Fronteiras. Europa à mercê de ditadores

Para guardar a “fortaleza Europa”, Bruxelas sempre recorreu aos préstimos de regimes autoritários, que nunca se coibiram de usar isso como moeda de troca. Agora, com Lukashenko a abrir as portas a iraquianos rumo à Lituânia, vemos essa pressão em ação, como já ocorrera com a Turquia ou Marrocos.

Normalmente, a Lituânia, na fronteira este da União Europeia, não costuma ser um grande ponto de entrada de migrantes indocumentados. Anualmente, entram umas dezenas no país através da Bielorrússia. Mas, este ano, subitamente, esse número subiu para mais de 2600, com uns 1100 migrantes a chegarem só em julho, levando os deputados lituanos a aprovar a construção de uma barreira na fronteira, esta terça-feira, acusando o regime de Alexander Lukashenko de usar imigrantes como arma numa “guerra híbrida” contra a UE, nas palavras do Presidente lituano, Gitanas Nauseda, citado pelo Washington Post.

São termos belicosos, que quase fazem esquecer que falamos do movimento de seres humanos. Mas o facto é que a decisão da Europa de manter as suas portas fechadas com apoio de regimes autoritários à sua volta deixou Bruxelas exposta à pressão desses mesmos regimes. Veja-se o pânico em Espanha, quando Marrocos abriu as suas fronteiras com o enclave de Ceuta, em maio, como vingança por Madrid aceitar que Brahim Ghali, líder da Frente Polisário, recebesse tratamento contra a covid-19 no país, ou a tragédia no mar Egeu, quando a Turquia abriu as portas para a Europa aos refugiados no seu território.

No que toca à Bielorrússia, a escala das movimentações é incomparável com o que vemos noutras rotas migratórias (ver infografia pág. 19) – afinal, só entre 2015 e 2016, no pico da crise migratória, com a Síria em estado de total colapso, mais de 1,4 milhões de pessoas atravessaram o Mediterrâneo. Mas o caso ilustra de alguma forma o imbróglio em que a União Europeia está.

“A única hipótese de controlar verdadeiramente esses fluxos migratórios é através disso, a UE não tem hipótese, tem de alimentar esses regimes ditatoriais”, considera Alexandre Guerreiro, ex-espião e investigador da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL). “Era o que fazia com o Gaddafi, na Líbia, pela facilidade de acesso a Lampeduza e ao resto de Itália, ou a Malta, era a forma possível de o conter. Se nós olharmos para Marrocos, vemos uma outra ditadura também, bem como na Turquia, que tem ganho relevância nesse sentido”.

“Na Europa de Leste a perpetiva já me parece completamente diferente, por causa da Rússia ainda servir com Estado-tampão para a circulação terrestre”, continua Guerreiro, que se doutorou Direito Internacional Público especializando-se nesta região. “Se não houvesse a Rússia a fazer isso, e houvesse o facilitismo que vemos por exemplo na Turquia em relação ao acesso ao continente europeu, aí tinhamos um problema ainda maior para resolver”.

Milhares deixados num limbo Para o Governo da Lituânia, um país com quase três milhões de habitantes, a chegada de alguns milhares de pessoas ao seu território – temem que o número chegue aos 10 mil até ao final do verão – está a ser tratada como uma emergência nacional. O resultado será mais uma barreira, num continente que se orgulhava de ter derrubado os seus muros com a queda do bloco soviético, estando prevista a construção de uma vedação de metal com quatro metros de altura e arame farpado no topo, ao longo da fronteira com a Bielorrússia, com um custo estimado em cerca de 152 milhões de euros. “Sem esta barreira física é impossível proteger as nossas fronteiras, é muito claro”, justificou Agne Bilotaite, ministro do Interior da Lituânia, citada pela Reuters.

Além disso, começou a ver-se uma política de escorraçar para fora do país os imigrantes que têm chegado à Lituânia, oriundos sobretudo do Iraque – já a Bielorrússia fechou as suas fronteiras, pelo menos para quem entra, recusando aceitar os os migrantes de novo no país e deixando-os num limbo. E ao mesmo tempo que o Parlamento lituano aprovou a nova vedação, com 84 deputados a favor, apenas um contra e cinco abstenções, também aprovou uma lei que torna mais rápido verificar pedidos de asilo, podendo os requerentes até ser deportados enquanto o seu processo decorre, tendo também autorizado a detenção de migrantes durante seis meses sem qualquer ordem judicial. É algo que viola tanto a constituição nacional como os direitos humanos, acusaram organizações como a Cruz Vermelha lituana.

