“Pelos meus cálculos, foram lançados 14 cadáveres ao mar por dia durante 350 anos”

Em ‘Escravidão’, Laurentino Gomes conta-nos a história deste flagelo, com todos os seus horrores e subtilezas. Ao Nascer do Sol, o autor explica como portugueses e brasileiros criaram um sistema que oscilava entre o chicote e a recompensa. Cheio de possibilidades, ‘mas nem por isso bonzinho’.

Jornalista com 45 anos de experiência, autor do estrondoso sucesso 1808 (que leva o sugestivo subtítulo ‘Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil’), Laurentino Gomes dedicou-se agora a estudar o tema da escravatura – ou escravidão, como se diz no seu país. No Brasil, será uma trilogia; em Portugal, onde o autor se encontra atualmente a escrever o terceiro e último volume, isso dependerá do acolhimento de Escravidão – A história de um dos negócios mais rentáveis do mundo que foi também uma das maiores tragédias humanas, recentemente publicado pela Porto Editora.

A propósito deste livro, o escritor falou com o Nascer do Sol sobre um «massacre quase em escala de holocausto», sobre palavras que estão a tornar-se «politicamente incorretas» (como escravo, mulato ou denegrir) e sobre as suas viagens por África para conhecer alguns dos locais-chave do tráfico negreiro. Diz que a escravidão não tem só a ver com o passado, e conclui: «A ausência de um projeto abolicionista completo está na raiz dos maiores problemas brasileiros hoje».

Gostaria de começar com uma pergunta sobre o título do livro que pode parecer um pouco prosaica. Diz-se ‘escravidão’ ou ‘escravatura’? Escravidão é a forma mais usada no Brasil?

Realmente em Portugal diz-se ‘escravatura’. Mas os editores portugueses decidiram manter a grafia original. Como o livro faz essa ponte transatlântica talvez a escolha tenha sido muito boa. No Brasil se usa mais escravidão. Raramente alguém fala em escravatura.

Neste campo o vocabulário brasileiro começa a ganhar terreno em Portugal. Sempre dissemos ‘esclavagismo’, por exemplo, mas agora ouço muita gente a usar a palavra ‘escravismo’.

Essas nomenclaturas ligadas à história do Brasil e de Portugal, principalmente no caso da escravidão, estão a mudar o tempo todo. Palavras que eram de uso corrente agora estão a tornar-se politicamente incorretas. Especialmente no Brasil. Vou dar um exemplo. Praticamente 100% dos livros e documentos históricos que li durante a pesquisa usam a palavra escravo. E hoje no Brasil se usa a palavra ‘escravizado’. O que é um problema, porque no cânone da língua portuguesa não existe escravizado como substantivo nem como adjetivo, apenas como particípio do verbo de escravizar.

Qual é a diferença?

O argumento de quem defende essa nova forma de escrever é que o substantivo escravo denotaria uma vocação inata. A pessoa nasceu para ser escravizada. Enquanto o ‘escravizado’ seria uma coisa circunstancial. Forçado por outra pessoa. Para escrever o livro, isso foi um desafio enorme. No passado se falava de ‘mulato, mulata’. Agora já não se pode mais falar mulato e mulata porque existe uma teoria de que isso seria derivado de mula, um animal híbrido. O verbo ‘denegrir’, que também se usava com certa naturalidade no passado, agora também remete para alguma coisa pejorativa. Para escrever este livro, às vezes eu me sentia pisando em ovos, com muito cuidado. [risos] Como é que eu me defendo? Procuro ser transparente com os leitores. Logo na introdução explico que existe essa discussão de natureza semântica e linguística. Mas usei com certa naturalidade escravo e escravizado, dependendo da conveniência de cada momento da escrita.

Sem ter excesso de escrúpulos, por assim dizer?

Como escritor me cabe respeitar os cânones da língua portuguesa. Não vou reinventar o idioma agora para satisfazer determinadas expectativas de um ou outro grupo social. Mas acho que alertar as pessoas de que a discussão sobre racismo e herança da escravidão tem sido tão intensa ao ponto de afetar o vocabulário é importante.

