Covardes desertores e hipócritas governantes

Não era exigível aos americanos que mantivessem indefinidamente o esforço humano e financeiro com tamanha operação no Afeganistão. Mas a retirada escusava de ser tão negligente e apressada

António Costa tirou férias ao mesmo tempo que o número dois do Governo, o ministro de Estado e da Economia, Pedro Siza Vieira, e o número três, o também ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, deixando a condução do Executivo à número quatro da hierarquia, a igualmente ministra de Estado e da Presidência do Conselho de Ministros, Mariana Vieira da Silva.

Por coincidência – ou, muito provavelmente, por razões estratégicas que António Costa nos permitirá perceber dentro de algumas semanas -, Portugal tem uma mulher à frente do Governo (a 3.ª na história da democracia portuguesa, depois de Maria de Lourdes Pintasilgo e Manuela Ferreira Leite) no momento em que a Administração de Joe Biden e a Comunidade Internacional entregam o Afeganistão aos extremistas talibãs, abandonando de forma covarde e hipócrita um território e um povo e condenando ao sacrifício as mulheres afegãs.

Não era exigível aos americanos que mantivessem indefinidamente o esforço humano e financeiro com tamanha operação no Afeganistão. Mas a retirada escusava de ser tão negligente e apressada, dando ao mundo uma imagem de uma humilhante derrota dos Estados Unidos e da NATO, só comparável ao vexame sofrido no Vietname no século passado.

Donald Trump, ex-Presidente americano odiado e considerado destituído pela esmagadora maioria dos ocidentais que se proclamam defensores dos direitos das mulheres e dos direitos humanos – os mesmos que festejaram a vitória de Biden nas últimas presidenciais -, lamentou a ‘humilhação’ a que a América se sujeitou e criticou a forma desastrosa como as forças norte-americanas bateram em retirada: «Primeiro tinham de sair os civis e só depois os militares».

E quem fala dos civis, fala dos cidadãos de nacionalidade americana e europeia e de todos os afegãos que ao longo das últimas duas décadas colaboraram ativamente com as forças estrangeiras na fracassada tentativa de controlo do país e de acantonamento e submissão dos radicais islâmicos. E que estes, talibãs, agora obviamente não perdoarão.

O facto de o Presidente afegão, Ashrat Ghani, ter imediatamente fugido para o exílio e ser o primeiro a admitir que, se tivesse «ficado no seu lugar», tinha sido executado pelos talibãs que invadiram o palácio presidencial é a primeira confissão de que as negociações lideradas pelos norte-americanos não passaram de uma farsa. Tal como, aliás, as primeiras declarações dos novos detentores do poder no território, regozijando-se e reconhecendo que nunca pensaram que fosse «tão fácil» nem «tão rápido» tomar Cabul e o controlo do país ou declarando que, com eles, não haverá democracia, «porque não é da [sua] tradição» nem cultura. 

Em Inglaterra, o Parlamento interrompeu as férias e reuniu em peso para debater com Boris Johnson a reação do Reino Unido e as medidas a adotar pelo Governo para defender os cerca de 150 mil britânicos e afegãos que colaboraram diretamente com eles nas últimas duas décadas.

Assim como na Alemanha Angela Merkel imediatamente concertou estratégias e ações a tomar com Joe Biden e os Estados Unidos para garantir a ponte aérea e o controlo de danos.

E até aqui ao lado, em Espanha, o ministro dos Negócios Estrangeiros foi ao aeroporto militar de Madrid receber os primeiros 94 refugiados afegãos que Espanha já acolheu por terem colaborado com a embaixada e as autoridades espanholas.

Como o Canadá já recebeu outras dezenas de afegãos, com o próprio primeiro-ministro, Justin Trudeau, a dar-lhes as boas vindas e garantias de total empenho na proteção de todos os afegãos que colaboraram com os canadianos. 

A União Europeia também reuniu de emergência os ministros dos Negócios Estrangeiros.

Em Portugal, o primeiro-ministro está de férias e a primeira-ministra em exercício, Mariana Vieira da Silva, convocou para esta sexta-feira um Conselho de Ministros Extraordinário para decidir o levantamento de mais algumas restrições em face da evolução da pandemia da covid-19.

Mas quem apareceu na televisão a falar sobre a crise humanitária e política no Afeganistão foi o ministro Augusto Santos Silva, para manifestar a sua profunda preocupação e anunciar a disponibilidade de Portugal para acolher 50 (cinquenta!) refugiados afegãos.

Augusto Santos Silva foi incapaz, porém, de interromper as suas férias. Na verdade, apesar de se apresentar de fato e gravata, o ministro continuou a banhos e fez-se representar na reunião de emergência dos ministros dos Negócios Estrangeiros da UE pela sua secretária de Estado para os Assuntos Europeus.

A crise política e humanitária no Afeganistão não é suficientemente grave para o primeiro-ministro português e seu ministro dos Negócios Estrangeiros interromperem as férias?

Estão em causa os mais elementares direitos humanos e os direitos de todo um povo e das mulheres afegãs.

Se os americanos se comportaram como covardes desertores – as imagens de desespero no aeroporto de Cabul e dos aviões da força aérea dos EUA a descolarem com dezenas de afegãos agarrados às asas dos aparelhos, sentenciados à morte, são chocantes -, a atitude do Governo português é, no mínimo, hipócrita.

Do Afeganistão não vem nenhum cheque para António Costa poder ir ‘meter ao banco amanhã’, nem um voto se ganha ou se perde por os talibãs andarem a disparar sobre gente inocente e indefesa. E as mulheres afegãs que se danem. E os direitos humanos idem. E a democracia ibidem.

Não os afeta, não importa. 

Está calor e a água fria até sabe bem.