Até agora, os migrantes indocumentados apanhados na Lituânia nos últimos meses têm sido colocados em campos de refugiados improvisados, construídos à pressa. Foram descritos como alojamentos pouco confortáveis pelas autoridas lituanas – “Não são condições de hotel de cinco estrelas”, descreveu o ministro dos Negócios Estrangeiros, Mantas Adomenas, numa entrevista citada pelo Washington Post.

Na prática, não há grande esperança para estas pessoas, dado que das 230 aplicações para asilo já processadas pela Lituânia, zero foram aprovadas, esclareceu Adomenas.

Já a ministra do Interior lituana, Agne Bilotaite, avaliou à distância que os migrantes que estão a chegar, como um todo, “não são verdadeiros requerentes de asilo”, mas sim peões nas mãos de Lukashenko, “ferramentas para usar contra a Lituânia”. E acrescentou que o objetivo da nova legislação “é enviar aos iraquianos e a outros a mensagem que esta não é uma rota conveniente, que as condições não são boas aqui”.

Enquanto isso, Bruxelas faz questão de garantir que não financia a construção de quaisquer barreiras ou vedações na Europa, tendo apenas enviado reforços e recursos para os guardas fronteiriços lituanos, salientando que a fronteira da Lituânia é um problema da UE inteira. Sempre apontando o dedo a Lukashenko. “Ele está a usar pessoa como um ato de agressão contra a Lituânia, isto é completamente inaceitável e pede uma forte solidariedade entre todos os Estados membros da UE e a comissão”, assegurou Ylva Johansson, comissária europeia para os assuntos domésticos, perante as câmaras de televisão.

A verdade é que as ameaças de Lukashenko – furioso com as sanções europeias de que foi alvo, após desviar um voo da Ryanair, que seguia da Grécia para a Lituânia, de maneira a deter um jornalista crítico do regime bielorrusso, Roman Protasevich, e sua namorada, Sofia Sapega – só aumentam o receio dos seus países vizinhos.

“Eles exigem que os protejamos do contrabando e do tráfico de droga. Mesmo do outro lado do Atlântico ouvimos apelos para ajudar a deter materiais nucleares para que não cheguem à Europa”, declarou, no final de junho, após assistir a uma parada militar, num discurso citado pela agência noticiosa bieolorrussa BelTA. “Vocês estão a lançar uma guerra híbrida contra nós e exigem que nós vos ajudemos como faziamos antes?”, continuou o líder bielorrusso, mais conhecido como o “último ditador da Europa”.

O acordo com os iraquianos Antes de mais, importa explicar como é que tantos migrantes iraquianos foram parar à Bielorrússia e daí passaram para a Europa. “O problema teve início em 2017”, considera Alexandre Guerreiro. “O regime de Lukashenko, em virtude de estar sob sanções, e por estar muito fechado ao turismo não-russo, encontrou com a estabilização do Iraque uma forma de atrair outro tipo de mercados”.

Como assim? “Por exemplo, os iranianos, para conseguirem entrar em território europeu – e isso vê-se até com jogadores de futebol, empresários – muitas vezes passam pela Rússia, porque são aqueles que facilitam a emissão de vistos, não só de turismo mas também de estadia. Depois, uma vez na Rússia, tentam ir para outras paragens”, exemplifica o investigador da FDUL. “Já os iraquianos fizeram um acordo com a Bielorrússia de Lukashenko para facilitar o acesso a vistos de turismo para a Bielorrússia”.

“A maior parte viaja de avião, são viagens que são extremamente caras, podem custar até 15 mil dólares, porque estamos a falar de um programa de emissão de vistos em que os iraquianos têm de deixar uma garantia na Bielorrússia de que quando vão algum lado depois vão regressar ao seu país. E essa garantia normalmente ronda o equivalente a entre três e quatro mil euros. Se eles não cumprirem, esse valor reverte para a Bielorrússia, é esse o acordo”, explica. Ou seja, viessem os iraquianos para fazer turismo ou não, “o Lukashenko ganhava sempre alguma coisa”.

A verdade é que não é qualquer pessoa que tem dinheiro para essa viagem. “É aqui que entram as redes de crime organizado, que vão beneficiar com isso”, nota Guerreiro – nem que seja a exigir o dinheiro de volta através de serviços, com juros naquilo que se pode tornar uma dívida impagável. Para esses, depois, é uma questão de passar a fronteira da Lituânia, até agora pouco guardada.

É um negócio que medra com o desespero de gente que só procura uma vida digna e está disposta a dar tudo o que tem para a obter. E deixa bastante claro que a oferta do Governo lituano, de dar 300 euros a migrantes que regressem aos seus países de origem, segundo a LRT, não chegará para os dissuadir.