Sendo este um tema tão explorado, tão estudado, a sua pesquisa limitou-se a confirmar ou que já sabia ou teve surpresas e revelações?

Existe espaço para surpresas sempre. Este é um tema muito dinâmico, controverso, politicamente sensível – especialmente no Brasil – e algumas coisas me surpreenderam. Não exatamente factos, personagens, conjunturas e circunstâncias já conhecidas, mas a importância política que esse assunto adquiriu no início do século XXI. No Brasil construímos alguns mitos a respeito de nós mesmos. Como se a escravidão brasileira tivesse sido mais patriarcal, benévola, boazinha, branda, quando comparada com a dos Estados Unidos.

E não foi?

Não. A escravidão foi absolutamente cruel, tão violenta como em qualquer outro território escravista. Isso foi um mito do Gilberto Freyre, da Casa-Grande & Senzala, que deu origem a um segundo mito muito forte, de que o Brasil seria uma grande democracia racial, o que absolutamente não é verdade. O Brasil é um país preconceituoso, intolerante, e isso se revela não só em palavras – as injúrias raciais que alguém grita durante uma partida de futebol para ofender um jogador negro –, mas principalmente na persistência de um país segregado. Segregado na geografia, segregado na paisagem, segregado nos indicadores sociais, nas estatísticas, nos números, no comportamento. É o Brasil branco versus o Brasil negro. Esse tema elegeu um Presidente da República em 2018. O Jair Bolsonaro usou linguagem racista e ofensiva em relação aos negros durante toda a campanha eleitoral – e ainda assim as pessoas o elegeram. Por isso eu tenho insistido que a principal forma de racismo no Brasil não é explícita, não é pública, é cúmplice e silenciosa, de pessoas que jamais admitiram ser racistas mas na hora de depositar o voto na urna elegem o projeto de poder racista.

O Laurentino fala quase como se tivesse que arcar com a culpa de ser branco aos ombros…

Quando decidi escrever sobre escravidão, eu tinha alguns medos. Um deles era justamente como a população negra ou afrodescendente reagiria à ideia de um homem branco falando sobre esse assunto. No Brasil existe uma discussão muito forte sobre o chamado ‘lugar de fala’: quem tem a prorrogativa de falar, de escrever, de interpretar sobre determinados temas. Mas hoje se dissipou. É ao contrário. Acho que quem tem de falar de escravidão e de racismo no Brasil são os brancos. Porque os negros vêm falando sobre isso regularmente, vêm expressando as suas dores, os seus sofrimentos. Diria que mais do que um direito de falar, é um dever. É essencial fazer essa segunda abolição que jamais foi feita.

E como se faz isso?

Combatendo desigualdades sociais, acabando com a segregação racial. Todos os brasileiros, independente da cor da pele, deveriam se dedicar a esse assunto. Até porque todos nós que estamos vivos hoje no Brasil temos alguma coisa a ver com a escravidão. Ou foram escravizados ou foram escravizadores ou, como no meu caso, descendente de imigrantes italianos que chegaram ao Brasil para substituir a mão-de-obra cativa na colheita do café, no século XIX. Então a escravidão é assunto de todos. Especialmente porque a escravidão não tem só a ver com o passado, tem a ver com o futuro do Brasil. A ausência de um projeto abolicionista completo – esse projeto de Brasil que ficou abortado no século XIX – está na raiz dos maiores problemas brasileiros hoje.

O Brasil foi o país que recebeu mais escravos – perto de cinco milhões. Vê essa segregação ainda como uma herança da escravidão?

