Os verdadeiros indicadores

Nos últimos anos, a preocupação excessiva que o Estado tem tido com os ditos indicadores, sempre a olhar a números e estatísticas, como se hospitais e unidades de saúde familiares fossem centros de contabilidade.

Encontrei há dias uma colega que já não via há algum tempo. Sabendo da minha recente aposentação, e conhecendo os valores que sempre defendi, abordou-me com um toque de humor: «Finalmente viu-se livre dos números, das estatísticas e dos indicadores».

Mas, mal ela acabava de pronunciar estas palavras, já eu contrapunha: «Estás completamente enganada. Tudo aquilo que dizes me preocupa e acho que deve ser a preocupação de qualquer médico. Mas atenção: tudo na perspetiva do doente. O que realmente nos deve preocupar são os verdadeiros indicadores». 

E a conversa continuou, mantendo-me eu na defesa dos meus pontos de vista, perante uma jovem colega em princípio de carreira, a ter de cumprir integralmente as regras que lhe são impostas.

Nos últimos anos, tem sido bem notória a preocupação excessiva que o Estado tem tido com os ditos indicadores, sempre a olhar a números e estatísticas, como se hospitais e unidades de saúde familiares fossem centros de contabilidade. Porquê? Para tentar controlar a despesa que, pela falta de normas atuais e pela incapacidade em reestruturar o SNS, não para de crescer. 

Ao invés, temos o setor privado de olhos postos na receita, tentando tirar dividendos das falhas do serviço público. 

Para mim, o problema põe-se de outra maneira: nem tentar controlar a despesa, nem tentar controlar a receita, mas tentar controlar o doente. Sou pelo doente, e é o doente que me preocupa em primeiro lugar. É um facto que não há nenhum sistema de saúde que resista se o orçamento falhar; e todos nós, profissionais, temos de ter isso em conta. 

Aliás, o nosso código deontológico é bem claro a esse respeito: «O médico tem o direito à liberdade do diagnóstico e terapêutica, mas deve abster-se de prescrever tratamentos desnecessariamente onerosos ou realizar atos médicos supérfluos». Daí nenhum médico poder deixar de ter em conta o perfil do seu doente e os custos do seu tratamento, o que não significa preocupar-se exclusivamente com meras questões administrativas e dados estatísticos que em nada contribuem para melhorar a situação dos pacientes. 

Senão, vejamos: com todas estas orientações contabilísticas que tanto preocupam o Estado, a saúde está melhor? Há mais hipertensos controlados? Os diabéticos são em menor número? Há menos AVC e doenças do foro cardiovascular? As doenças neoplásicas têm sido mais precocemente diagnosticadas? Os estilos de vida saudável têm sido mais incutidos na população? O combate à polimedicação tem sido feito? Qual a razão para Portugal ser um dos países com maior consumo de medicamentos? E muitas mais perguntas poderiam fazer-se. Com estes indicadores, sim, eu preocupo-me.

E por incrível que pareça, mesmo em tempo de pandemia, quando se deviam unir esforços e darmos todos as mãos para minimizar o efeito devastador deste terrível flagelo, continuaram a fazer-se reuniões para falar de planos, discutir números e analisar indicadores. É o que temos!

Bem pode a Ordem dos Médicos, consciente do mau momento que estamos a viver, chamar a atenção para os «milhares de doentes invisíveis durante a pandemia e para os números preocupantes dos 450 mil rastreios oncológicos por fazer», que os seus apelos acabam por se perder e as boas intenções vão ficando pelo caminho.

Ao ouvir os meus desabafos fundamentados numa experiência de muitos anos, esta colega respondeu-me: «Tem razão no que diz. Quem sou eu para dizer o contrário? Mas uma coisa posso garantir-lhe: nem eu nem ninguém da minha geração vai aguentar o que o doutor aguentou uma vida inteira. Os tempos mudaram. É bom apenas enquanto durar». 

«Somos de gerações diferentes», respondi, sem mais nada para contrapor. 

Do seu ponto de vista, esta jovem médica está certa. De facto, tudo é descartável nesta vida. Em todos os setores da sociedade as pessoas já não aceitam os critérios do antigamente – e a saúde não foge à regra. 

Os doentes vão perdendo o direito de continuar sempre com o mesmo médico de família a acompanhá-los, e é bom irem-se preparando para essa inevitabilidade.

Depois desta reflexão, mesmo já retirado de todas as funções que desempenhei no setor público, não deixo de fazer a pergunta: e com este indicador ninguém se preocupa?