O país de Shakira ama Saramago

No meio de largas dezenas de pessoas que se acotovelavam no Pavilhão de Portugal da FILBo, o mestre de cerimónias do pavilhão, um colombiano de 29 anos que oferecia um entusiasmo transbordante, propunha um quizz à pequena multidão. Em que ano José Saramago editou o primeiro livro? Uma jovem mulher acertou (1947), muitos andaram lá…

na feira internacional do livro de bogotá (uma das três maiores da américa do sul) o entusiasmo das pequenas multidões pela literatura portuguesa era visível. e isso teve resultados práticos: um recorde de vendas na livraria do pavilhão, com números apurados no último dia, 1 de maio, de mais de 10.500 livros vendidos, segundo dados fornecidos pela booktailors, a consultora editorial portuguesa que montou a logística da operação:«portugal bateu todos os recordes de vendas nos 26 anos da filbo». o que levou o presidente da câmara colombiana do livro, enrique villa a classificar a portuguesa como a mais importante representação de sempre.

segundo juan camillo sierra, o responsável pelo fondo de cultura economica (fce), a editora estatal do méxico – com tentáculos em espanha, eua e vários países da américa latina – que foi contratada para gerir a livraria portuguesa, saramago, pessoa, afonso cruz e o catálogo da exposição de ilustração como as cerejas foram os bestsellers. «um resultado muito bom», diz juan camillo sierra, «tendo em conta que no ano passado o brasil, país convidado, vendeu 7.800 volumes, pese embora o facto de terem tido uma livraria mais pequena».

a portuguesa foi abastecida por um total de 20 mil volumes, dos quais 7.500 eram traduções espanholas. «além da literatura venderam-se muitos livros infantis e também bastantes dicionários e guias de aprendizagem do português», diz o responsável do fce, que aponta camões, saramago, pessoa e graça moura como autores com muito reconhecimento num país onde o interesse pela língua portuguesa cresce e onde «portugal pode ser um parceiro muito importante de ligação à europa porque a política cultural com espanha sempre esteve marcada por uma atitude colonialista».

portugal beneficia ainda de um factor de exotismo, num país onde a televisão dispensa legendas e nem se ouve a voz de estrelas de hollywood. por isso, os grupos de estudantes de colégios que enchiam o pavilhão de portugal nos dias de semana faziam-se fotografar não só com os escritores, mas também com jornalistas portugueses a quem pediam para debitar frases para os seus iphones.

o embaixador português

filipe, o voluntário que acompanhava os visitantes do aeroporto ao hotel e que falava um brasileiro impecável aprendido na universidade, orgulhava-se do novo aeroporto internacional de bogotá e comentava que há meia dúzia de anos, quando a imagem da colômbia era as farc e o narcotráfico, um turista nesta megalópole de mais de 7 milhões de habitantes ‘fazia parar o trânsito’.

por isso, bogotá está cheia de curiosidade por um país do outro lado do atlântico pequeno e mítico e idolatra escritores também eles grandiloquentes e dados à mitologia: um nobel, um poeta múltiplo, um arauto de uma epopeia marítima.

jorge fegali, o jovem de 29 anos embaixador do pavilhão de portugal, é um exemplo disso. estudou josé saramago no colégio, mas o que o leva a ser a alma do pavilhão acolhendo e dirigindo as multidões de forma esfusiante como um mc (mestre de cerimónias) profissional, também vem de uma ligação mitológica. «a magia de portugal chegou-me porque os meus pais me conceberam em lisboa na lua de mel e sempre me falaram de um país maravilhoso. mais tarde quando vi mais imagens na net percebi que o que eles me contavam ainda era pouco». a noite anterior ao casting para ser guia no pavilhão de portugal, passou-a jorge sem dormir.

«quando vi este pavilhão, onde se pode imaginar a água, a areia, as ondas, senti-me feliz e muito orgulhoso por participar. por isso, o entusiasmos que ponho a receber as pessoas tem a ver com a minha paixão por portugal». um país mítico, lá está, onde o denominado ‘embaixador do pavilhão de portugal’ que trabalha como apresentador de eventos e locutor numa televisão local de bogotá, nunca esteve.