A escravidão não aconteceu por acaso. Existiu uma ideologia que começou a ser construída desde o século XIII, XIV, XV nas bulas papais, nos tratados filosóficos, nos sermões e textos dos padres jesuítas, que defendiam a ideia de que os negros africanos eram inferiores – selvagens, bárbaros, praticantes de religiões demoníacas – e que portanto eram candidatos naturais à escravidão. Existe um famoso sermão do Padre António Vieira em que ele afirma que os negros deviam agradecer a Nossa Senhora do Rosário pela oportunidade de estarem no Brasil. Essa noção de que os negros são inferiores e que não merecem as mesmas oportunidades continua. Não é pelo facto de o Brasil ter acabado formalmente com a escravidão com a Lei Áurea de 13 de maio de 1888 que o assunto ficou no passado. Pelo contrário, ele se perpetua na realidade brasileira hoje. Pobreza ainda é sinónimo de negritude: quanto mais negra for uma pessoa, maior é a chance de ser pobre e analfabeta. Quanto mais branca e descendente de europeus, principalmente se for de imigração recente, maior é a chance de ser rica e ter boas oportunidades.

Porém os europeus não inventaram a escravatura. Ela já estava bastante enraizada em África, não estava?

Antes de responder diretamente à sua pergunta, creio que é importante lembrar que antes da escravidão negra no Brasil houve a escravidão indígena. Os portugueses, tão-logo chegaram à Baía, começaram a promover a escravidão indígena. Um episódio muito pitoresco que eu conto no primeiro volume é o da nau Bretoa, de Fernando de Noronha, que partiu de Salvador em direção a Lisboa, em 1511, trazendo uma carga de peles de onça-pintada, papagaios, toras de pau-brasil e de indígenas para leiloar na capital portuguesa.

Isso para mim foi uma surpresa, porque só imaginamos o tráfico a acontecer no sentido contrário, os escravos a atravessarem o Atlântico de África para o Brasil.

E alguns anos depois há o registo de uma outra carga de indígenas brasileiros que foram leiloados em Sevilha, na Espanha. Os portugueses tentaram, num primeiro momento, escravizar os índios. Porque é que a escravidão indígena ‘fracassou’? Basicamente pela mesma razão do tumulto que estamos vivendo atualmente com a covid-19. Junto com os europeus chegaram germes, vírus, bactérias, doenças contra as quais os indígenas não tinham imunidade. E o resultado foi um massacre. Basicamente houve um choque epidemiológico entre continentes – essa expressão é do historiador Luiz Felipe de Alencastro – que até então viviam separados. Morreram um milhão de indígenas a cada cem anos no Brasil, até à chegada da corte de D. João em 1808. Essa foi uma razão. Mas, ainda segundo Luiz Felipe de Alencastro, não havia um mercado organizado de fornecimento de mão-de-obra cativa no Brasil. Não havia feiras, rotas de comércio, preços definidos. Isso já existia na África desde muito antes da chegada dos portugueses. Aonde houve ser humano na face da Terra, houve escravidão, desde a mais remota Antiguidade. No livro do Génesis lemos a história de José que foi vendido para o Egipto pelos seus irmãos. O que aconteceu depois da ocupação da América pelos europeus foi um acirramento das rivalidades internas na África que desorganizou a geografia, as relações políticas e as estruturas sociais. Surgiu uma elite militar africana, e esses líderes, associados aos portugueses, começaram a receber armas, dinheiro, munições, mercadoria, para promover guerras contra os seus vizinhos. O resultado era a produção de centenas de milhares de escravos, os guerreiros derrotados que iam abastecer os porões dos navios negreiros. De facto havia escravidão na África, isso não é novidade alguma, mas houve um acirramento, uma explosão no processo de escravização, em virtude da procura por mão-de-obra cativa por parte dos colonizadores europeus na América.

Mudou a escala, por assim dizer?

É isso.

Pode falar-me um pouco sobre as condições nos navios negreiros? Eram sempre péssimas ou variava?

