Um americano em África

Um comentário pretensamente iconoclasta, mas na realidade apenas tolo, foi a gota de água.

Creio que ainda nunca me tinha acontecido. À medida que avançava na leitura, a minha consideração pelo autor ia-se deteriorando, até redundar em antipatia. Talvez um dos problemas fosse a expectativa inicial demasiado alta – em tempos tinha lido umas linhas da tradução portuguesa de Dark Star Safari (Viagem por África – do Cairo à Cidade do Cabo) que me deixaram com água na boca. E de facto poucas premissas podiam ser mais aliciantes do que uma viagem por terra de uma extremidade à outra desse continente misterioso.

Mas passados mais de dez anos, e transpostas as linhas iniciais, o ponto de partida pareceu-me pouco auspicioso: «Estava farto de atender telefonemas e de ser importunado, de me pedirem favores e dinheiro», revela o autor, o famoso escritor e viajante Paul Theroux. Ansioso por escapar a prazos e compromissos, cansado das rotinas, traçou um plano.

«África é um dos últimos grandes sítios onde uma pessoa pode desaparecer. Eu queria isso». Pareceu-me estranho e ao mesmo tempo sintomático que o autor empreendesse uma tão grande viagem não por causa do que iria encontrar, mas pela simples vontade de fugir a qualquer coisa.

Geralmente, quando começo a ler um livro, mesmo sem ter consciência disso, faço uma espécie de pacto com o autor. Em maior ou menor grau, tomo o seu partido, fico do seu lado, sou solidário com o seu ponto de vista, identifico-me com ele.

Neste caso foi diferente. As reservas acumulavam-se. O conhecimento de línguas africanas revelado por Theroux ao início suscitou-me admiração; mas a sua vaidade mal disfarçada acabou por tornar-se irritante. Depois, a forma como transcrevia a pronúncia de alguns africanos – «meesta» em vez de ‘mister’ ou «sah» em vez de ‘sir’ – pareceu-me reveladora de desprezo.

Mais adiante, ter abandonado as pessoas que lhe tinham dado boleia, apanhando o primeiro carro que lhe aparreceu quando a camioneta onde seguiam se avariou, também não abonou a seu favor. A gota de água foi um comentário pretensamente iconoclasta, mas apenas tolo: «E o Quénia dos caçadores de caça grossa e dos memorialistas sentimentais, de Hemingway e Isaak Dinesen aos mitómanos atuais, […] dava-me vontade de rir».

Foi mais ou menos por aí que me recordei de um texto lido há uns anos num jornal irlandês. Alexander Theroux acusava o irmão Paul de escrever livros sem qualquer estilo ou encanto, apenas bons para ler na praia. «Ninguém que eu conheça escreveu tantos livros (20 romances, 10 livros de viagens) e obteve tão pouco reconhecimento da crítica». Na altura esta crítica ao grande Paul Theroux, o célebre escritor, o intrépido viajante, pareceu-me um sacrilégio. Agora percebo melhor a irritação que o nosso autor pode suscitar (embora Alexander, pelo tom petulante, não pareça uma personagem mais simpática…).

Seria desonesto dizer que Dark Star Safari não possui qualidades. Mas não é nem por sombras o grande livro que eu fantasiei quando li aquelas primeiras linhas há mais de dez anos. E muito menos «uma carta de amor ao continente africano», como o lhe chamou um crítico certamente mal informado do Sunday Times. É um livro desapaixonado, pragmático, um olhar ora desapiedado, ora desdenhoso, sobre um continente e os seus problemas. 

Cansado do conforto da sua vida na América, Theroux quis fugir. Optou pelo caminho mais difícil – as estradas esburacadas, os transportes públicos lotados, os hotéis manhosos. E depois escreveu um livro para que todos pudessem admirar a sua proeza.