Um biógrafo lusófilo de Salazar responde a um crítico

O debate entre historiadores sobre como lidar com Salazar e a sua governação é bem-vindo. As divergências são inevitáveis

por Thomas Gallagher
Historiador

A A mais recente edição da publicação académica English Historical Review traz uma crítica da versão inglesa do meu livro Salazar: O Ditador que se Recusa a Morrer (Leya, 2021) assinada por um anterior biógrafo do líder autocrático, Filipe Ribeiro de Meneses, Professor de História na Universidade de Maynooth, na Irlanda. Ribeiro de Meneses mostra-se insatisfeito, para dizer o mínimo, com a forma como abordei a figura de Salazar. É para mim interessante verificar sua convicção de que para produzir algo de válido sobre Salazar 1) Há livros e autores específicos que têm de ser consultados; 2) Usar o Arquivo Salazar é essencial; 3) A ampla condenação do papel de Portugal no Ultramar e do envolvimento nas guerras coloniais é recomendada; e 4) Criticar o Portugal que emergiu depois de Salazar e Caetano é algo que não deve sequer ser tentado.

Diferentes biógrafos de um vulto político tão influente e controverso como António de Oliveira Salazar irão invariavelmente enfatizar diferentes facetas da sua vida e do impacto da sua governação durante a sua vida. O volume de 2010 de Filipe Ribeiro de Meneses é rico em pormenores sobre as decisões políticas que Salazar tomou durante os seus anos no poder. Em contraste, eu tento talvez dar mais ênfase ao seu estilo de liderança, ao que o sustentava filosoficamente, a como moldou Portugal, às suas relações políticas, e a como o contexto de um mundo em mudança o tornou uma figura cada vez menos relevante na política ocidental.

Li atentamente o livro de Meneses, consultei-o ocasionalmente enquanto redigia o meu próprio texto, e citei-o algumas vezes. Espero não ser injusto se disser que o seu livro está mais dirigido a um leitor com um maior interesse por política do que ao leitor estrangeiro geral, que foi o que tive em mente ao preparar a obra. (Foi acrescentado novo material à edição portuguesa a pensar no leitor que já possui algum conhecimento do assunto).

O meu objetivo ao apresentar um retrato de Salazar foi estabelecer os paradoxos da sua governação – como uma figura conservadora desprovida de carisma, e sem uma forte base política, submeteu um país até então considerado radical à sua vontade política durante quase quarenta anos. Pareceu-me que mergulhar no Arquivo Salazar não adiantaria muito a este projeto. Tempo de que eu não dispunha seria gasto numa demanda para desenterrar nova informação e revelações. Os papéis de Salazar foram explorados por numerosos historiadores e muita informação foi publicada mesmo antes de o arquivo ser formalmente aberto em 1992. Sem dúvida que ainda se escondem factos fascinantes nalguma pasta obscura que demoraria muito tempo a localizar.

Eu tinha a convicção de que existia suficiente material em bruto no domínio público para servir de base a uma avaliação refrescante. A explicação para o triunfo político inicial de Salazar, a sua sobrevivência depois de as condições deixarem de favorecer a sua forma tradicional de governação, e o que ele pretendeu fazer com o poder que conquistou, pode ser tentada. É invulgar que um político ou qualquer sistema político domine um país durante tanto tempo sem que o seu estado psicológico e as suas faculdades mentais e físicas sejam fortemente afetados. Revisitar a sua vida pode suscitar interesse numa época em que poucos políticos europeus parecem ser capazes de produzir um impacto duradouro. A maioria deles, na verdade, parecem figuras transitórias que rapidamente caem por terra, para logo serem esquecidas.

Defendi que o seu Estado Novo era uma ditadura com uma particularidade: havia uma tónica em baixar a temperatura política e em banir o melodrama. A imagem pública de Salazar apagava-se a si própria e, por longos períodos, foi quase invisível. Havia um governo aparentemente apolítico mas era representada uma peça que envolvia vários interesses. Era difícil retratar o homem que manobrava por trás dos muros da sua residência de São Bento e o meu crítico está indubitavelmente certo ao dizer que seria preciso muito mais trabalho para que emergisse um retrato completo que lidasse em profundidade com a personalidade de Salazar.

Havia uma polícia secreta ativa que atuava duramente contra os opositores que representavam uma ameaça séria. Meneses sente que a dimensão repressiva é desvalorizada no meu livro. Não concordo. A sua implacabilidade contra os militantes comunistas, particularmente até ao final da década de 1940, é sublinhada. Poderia ter referido o uso da ‘estátua’ como forma de tortura, mas refiro vítimas proeminentes da repressão como Bento de Jesus Caraça e José Dias Coelho, esquecidos pelo livro de Meneses. (Nenhum de nós refere Catarina Eufémia). Agostinho Lourenço e os seus sucessores à frente da PIDE mereceram toda a minha atenção. Poderia ter ido ainda mais longe na demonstração de que, por muito brutal que pudesse ser, esta não era uma força ideológica, mas essencialmente recrutada no exército e na GNR, e cuja eficiência foi diminuindo gradualmente.