Nem sempre eram péssimas. Um grande pensador chamado Abdias do Nascimento escreveu um livro chamado O Genocídio do Negro Brasileiro. Sempre relutei um pouco aceitar essa ideia do genocídio, porque, do ponto de vista estritamente conceptual, significa a intenção deliberada de matar pessoas, povos, etnias. Esse não era o objetivo do tráfico negreiro, ao contrário: quanto mais pessoas sobrevivessem, maior era o lucro do traficante. Agora, de facto houve um massacre quase em escala de holocausto devido ao tráfico negreiro. Era preciso embarcar essas pessoas na África, em números muito grandes, atravessar o Oceano Atlântico em condições absolutamente precárias. A comida se estragava, a água faltava, havia rebeliões, doenças que partiam junto com os escravos – disenterias, febre amarela, malária – e que provocavam um grande morticínio a bordo. Isso foi melhorando ao longo do tempo. No século XVI estima-se que a taxa de mortalidade fosse de 20%. No século XIX, quando os ingleses começaram a combater o tráfico de escravos, os traficantes começaram a usar navios mais rápidos, inclusive navios a vapor, as condições de higiene a bordo melhoraram muito, às vezes tinham médicos que acompanhavam as viagens negreiras, e aí a taxa de mortalidade teria se reduzido para algo em torno de 7%. Isso variava também de acordo com a distância. Quanto mais distante, mais demorada a viagem, e maior era taxa de mortalidade. A Coroa Portuguesa também fez intervenções importantes, determinando quanto de água os capitães deviam embarcar, quanto de comida, quanto espaço. Mas nem sempre isso foi respeitado porque era muito tentador para o capitão de um navio negreiro colocar um número superior ao contratado, porque venderia clandestinamente no Brasil, no Caribe ou nos Estados Unidos e embolsaria esse dinheiro. Havia muito embarque clandestino de escravos e o resultado foi uma taxa de mortalidade muito impressionante. Pelos meus cálculos, em média foram lançados 14 cadáveres ao mar todos os dias. Ao longo de 350 anos. Um milhão e 800 mil pessoas, um número impressionante. Mas de facto o objetivo não era matar as pessoas, era preservar a sua vida e explorar a sua capacidade produtiva no Brasil e no restante da América.

Uma vez que os escravos africanos não falavam as línguas europeias, como era feita a comunicação? Havia intérpretes?

Sim, havia. A língua franca no litoral da África era o português, que funcionou no comércio de escravos mais ou menos como o inglês funciona hoje no mundo todo. Os reis africanos tinham intérpretes contratados, os tangomões, que eram portugueses, às vezes degredados por crimes ou por razões religiosas, ou que ficavam lá por vontade própria, se casavam com mulheres africanas e se tornavam parentes dos chefes africanos. Em Luanda e no litoral do Brasil tinha também professores especializados em ensinar rudimentos da língua portuguesa aos recém-chegados, e aí eles se tornavam o que se chamava ‘escravo ladino’. O ‘escravo boçal’, ou ‘preto novo’, era o que chegava e não sabia falar nada. O ‘escravo ladino’ já tinha um certo domínio da língua portuguesa e valia mais.

Ainda a propósito da linguagem, dado que os escravos não sabiam escrever, conseguimos saber o que pensava, o que sentia um escravo desses levados de África para o Brasil?

Tem alguns relatos muito esparsos, especialmente devido à mobilização do movimento abolicionista. Tem depoimentos de negros na Inglaterra, nos Estados Unidos…

Mas mais tarde, não?

Mais tarde. Do início pouquíssima coisa. Infelizmente essa é uma história que ficou no esquecimento. Com a exceção de relatos muito esparsos, não há o registo da dor do ponto de vista de quem a sofreu, das vítimas. Isso exige um grande cuidado e um grande discernimento, porque a história da escravidão é contada pelo olhar branco. Existem poucos relatos de pessoas negras escravizadas. No Brasil, a única biografia conhecida é de um escravo chamado Mohammah Baquaquá.