um pavilhão com conceito

há factores exógenos à própria literatura para a grande popularidade da presença portuguesa (diz-se que na noite em que a entrada na feira foi gratuita, na sexta-feira, no pavilhão português estiveram 60 mil visitantes). é que a literatura também se come com o olhos e enquanto nos outros pavilhões satélite os livros são expostos sumariamente em bancas forradas de pano, o pavilhão português, à boca da feira, ostentava quase a dignidade de uma expo. tinha um conceito arquitectónico e design, submetidos ao tema extraído de vergílio ferreira ‘ da minha língua vê-se o mar’ (desde mi idioma se ve el mar).

projectado pelo gabinete português forstudio, nos 3.000 m2 foram delineados percursos e espaços diferenciados separados por muros de pladur de 1,60 m de altura, para que se pudesse ver o horizonte. o tecto foi trabalhado com pendões de pano branco que produziam a imagem de velas de caravelas. a imagem gráfica era a de um azulejo azul e branco desconstruído, as cores do mar, e, no percurso inverso, o vermelho e verde da bandeira portuguesa.

os espaços – agora já desmontados – incluíam um auditório com capacidade para 70 pessoas, sempre amplamente ultrapassada, mesmo em sessões sobre a literatura seiscentista, sobre fernando pessoa, ou o que fosse, uma zona infantil com animação temática permanente, outra zona apropriada pelo turismo de portugal onde se mostravam slides dos monumentos e glórias naturais portuguesas. e havia ainda um pequeno restaurante gourmet decorado com os peixes e santolas da fábrica bordallo pinheiro que foram oferecidas a maria clemencia santos, a primeira dama colombiana fascinada com a faiança das caldas e que quando veio a lisboa deixou felizes os empregados da loja vista alegre no chiado.

el soroche

no espaço gourmet gerido pelo grupo pestana havia uma apetitosa representação da comida portuguesa: um estufado de borrego, um caldo de polvo, frutas em vinho do porto e mini-pastéis de nata, na verdade réplicas, que na altitude de 2.640 metros de bogotá a massa folhada atinge um ponto diferente. é el soroche que também ataca a pastelaria e que, alegadamente, segundo se dizia na comitiva de portugueses em bogotá, atingiu a incansável pílar del rio que ao fim de três dias de solicitações permanentes sucumbiu à falta de oxigénio das alturas e à roda viva de levar saramago a todos os cantinhos.

zeferino coelho, o homem que desde sempre editou saramago na caminho, recorda que o nobel português está todo editado em castelhano. «há aqui um culto. veio um senhor falar comigo que me disse que leu tudo o que saramago escreveu». a homenagem no centro cultural garcia márquez, onde está a maior livraria de bogotá, «estava completamente cheia».

o nosso homem em bogotá

convidado por francisco josé viegas e confirmado pelo seu sucessor na secretaria de estado da cultura, jorge barreto xavier, é ao comissário do pavilhão português, o luso- colombiano jerónimo pizarro, que se atribui o sucesso da operação portugal na colômbia. jorge barreto xavier, no momento em que há mais de um mês convidou os jornalistas portugueses que iriam à filbo, para lhes apresentar o projecto, salientou que a operação foi montada no tempo recorde de oito meses e com o orçamento limitado de 2 milhões de euros – dos quais 800 mil de investimento público – graças à facilidade com que este académico, actualmente professor na universidade dos andes, e que durante uma década investigou pessoa em portugal , poderia agilizar o processo de levar uma embaixada de 23 escritores portugueses e organizar uma programação intensa que ainda mexesse um pouco com esta megalópole. da parte da iniciativa portuguesa, houve ainda o apoio à tradução por parte de direcção geral do livro, dos arquivos e das bibliotecas, a 32 título portugueses publicados por editoras colombianas.

para jerónimo pizarro, que durante a feira recebeu a notícia de ter recebido o prémio eduardo lourenço pelos ensaios sobre pessoa publicados em portugal, acredita que, fechada a filbo há ainda um futuro para as letras portuguesas.«foram feitas muitas doações de livros a bibliotecas públicas da cidade e houve troca de obras entre a biblioteca luís angel arango e a biblioteca nacional de portugal. das editoras que publicaram obras portuguesas, há pelo menos duas ou três que vão continuar a publicar autores portugueses. e há duas, a tragaluz e a taller ed rocca, que têm já colecções abertas». depois de fechada a filbo, não é só empacotar o material. jerónimo pizarro adianta que «o sucesso da feira vai ver-se se daqui a seis meses continuarmos a trabalhar activamente com portugal».

telma.miguel@sol.pt

*o sol viajou a convite da secretaria de estado da cultura