Regiões autónomas: um atropelo pandémico?

Ao longo dos últimos anos, e no âmbito da pandemia da covid-19, as regiões autónomas ganharam cada vez mais controlo sobre os seus assuntos. Quão autónomas são as autonomias?

Portugal é um país plural, universal, constituído por uma parte ‘continental’ e uma parte ‘insular’. A Constituição consagra os arquipélagos dos Açores e da Madeira como regiões autónomas, com os seus próprios governos e assembleias regionaise uma série de poderes que permitem um estatuto próprio em relação às  orientações que emanam de Lisboa.

Com a pandemia da covid-19, a autonomia foi posta ainda mais em evidência, principalmente com a diferença de critérios que muitas vezes se fez sentir nas restrições às viagens, em que, por vezes, chegou a ser possível que, simultaneamente, visitantes estrangeiros viajassem até à ilha da Madeira, mas não para Portugal continental. Em causa estiveram, principalmente, questões como o turismo da ilha e a diferente incidência do vírus nas regiões autónomas, comparativamente com  Portugal continental.

Ainda assim, há também uma realidade que está em jogo e que anda de mãos dadas com esta nova ‘situação’: até onde vai a autonomia dos Governos regionais. 

É que, para além da inclusão em corredores aéreos internacionais ao contrário do continente, a Madeira voltou a diferenciar-se no combate nacional à pandemia da covid-19 no âmbito da vacinação dos mais jovens. Enquanto o Governo central se debatia sobre as questões em torno da vacinação de jovens entre os 12 e os 15 anos, abrindo o autoagendamento para aqueles com 16 e 17 anos de idade, a ilha da Madeira tomou uma posição mais direta sobre o assunto. Os ‘open days’ tornaram-se um sucesso pelo Funchal e não só, onde os jovens entre os 12 e os 17 anos puderam dirigir-se aos centros de vacinação, sem marcação prévia, para serem inoculados contra o novo coronavírus. Isto sem contingentes especiais ou grupos prioritários. Uma realidade muito diferente da vivida no continente, onde as preocupações e os apelos fizeram o Governo central colocar um travão na vacinação de jovens entre os 12 e os 15 anos.

foi uma das medidas mais ousadas do Governo madeirense, que decidiu tomar as rédeas da situação perante o estudo e a análise do Governo central sobre o assunto, criticando mesmo o Executivo de António Costa de levar a cabo uma «polémica bizantina», como a definiu Miguel Albuquerque, presidente do Governo Regional da Madeira, citado pela Rádio Renascença. «A solução é a vacina, porque está em causa a saúde dos jovens e a possibilidade de propagação a outras faixas etárias», começou por explicar o dirigente madeirense, antes de criticar o Governo central: «Não estou a perceber essa questão bizantina à portuguesa, que é uma coisa que adoram fazer no país. Por isso é que o país vai ficando para trás e nunca se decide nada.»

O Nascer do SOL tentou obter respostas de Miguel Albuquerque sobre estes temas, e particularmente sobre os limites da autonomia, mas em vão.

Silêncio cúmplice

Quem não se furtou a falar sobre a «intensificação» dos poderes autonómicos das regiões foi o constitucionalista Paulo Otero. Em declarações ao Nascer do SOL, começou por explicar que, de alguma forma, o contexto pandémico tem servido para uma «conjugação de interesses diferentes, mas convergentes no sentido de ampliar os poderes de intervenção das regiões autónomas, diminuindo, ou limitando, ou até violando, a reserva dos órgãos de soberania». 
O constitucionalista não poupou nas críticas à «ultrapassagem» pelos Governos Regionais das «esferas de soberania nacional», acusando que «toda a configuração das competências dos órgãos constitucionais sofreu alterações de facto, contrárias às normas da constituição», com base no contexto pandémico.