Nome interessante…

Ele é um escravo que saiu da região da atual República do Benim, vendido para Pernambuco, depois foi para o Rio de Janeiro, para Nova Iorque, Londres, se tornou abolicionista e escreveu a sua própria biografia, em que conta a captura em África, a travessia do oceano, as condições de vida no Brasil e a sua conversão – ele se tornou protestante. Depois tem relatos indiretos. Por vezes as pessoas escravizadas eram acusadas de feitiçaria ou de bruxaria no Brasil, e remetidas a Lisboa, onde prestavam depoimento à Inquisição portuguesa. Mas a imensa maioria – imensa – maioria das fontes é branca. E tem um viés do abolicionismo britânico, americano e depois brasileiro, no final do século XVIII e século XIX, que exacerba a crueldade do tráfico negreiro e da escravidão com o propósito de seduzir a opinião pública para a causa abolicionista. Mas eu diria que passado tanto tempo e com tantas fontes é possível tirar uma média e chegar a algumas conclusões razoáveis.

No seu livro refere ao exemplo do padre Pedro Claver, que «passou mais de 40 dos seus 74 anos de vida à espera dos navios negreiros que atracavam no porto de Cartagena das Índias», «descia aos porões escuros, fétidos, sem ventilação e, durante dias, dedicava-se a cuidar dos mais fracos: curava feridas, providenciava água, comida e agasalhos, confortava os desesperados». Este é um caso isolado ou a Igreja teve um papel na assistência aos escravos e no alívio das suas dificuldades?

Decidi abrir esse capítulo com a história do padre Pedro Claver, que é o santo padroeiro da Colômbia, não apenas pela sua história caridosa mas porque ele é uma exceção, uma raridade. A Igreja participou, usufruiu do sistema escravista. Primeiro ajudando a construir essa ideologia escravista – via a escravidão dos africanos como uma continuação da cruzada contra os mouros na Península Ibérica. O Rei de Portugal recebe do Papa bulas e autorizações para continuar a cruzada na costa da África, o que significava ocupar territórios, explorar riquezas, escravizar os africanos, em troca de um projeto de evangelização. A Igreja deu suporte ideológico. Mas também lucrou. O grande historiador britânico Charles Boxer conta que em Luanda existia um padre baptizador. Antes de embarcarem nos navios negreiros, centenas de pessoas eram baptizadas por atacado, mediante a aspersão de água benta, recebiam o novo nome, e ganhavam uma marca de ferro com uma cruzinha no braço ou no peito. Esse padre e as ordens religiosas recebiam dinheiro da Coroa portuguesa para executar esse trabalho. Também o Colégio dos Jesuítas em Luanda recebia escravos, pagos como dízimos pelos seus fiéis, que enviava para Salvador e Olinda, onde eram revendidos para os engenhos de açúcar. Até ao final do século XIX, até às vésperas da Lei Áurea, todas as ordens religiosas do Brasil – os beneditinos, os carmelitas, até a ordem mendicante dos franciscanos – eram donas de escravos. E o Papa Leão XIII só se pronunciou formalmente contra a escravidão depois da Lei Áurea, um posicionamento muito tardio.

A vida do escravo era uma sucessão de trabalhos e torturas ou havia momentos de descontração e até de prazer?

A possibilidade de pertencer a irmandades religiosas, de participar de festas e de batuques no fim de semana, de constituir família, de ter filhos, tudo isso fazia parte de uma negociação que eu diria que, longe de ameaçar o sistema escravista, o perpetuou, porque fez com que chegasse ao fim sem o enfrentamento, por exemplo, que houve na Guerra da Secessão nos Estados Unidos. O facto é que o Brasil foi o último país a acabar com o tráfico negreiro em 1850, com a lei Eusébio de Queiroz, e o último a acabar com a escravidão em 1888. O sistema escravista português e brasileiro era complexo – eu diria até bastante esperto, inteligente. Enquanto no Estado Unidos e no Caribe as relações eram duras e a barreira racial intransponível – por exemplo, nos EUA, a maioria dos estados proibiam formalmente a alforria e os casamentos inter-raciais –, no Brasil e nos territórios portugueses permitia-se ambos. O resultado foi uma miscigenação muito grande e as oportunidades de alforria eram enormes. Alguns historiadores mostram que havia um sistema duplo, de punição, de chicote, por um lado, e de recompensa, por outro. O escravo que se adaptasse ao sistema escravista, que cooperasse, que trabalhasse bem, que estivesse bem integrado na sociedade local, cumprisse todas as determinações da Igreja, tinha oportunidades concretas que incluíam a alforria. A imensa maioria das alforrias eram negociadas. Tecnicamente o escravo comprava a liberdade, comprava-se a si próprio. E pagava em prestações. Era um sistema complexo e um sistema repleto de negociações, de possibilidades, mas nem por isso um sistema ‘bonzinho’. A escravidão foi violenta, o principal mecanismo era o chicote.

