, dirigia uma taverna com o seu marido, em Maryland, nos EUA, onde recebiam soldados confederados durante a Guerra Civil Americana. Quando o companheiro morreu, Surratt mudou-se para Washington, DC, e abriu uma pensão que se tornou um ponto de encontro para o ator de teatro John Wilkes Booth e os seus companheiros conspiradores. A própria Surratt envolveu-se na conspiração para matar o então Presidente dos EUA Abraham Lincoln, no Ford’s Theatre, por, juntamente com os seus colegas, pensar que Lincoln queria destruir a Constituição criada em 1787. Acredita-se que esta mulher tenha conversado regularmente com Booth sobre os seus planos e ajudado a esconder as armas usadas para o assassinato no estabelecimento que criara. Por este motivo, foi julgada e considerada culpada de conspiração e a primeira mulher a ser condenada à morte nos EUA, tendo sido enforcada com outros conspiradores a 7 de julho de 1865.

Kate ‘Ma’ Barker liderou a gangue Barker, composto pelos seus filhos, e chegou a ser o Inimigo Público Número Um do FBI. Ela e os filhos orquestraram uma série de roubos, assassinatos e sequestros em toda a região Centro-Oeste americana durante o início da década de 30 do séc. XX. A 16 de janeiro de 1935, ela e o seu filho Fred morreram naquele que foi o maior tiroteio da história do FBI, na casa que tinham na Flórida. O gangue Barker-Karpis foi um dos mais duradouros da era da Grande Depressão, nos anos compreendidos entre 1931 e 1935, tendo sido fundado por Fred Barker e Alvin Karpis, e mais tarde tendo contado com a colaboração do irmão de Fred, Arthur ‘Doc’ Barker. A rede, liderada por ‘Ma’, foi constituída por 25 membros no auge da sua existência.

A criminosa do género feminino que dará sempre que falar é Bonnie Parker, nascida em 1910, da dupla Bonnie e Clyde. A mulher conheceu Clyde Barrow, nascido em 1909, em 1930 e, quando ele foi preso pouco tempo depois, sob a acusação de roubo, ela contrabandeou uma arma que ele conseguiu usar para escapar. Deste modo, foi parceira de Barrow durante a Grande Depressão, contribuindo para a execução de uma onda de crimes que durou 21 meses. Os dois roubaram carros e postos de gasolina, bancos de pequenas cidades e restaurantes em todo o Texas, Oklahoma, Novo México e Missouri. O casal conseguiu fugir do FBI e da Polícia até 1934 e, enquanto não foram encontrados, libertaram cinco prisioneiros da Prisão Estadual de Eastham, no Texas, mataram três polícias e sequestraram um chefe desta força de segurança. Acabaram por ser capturados e mortos pela Polícia do Louisiana quando um amigo revelou o seu paradeiro. O talento de Bonnie para a literatura ficou imortalizado em dois poemas que se tornaram célebres após a sua morte: Suicide Sal e The Story of Bonnie and Clyde. «Some day they’ll go down together / And they’ll bury them side by side / To few it’ll be grief / To the law a relief / But it’s death for Bonnie and Clyde» (Algum dia eles descerão juntos / E eles vão enterrá-los lado a lado / Para poucos será uma tristeza / Para a lei um alívio / Mas é a morte de Bonnie e Clyde), lia-se no texto de 1934.

 

O caso português

Em Portugal, o crime no feminino tem um nome incontornável: Maria Branca dos Santos, mais conhecida por Dona Branca. Nascida em 1902, desde cedo começou a sua prática ‘bancária’, guardando o dinheiro da venda das varinas ao longo do dia e recebendo um pequeno montante como agradecimento pelo depósito quando anoitecia. Assim, os serviços desta mulher começaram a ser igualmente requisitados pelos vendedores ambulantes e, durante o regime Salazarista, transformou-se numa pseudo-bancária, atribuindo juros àqueles que lhe entregavam as suas poupanças. Apostou na receção de depósitos acrescidos de 10% de juros a quem aplicasse o dinheiro e na conceção de empréstimos a juros altos. Por estes motivos, todos confiaram as maquias que tinham àquela que se tornou na ‘Banqueira do Povo’.

Se no dia anterior, x pessoa havia depositado 20 contos, em determinado dia, y depositava 20 e x recebia 2 contos. Como os clientes recebiam os juros relativos ao investimento dos clientes do dia seguinte, o esquema funcionou durante décadas até a Dona Branca ser detida a 8 de outubro de 1984 e colocada preventivamente na Cadeia das Mónicas, em Lisboa.

Apesar de ter sido condenada a uma pena de prisão de 10 anos por crime de burla agravada, a mesma foi reduzida devido à idade avançada em que se encontrava, tendo morrido cega e na miséria num lar de idosos, aos 89 anos.