«O Governo [da Madeira] tomou decisões sobre matéria de reserva do Parlamento [nacional], sem para isso estar autorizado», começou por afirmar Paulo Otero, para quem as regiões autónomas, de forma «ainda mais grave, invadem esferas de competência dos órgãos de soberania, neste caso, a Assembleia da República».

Este atropelo, no entanto, não surge sem uma vantagem para o Governo central: «Há algum aproveitamento, de algum modo, com o silêncio cúmplice da República, porque são medidas ingratas, impopulares e odiosas, como a quarentena, ou a submissão a testes quando viajam, até do continente para as ilhas. E as medidas restritivas, que incidem sobre direitos, liberdades e garantias, não têm habilitação. Porque é de uma esfera reservada à Assembleia da República», começou por defender Paulo Otero, antes de acusar os Governos Regionais de, durante o Estado de Emergência, «apagar» a figura do representante da República, que é o órgão com competência para articular com o Governo central. «Foi pura e simplesmente esquecido, porque o Governo Regional é o titular do poder executivo regional, e as medidas são, de algum modo, odiosas e restritivas, e o representante da República não viu com grande incómodo que fossem outros a tomar essas medidas. Houve aqui uma conjugação de interesses diferentes, mas convergentes», concluiu Otero.

Tribunais com trabalho

Estes atropelos, contudo, poderão dar azo, a curto prazo, a uma «avalanche» de casos judiciais, advertiu o constitucionalista, já que, reiterou, «o Governo Regional tem decidido sobre matérias que não lhe correspondem».
Este «aproveitamento» não deverá passar do contexto pandémico, augurou Paulo Otero, colocando o ónus sobre a «excecionalidade» desta situação. «Se fosse o Governo da República a tomar estas medidas pouco agradáveis, podiam suscitar um grau de oposição superior, agora, sendo os Governos regionais, é menor. Se as pessoas querem impugnar judicialmente, não é contra o Governo da República, mas sim contra o Regional. Quem vai pagar as contas é o Governo regional, e não o Governo central», acrescentou o constitucionalista.

Autonomia saudável 

Do outro lado do espetro, o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia defende que «estamos a assistir a um saudável exercício da autonomia regional, sobretudo no plano administrativo», definindo a situação como «desejável», devido à existência do sistema regional de saúde. «Assim se comprova, além do mais, o acerto de se ter optado, em 1976, por um regime de autonomia regional, conferindo mais poderes de governo às ilhas, que agora são adequados nesta situação de crise sanitária», defendeu Bacelar Gouveia.

O constitucionalista, tal como Paulo Otero, não esqueceu «alguns erros, como o caso da imposição da máscara no espaço público como foi exigida na Madeira, sem a cobertura por lei nacional, sendo uma restrição de uma liberdade que só o Parlamento pode fazer». Ainda assim, defendeu que «estas práticas vieram mostrar que a autonomia pode ser saudavelmente reforçada nas áreas da intervenção social, que foram sempre, aliás, aquelas que mais justificaram a criação das Regiões Autónomas, áreas sociais que se encontram diretamente ligadas ao combate à pobreza e às assimetrias socioeconómicas».

«Esta pandemia veio criar novos pontos de atrito, como sucedeu com a aplicação, nos Açores, da situação de calamidade e, em geral, com a aplicação das limitações relativas à quarentena», continuou Bacelar Gouveia, antes de relembrar que «as regiões autónomas não são ‘politicamente independentes’», um conceito que o mesmo garante não tem «a ideia de que o queiram ser». «É preciso saber dissociar o conceito de independência do de ‘autonomia político-legislativa’. Acho normal que no balanço da pandemia um dos temas seja o do alargamento dos poderes regionais», garantiu ainda o constitucionalista, que defendeu que, num caso em que as regiões viessem a ter um maior poder autónomo, as consequências seriam «boas, porque estariam ao serviço de dois valores muitos relevantes na boa governação: a maior legitimidade democrática das decisões e a sua maior eficiência, porque decretadas por quem de mais perto conhece os problemas e, por isso, também as soluções».