Para o escravo liberto havia possibilidade de ascensão social?

A alta taxa de alforria é uma das características que diferenciam o sistema escravista português e brasileiro. Existiam muitas possibilidades. Por exemplo, na corrida do ouro e do diamante em Minas Gerais, o escravo que achasse uma determinada pedra de diamante e a entregasse ao feitor, em vez de esconder no cabelo ou de engolir, ganhava a alforria. Dependendo da quantidade de ouro que encontrasse também poderia conseguir a liberdade. Eram vários mecanismos de recompensa. Agora, a escravidão era um facto tão corriqueiro, tão banal, tão trivial na sociedade colonial, que todo o mundo que não fosse escravizado sonhava em ser dono de escravo. Inclusive negros alforriados. Os registos são inúmeros. O caso mais famoso é o de Chica da Silva. Nasceu escrava na atual cidade Diamantina, na época chamada Arraial de Tijuco, que era o centro de mineração de diamantes. Na adolescência foi comprada para fins de exploração sexual pelo contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira, se apaixonaram, tiveram 13 filhos, ela se tornou uma grande dama da sociedade diamantina e no fim da vida era uma grande dona de um numeroso plantel de escravos. No Brasil colonial os dois grandes símbolos de riqueza eram a propriedade da terra – o latifúndio – e a propriedade de gente. Quanto maior a propriedade da terra e quanto maior o número de escravos, maior era o status social e de riqueza. E isso incluía ex-escravos que tão-logo pudessem comprariam escravos. Às vezes era apenas um escravo – doente, velhinho – que provinha o sustento do alforriado. Tem histórias desse tipo. [risos]

E os escravos não usavam por vezes estratagemas, truques para se furtarem ao trabalho ou pelo menos para o tornarem mais leve?

Sim, há formas de resistência, como fingir não entender a língua portuguesa, não entender a ordem que era dada, fazer corpo mole, adiar o trabalho, ou deixar uma ferramenta esquecida ao acaso entre as engrenagens de um engenho de açúcar, isso era uma sabotagem que ia demorar 15 dias para o engenho voltar a funcionar – e o dono do escravo sabia disso. Acho que existem duas noções ultrapassadas hoje a respeito do papel do escravo no sistema escravista. Uma é a do negro perfeitamente adaptado ao sistema escravista, passivo, sem capacidade de reagir. Ou até tem o caso extremo de Henrique Dias, que é um negro que se alia aos portugueses para expulsar os holandeses na batalha de Guararapes, em Pernambuco. Ele não só está adaptado como age em favor do colonizador, é parte do projeto colonial.

Quase um colaboracionista…

A outra visão extrema que nasceu muito durante o século XX em razão das ideias marxistas e das lutas sociais é o do negro em permanente estado de rebelião. Pegando em armas, lutando, fugindo, formando quilombos [comunidades autónomas formadas por escravos que escapavam à sua condição]. Aí o herói é o Zumbi dos Palmares, que recusa o acordo que o tio dele, o Ganga Zumba, tinha feito com os portugueses, resiste até ao fim, é derrotado e morre no dia 20 de novembro de 1695. É um mártir. Ora, os novos estudos mostram que a imensa maioria dos escravos no Brasil nunca fugiu, nunca formou quilombo e nunca pegou em armas. Ao contrário, existiam estratégias que envolviam uma subtil negociação dentro do sistema escravista para conseguir espaços mínimos de sobrevivência. Para conseguir plantar uma horta, uma pequena lavoura no fundo da senzala, ou para constituir famílias e na hora da venda o marido não ser vendido para um lado e a mulher para outro. É uma negociação em andamento o tempo todo, entre escravizados e escravizadores, e que nem sempre significava pegar em armas, se rebelar e formar quilombos.

