Cabul. Uma cidade em choque

Para os habitantes das cidades, os talibãs sempre foram um receio distante. ‘É mesmo como se vê nas fotos’, disse um ativista fugido, ao Nascer do SOL.

Cabul. Uma cidade em choque

Para uma nova geração de afegãos cada vez mais letrados, habituados a viver em meios urbanos, cosmopolitas, bem longe das leis da sharia impostas pelos talibãs nos seus territórios, ver os fundamentalistas entrar em Cabul, Kandahar ou Herat é um choque terrível.

«É mesmo como se vê nas fotografias, eles são assustadores, usam tecidos diferentes, têm um estilo de roupa diferente. Alguns parece que nunca estiveram na cidade», estranha Ahmad (nome fictício), diretor de uma ONG afegã de defesa direitos das mulheres, que pediu anonimato ao Nascer do SOL. Numa troca de emails na segunda-feira, dia em que foram divulgadas imagens chocantes do aeroporto de Cabul, avisara-nos que poderia ser a sua última comunicação – felizmente na quinta-feira ainda estava em segurança, mas mais desgastado e assustado.

Como tantos outros ativistas, Ahmad teve de fugir de casa com a sua família, apanhado de surpresa pela súbita queda de Cabul, escondendo-se no interior de quatro paredes, à espera de encontrar maneira de sair do país. Pelo meio, vê da janela patrulhas talibã a passar, sempre receoso que a próxima porta a que batam seja a do seu abrigo.

Já vieram três vezes à sua rua, «começaram a chicotear pessoas lá fora, com tubos de água, só por usarem calças de ganga. Houve mulheres espancadas por as suas roupas não serem trajes islâmicos, esse género de coisas», conta Ahmad, que ainda tenta ganhar coragem para ir a uma loja do seu bairro, comprar umas calças tradicionais. Precisa de passar despercebido quando tentar navegar por entre o crescente número de checkpoints em Cabul, guarnecidos por combatentes talibãs, pesadamente armados de metralhadora ou RPG ao ombro.

Já a sua mulher não está nada satisfeita por ter de se esconder numa burca para conseguir fugir. «Ela é uma mulher culta, educada, acho que nem nunca tocou numa», explica Ahmad. Não sabe é como vão arranjar dinheiro para comprar uma burca, com os bancos esvaziados por tantos terem levantado as poupanças, e com os preços a disparar – em Cabul, a mulher de Ahmad não é a única que terá de usar burca pela primeira vez na sua vida.

«Essa é a grande tragédia humana disto tudo», lamenta Bruno Cardoso Reis, subdiretor do Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa (CEI-IUL). «Sabemos que os talibãs têm um forte enraizamento, é isso que explica sua capacidade de resistência durante vinte anos, sobretudo em zonas rurais, muito conservadoras, habitadas sobretudo por pashtuns», nota o especialista em Segurança. «Mas também é verdade que há zonas urbanas onde entretanto se foi desenvolvendo uma classe educada, onde há mulheres com um protagonismo importante», continua. «Essas pessoas ficaram à mercê deste regime. Até podem ser retiradas, mas para isso é preciso contar com a complacência dos talibãs».

Caos no aeroporto

Para Ahmad, fugir através do Aeroporto Internacional Hamid Karzai não é opção, por agora. Aí a situação está um caos, mesmo com militares da NATO, incluindo mais de cinco mil tropas americanas, a manterem o aeroporto a funcionar – por vezes recorrendo à força ou até a fogo real para limpar a pista de aterragem, que foi inundada por milhares de pessoas desesperadas, esta segunda-feira. Vários afegãos chegaram a agarrar-se a um avião de carga militar, caindo depois das alturas, para uma morte certa. 

Além disso, há o problema de como chegar ao aeroporto. A liderança talibã parece ter dado a sua bênção às operações de retirada internacionais, em vez de orquestrar uma ofensiva para as bloquear – mas, fora dos muros do aeroporto, no caminho até lá, bloqueado por trânsito e tiroteios esporádicos, militantes talibãs atacaram cidadãos australianos que tentava fugir do país, avançou o Guardian. Alguns conseguiram chegar a poucas centenas de metros do avião que os levaria para longe deste inferno, antes de serem expulsos dos portões à chicotada e ao tiro pelos talibãs, enquanto civis e soldados ajudavam mulheres e crianças a passar por cima dos muros.

Abandonados

Enquanto falamos com Ahmad por WhatsApp, ouvimos o seu filho de sete anos ao seu lado. Nem parece um miúdo fechado em casa há quase uma semana, receoso pela vida. Mas rapidamente se nota que tem noção do que se passa.

«Eu quero viajar para Nova Iorque. Não há talibãs lá, estamos seguros», diz-nos num inglês confiante, que aprendeu com o pai. Já está cheio de saudades de ir à escola, dos seus colegas e amigos. «Até da minha professora», confessa.

«Um rapaz de sete anos devia poder brincar, aprender, sem estar sempre a perguntar-nos quando é que os talibãs vêm aí, o que é que vai acontecer, se nos vão matar a todos», desabafa Ahmad. «Detesto vê-lo assim assustado».

Num futuro próximo, não há grande expectativa que a família encontre um porto seguro. Com o aeroporto de Cabul num caos, sobram as fronteiras terrestres, tomadas na sua totalidade pelos talibãs – a única região fora do seu controlo é o vale de Panjshir, no interior do país, protegido pelas montanhas do Hindu Kush e cercadas por fundamentalistas.