Mais críticas são suscitadas por eu não ter usado vários textos sobre as estruturas e a ideologia do regime. Mas muita desta literatura passou ao lado de qualquer avaliação original da figura avessa à exposição pública que estava no coração do regime. O meu enfoque foi a sua personalidade, pensamento, valores e a perspetiva que tinha de Portugal. Isso significou que a literatura dedicada às teorias e estruturas políticas ocupasse apenas uma pequena parte da minha atenção. Mas houve vários livros, como Salazar e os Milionários, de Pedro Jorge Castro, que lamento não ter sequer consultado.

O meu crítico exaspera-se com a facilidade com que comparei Salazar à muito menos poderosa Chefe de Estado Britânica, a Rainha Isabel II. Mas ambos foram símbolos de autoridade nos respetivos países durante um longo período e, ainda que isto seja desconcertante para alguns, partilhavam vários traços. Comparar a abordagem de Salazar à sua posição com a da Espanha de Franco (e a de alguns líderes democráticos como De Gaulle) também pode trazer ganhos de compreensão.

Sem entrar em pormenores, Meneses mostra reservas em relação ao meu tratamento do papel de Salazar na Segunda Guerra Mundial. Talvez sinta que eu valorizo demasiado as suas qualidades de estadista, em detrimento do papel desempenhado pelos factos que escapavam ao seu controlo, no evitar que Portugal fosse invadido ou destruído. Está em terreno mais firme quando sugere que eu poderia ter dedicado mais espaço a uma avaliação do papel do regime em África durante a década de 1960. As opções de Portugal eram limitadas pelos constrangimentos geopolíticos, mas poderia tê-las exposto com maior clareza. Contudo, não concordo que as críticas à recusa de Portugal em fazer a descolonização tenham de ser uma posição quase obrigatória para os historiadores. A maioria dos portugueses, exceto os da extrema-esquerda, até aos anos finais do Estado Novo desejava que Portugal mantivesse a sua presença no Ultramar. O Professor Meneses estudou na Irlanda e prosseguiu aí a sua distinta carreira académica. Trata-se de um país onde a cultura oficial é fortemente anti-imperialista. Mas mesmo sem aprovar a feição severa do imperialismo, é defensável (no meu ponto de vista) argumentar que precipitar a retirada de África tornou-se quase tão prejudicial como algumas das políticas de Salazar nas colónias.

Provavelmente nunca me teria ocorrido responder à crítica do Professor Meneses se não fosse um aspeto que ainda não abordei – a sua alegação de que demonstrei uma posição de antagonismo em relação ao Portugal de hoje. Mostra impaciência para com a minha prontidão em criticar a capacidade administrativa daqueles que mandaram em Portugal em tempos recentes. A minha opinião de que não houve um ‘projeto nacional’ como havia no tempo de Salazar não cai bem. Tal como a minha posição de que em certos aspetos a União Europeia pode ser vista como ‘o novo Salazar do país, tomando decisões difíceis que os políticos portugueses evitam’.

A minha insatisfação com o desempenho de muitos decisores na 3.ª República de modo algum equivale a ter ‘uma relação de antagonismo com Portugal’. A classe governante não deve ser confundida com o país. Durante os piores períodos de governação na primeira década deste século, vários políticos mostraram maior preocupação em cuidarem dos seus interesses pessoais do que em proporcionar um padrão de serviço decente a Portugal e aos seus cidadãos. O meu erro foi talvez ter ouvido as queixas de demasiados portugueses sobre o tráfico de influências, o saque de fundos europeus, as falsas privatizações, o aumento exponencial da burocracia e a incapacidade do sistema judicial para agir adequadamente contra criminosos de alto nível.

A classe política nega aos cidadãos de Santa Comba Dão um museu (mesmo que o seu tom fosse crítico) dedicado a assinalar a vida do seu mais notável filho. Sem dúvida geraria uma abundante receita que poderia ajudar a melhorar um recanto desfavorecido de Portugal. Mas na prática ‘a partidocracia’ faz a Salazar um enorme (e imerecido) favor: é muitas vezes a conduta lamentável dos líderes da classe política, mais do que qualquer admiração fervorosa de Salazar na sociedade, que lhe permite continuar a ser uma referência para muitos portugueses.

Para matar de vez o mito de Salazar, talvez fosse necessária a entrada para o governo de conservadores sem nostalgia pelo Estado Novo mas determinados em levar a cabo mudanças que signifiquem que a prioridade é a melhoria da vida dos cidadãos no seu conjunto e não beneficiarem parasitariamente de interesses velados.

Enquanto conservador, eu próprio veria com bons olhos esse acontecimento. O interesse por Salazar provavelmente diminuiria – o que talvez não fosse mau – e Portugal testemunharia reformas há muito devidas, que libertariam as energias dos portugueses, reformas essas que têm sido sufocadas pela classe governante. O Estado Novo e o seu sucessor político perderiam importância; e novos pontos de referência identificados com o progresso poderiam eclipsar anteriores episódios controversos da História de Portugal. Mas enquanto a 3.ª República agir como age, funcionará como o principal motor de propaganda a Salazar. Mantém a sua memória viva através do seu desempenho inglório e permite que livros contrastantes como o do Professor Meneses, o meu e outros que apareceram no início de 2020, encontrem eco nos leitores.

O debate entre historiadores sobre como lidar com Salazar e a sua governação é bem-vindo. As divergências são inevitáveis. Para que desse processo de reavaliação histórica possam surgir novas perspetivas é preferível não impor condições rígidas sobre o que pode ser dito e escrito, nem sobre como exatamente a pesquisa deve ser feita.