Falou-me dos mitos que se criaram. Um deles foi o dos quilombos? Diz-nos no seu livro que não eram os paraísos igualitários que certos historiadores imaginaram…

Os quilombos eram locais muito precários, viviam em constante sobressalto, no medo de serem atacados. E às vezes existiam inclusive relações escravistas dentro do quilombo. Um caso típico é o de Palmares. A documentação diz que escravos que fugissem dos engenhos de açúcar e voluntariamente aderissem ao quilombo eram livres, mas os quilombolas também faziam incursões nesses engenhos e sequestravam escravos que mantinham escravizados. As expedições portuguesas e holandesas registam a existência de escravos nos quilombos. Se o Zumbi pessoalmente era dono de escravos ou não é uma polémica muito grande. Os quilombos geralmente reproduziam as relações de poder e de status social existentes nos reinos africanos, ou o próprio sistema escravista brasileiro. Não eram lugares assim tão agradáveis como se imagina. A tentação marxista do século XX contribuiu para essa ideia idílica. Existe um historiador gaúcho chamado Décio Freitas que descreve Palmares como se fosse uma república socialista. Diz que tinha assembleias populares e que todas as decisões eram tomadas coletivamente. Isso é mera ilusão, um anacronismo – é projetar no passado valores e referências do presente. Nunca houve assembleias populares em Palmares, tinha um rei, era uma monarquia africana. E as relações eram tão duras provavelmente quanto eram na África.

Grandes fortunas se fizeram com o tráfico de escravos. Mas essa atividade não era socialmente mal vista? Não era considerado dinheiro sujo?

Isso só aconteceu a partir do século XIX, depois da Guerra do Paraguai, que terminou em 1870, com a chegada do movimento abolicionista no Brasil. Até então os traficantes de escravos eram alguns dos homens mais importantes do Brasil. Quando o príncipe regente D. João chega ao Rio de Janeiro no dia 8 de março de 1808, no cais da Baía de Guanabara havia uma galeria de homens muito ricos, muito importantes, à sua espera. Todos eles eram traficantes de escravos, porque esse era o maior negócio do Brasil na época, com grande prestígio social, grande poder. E começa ali também uma relação de grande promiscuidade, de ‘toma lá dá cá’ entre a Coroa portuguesa – e depois a monarquia brasileira – e a aristocracia escravista. É muito simbólico que logo na chegada D. João tenha ganho de presente de um traficante de escravos chamado Elias António Lopes a melhor casa da cidade, o palácio da Quinta da Boavista, o Museu Nacional, foi destruído por um incêndio em 2018. A monarquia recebia apoio político e também financeiro dos fazendeiros, dos senhores dos engenhos, mineradores de diamante, e em troca concedia títulos de nobreza. A imensa maioria dos barões no Brasil eram donos de escravos ou traficantes de escravos, uma prova de que eram os homens de maior prestígio político e poder social.

Não havia qualquer preconceito, portanto…

Só na segunda metade do século XIX. Com a força do movimento abolicionista alguns traficantes foram expulsos, foram presos, processados e denunciados publicamente na imprensa. Mas isso só aconteceu de facto nas últimas duas ou três décadas antes da abolição.

Esta investigação levou-o também a alguns países africanos que eram pontos fulcrais do tráfico de escravos. As viagens por África, como diz, têm de ser sempre bem planeadas. Mesmo assim houve peripécias, incidentes, situações curiosas?