A ideia de Ahmad é obter um visto paquistanês. Talvez a sua família tenha de fazer o perigoso caminho até ao país vizinho, para depois aí pedir asilo nas embaixadas de Islamabad. «O processo demora demasiado, precisam de imensos papéis e justificações, há muita procura por documentos neste momento. É muito lento, e as pessoas que mais precisam deles estão em completa aflição», lamenta. «O mais urgente é sairmos daqui. Para que possamos dormir e descansar por um momento. Essa é a única coisa em que pensamos, nada mais». 

O problema é que é improvável que a sua família receba abrigo de países da NATO, que sempre prometeram apoiar afegãos que tentaram reconstruir o país após a invasão de 2001, como Ahmad, e agora estão em risco. Os EUA falam de receber apenas uns 30 mil refugiados, o Canadá outros 20 mil e o Reino Unido também prometeu receber 20 mil, ao longo de cinco anos – os críticos do Governo de Boris Johnson têm lembrado que, até lá, muitas vidas podem já ter sido ceifadas.

Pelo meio, as autoridades paquistanesas estimam que até 700 mil refugiados afegãos cruzem as suas fronteiras, somando-se aos cerca de três milhões que já fugiram ao longo das últimas décadas, e o Paquistão começou a fechar as portas face ao novo fluxo. O Irão, onde residem outros três milhões de refugiados afegãos, tem montado campos de refugiados improvisados, prometendo repatriá-los assim que possível, e a Turquia decidiu acelerar a construção de um muro na fronteira do Irão.

‘O país estará em guerra de novo’

O mundo inteiro observa com atenção cada declaração dos talibãs, ansioso por saber se veremos um regime tão cruel quando o que governou o país entre 1996 e 2001, uma versão mais moderada, ou mesmo um Governo com uma base ampla – sem dúvida com Hibatullah Akhundzada, de 60 anos, emir dos talibãs, como chefe de Estado – que inclua antigos adversários dos fundamentalistas.

Quando o porta-voz dos fundamentalistas islâmicos, Zabihullah Mujahid, saiu das sombras e mostrou o seu rosto pela primeira vez à imprensa, esta terça-feira, disse tudo o que a comunidade internacional queria ouvir. Se isso traduzirá em medidas concretas, é outra questão.

«Nós perdoamos a qualquer um, a todos aqueles que lutaram contra nós. Não queremos repetir o conflito outra vez», garantiu Mujahid. Prometeu manter a segurança das embaixadas com patrulhas, manter a ordem em Cabul e evitar excessos das suas tropas. Garantiu que «não vai haver qualquer discriminação com as mulheres» – ressalvando que terão direitos «dentro do enquadramento da sharia» – e que iriam reconstruir a economia. Assegurou que não haverá nenhuma «vingança» contra os seus inimigos, mas sim um Governo «inclusivo».

A questão é que os talibãs são uma organização politico-religiosa-militar, longe de ser monolítica. Hoje, quem parece estar na mó de cima é Abdul Ghani Baradar, principal líder político do grupo, considerado responsável pelas negociações de Doha, que puseram fim à intervenção dos EUA.

Contudo, a ala militar continua nas mãos de gente como Mullah Muhammad Yaqoob, filho do fundador dos talibãs, Mullah Omar, ou de Sirajuddin Haqqani, líder da rede Haqqani, acusada de alguns dos piores atentados durante a guerra – a ala militar pretende um Governo mais purista, a ala política partilhar parte do poder, para ganhar legitimidade internacional segundo fonte da Time próximas das negociações.

Para muitos afegãos, que assistem impotentes enquanto outros decidem o seu futuro, o receio é que os talibãs voltem às suas velhas práticas. Que proíbam mulheres de trabalhar ou sair de casa, que interditem a música, os filmes, a televisão, massacrem minorias religiosas e destruam monumentos, resolvendo disputas em conselhos de anciãos, sem direito a defesa ou recurso, cortando a mão a supostos ladrões, chicoteando gente na rua ou executando-os na praça pública. 

No entanto, agora os talibãs tomaram um Afeganistão muito diferente daquele que conheciam em 1996. À época, o país era ainda mais rural, com taxas de literacia mais baixas – mesmo hoje a mal passa dos 43% – e com uma classe média, urbana e progressista, desmobilizada politicamente, após ter sido a base de um regime comunista que convidou uma intervenção militar soviética, o que virou tragédia.

Agora, o Afeganistão continua a ser miseravelmente pobre, mas muitos afegãos não estão isolados, têm telemóveis, televisão, internet, e cidades como Cabul cresceram de 2,5 milhões de habitantes, em 2001, para mais de 4,5 milhões. E, com cada vez mais jovens com estudos superiores, os próprios talibãs parecem desejosos de aproveitar esse recurso – e conscientes que medidas mais fundamentalistas os farão fugir.

«Os jovens que têm talento, que cresceram aqui, que são deste país, não queremos que partam. Esses são os nossos ativos, gostaríamos que ficassem aqui», apelou Mujahid. Contudo, é muito fácil que essa geração se farte rapidamente, assegurou um deles Ahmad, que hoje desespera para fugir. «As pessoas não conseguem tolerar este grupo. Podem sofrer e aguentar durante um bocado, mas depois haverá protestos, resistência, revolta contra eles», avisou o ativista. «E depois o país estará em guerra de novo».