Viajar pela África exige sempre um despojamento muito grande, é preciso ter uma curiosidade intelectual e uma tolerância em relação a situações desagradáveis. A logística é muito difícil. Mas para mim foi uma experiência cultural inestimável. Primeiro, os brasileiros são muito bem recebidos em África. Fui muito bem tratado, passei por experiências curiosas. Cheguei no Benim e fui recebido por um ministro de Estado. Mas logo em seguida ele me destacou um cabo do Exército que passou cinco dias do meu lado armado de fuzil. Aonde eu ia, ia o cabo do exército armado de fuzil. De facto nunca me senti ameaçado na África mas percebi que a presença de um branco descendente de europeus causa um certo constrangimento ainda hoje. E existe um grande ressentimento em relação ao colonialismo europeu. Mas se você tiver uma mente aberta, um olhar atento, é uma experiência muito rica.

E essa riqueza passou para o livro?

Eu sou jornalista, tenho 45 anos de profissão. Obviamente poderia ter escrito um livro sobre escravidão só frequentando bibliotecas e museus. Mas ficaria um livro meio ‘pasteurizado’. O que faz a riqueza dessa história é justamente a reportagem, é ir aos locais onde as coisas aconteceram. A observação, a surpresa do repórter trazem um frescor para essa história que seduz e cativa o leitor de hoje. E às vezes a surpresa da reportagem está no que se vê, mas também no que não se vê. Por exemplo, nas minhas reportagens jamais vi um grande museu nacional da escravidão no Brasil. O Brasil tem a maior história escravista das Américas, tem Museu do Amanhã, um Museu da Língua Portuguesa, tem museu de tudo quanto é coisa. Mas não tem um museu da escravidão. É um projeto nacional de esquecimento.

Para terminar. Começou por referir como este é um tema ainda hoje controverso. Há alguma coisa que os países que promoveram e lucraram com a escravatura possam fazer atenuar a sua culpa?

Essa é uma dívida que não se paga financeiramente. Até porque é muito difícil fazer essa conta hoje. Na África existe ainda hoje uma elite governante que em alguns casos é herdeira desses senhores que foram sócios do tráfico negreiro. Imaginemos que Portugal seria chamado a indemnizar os africanos. Quem vai receber a indemnização? Eu tenho insistido que uma atitude correta seria uma reflexão histórica que nos tornasse mais maduros a respeito do nosso passado. E que às vezes inclui um pedido de perdão. Eu sou grande admirador do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Mas acho que Marcelo Rebelo de Sousa poderia em algum momento em nome da República Portuguesa pedir perdão pela escravidão, porque Portugal foi o maior império escravista.

Não acha que esse reconhecimento podia ser apenas o primeiro passo e depois arrastar pedidos de indemnizações, por exemplo?

Esse é o medo. Que Portugal, que tem as suas dificuldades orçamentais, tivesse de sair a indemnizar todo o mundo. Não é necessariamente assim. O reconhecimento das dores e dos sofrimentos causados pelo passado não implica um pagamento da dívida. Até porque a principal mudança é de natureza cultural e psicológica. Não adianta você pegar um bilhão de euros e falar: ‘Paguei a minha dívida e vou continuar sendo racista e preconceituoso como fui até agora’. Mas sinto que em Portugal essa mitologia dos Descobrimentos, da primeira aldeia global, é tão forte que existe um certo temor de que o reconhecimento do passado escravista comprometa essa mitologia. Acho que essas coisas não se excluem. As maravilhas, a aventura portuguesa no mundo não exclui o reconhecimento do seu passado escravista, uma coisa não elimina a outra. O que pode levar também a uma atitude de perdão. Porque o perdão é o primeiro passo para a reconciliação. Acho que se o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa fizesse esse gesto de reconhecimento público as relações com África ficariam muito melhores, mais interessantes, do que ficar na defensiva como está até hoje. Mas quem sou eu para orientar o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa! Pelo amor de Deus! [risos]