Encabulados

Fartos, os americanos de Trump, anunciaram a retirada. Crédulos, os americanos de Biden cumpriram-na. A Nato, atenta, veneradora e obrigada, nem piou. E hoje aí temos o Afeganistão em todo o seu esplendor.

As imagens do aeroporto de Cabul com multidões a invadir as pistas e o medo espelhado na cara de quantos tentam fugir dá a ideia fácil de que tudo aconteceu agora apenas por uma causa próxima.

E percebe-se que um número considerável de afegãos foi levado ao engano. Acreditou que podiam viver num país diferente, que as liberdades eram eternas e que a comunidade internacional os protegia.

Assim não foi. Assim não é.

Trinta anos atrás a União Soviética iniciava a sua intervenção militar no Afeganistão para proteger um regime da sua cor contra movimentos que o pretendiam derrubar.

Foi aí que a parte substancial dos problemas nasceram.

A União Soviética defendia alterações às leis do casamento, da propriedade e outras que foram consideradas inaceitáveis por vários movimentos afegãos.

A guerra instalou-se e motivou o apoio de outras potências aos insurgentes.

Foi aí que os mujaedin surgiram e foi também nesse momento que outras potências, designadamente os Estados Unidos, entraram a ajudar quem se opunha aos soviéticos.

Acabou mal a aventura da URSS, como aliás receava Gromiko.

Pareciam ter razão os que defendiam vir a ser esta intervenção um elemento fundamental para a queda do império soviético.

Uma guerra sangrenta, milhares de mortos, um deserto de destruições e, no fim, a vitória dos stings sobre os aviões e helicópteros.

E foi este conflito sem regras que fez nascer a importância dos senhores da guerra e a força daqueles que vieram a constituir um problema de grande dimensão.

Na confusão, os talibãs tiveram a sua oportunidade. Fundamentalismo islâmico, inibição de direitos, retrocesso da sociedade.

É nesse momento histórico que se iniciam os ataques aos Estados Unidos, se destaca Bin Laden, se promovem as exigências dos Estados Unidos e se formam as alianças internas e externas que levarão a outra guerra de vinte anos e outro cortejo de desgraças com a intervenção dos americanos e da Nato.

Questão fundamental seria saber se o povo afegão conseguiria constituir um estado laico, instalar a democracia, obstar ao regresso ao passado.

Os conflitos permanentes e a instabilidade do poder cansaram toda a gente.

Mas, apesar disso, a velha receita soviética de tentar constituir e reforçar as forças armadas afegãs, foi retomada pelos novos protagonistas com o mesmo absoluto insucesso.

O poder não era poder, o exército não existia, o desastre anunciava-se.

Fartos, os americanos de Trump, anunciaram a retirada. Crédulos, os americanos de Biden cumpriram-na.

A Nato, atenta, veneradora e obrigada, nem piou.

E hoje aí temos o Afeganistão em todo o seu esplendor.

Passeiam-se, os talibãs, de kalachnikov às costas, gozam o terror, administram as declarações.

Que não se vingarão, que não servirá o país de base a ataques terroristas, que dão às mulheres toda a liberdade que o Corão permite.

Trinta anos para isto.

Tudo parece acontecer como nos jogos em que o jogador cai na casa que o manda de volta ao ponto de partida.

Entretanto, o mundo irá assistir a outra vaga monumental de refugiados.

E haverá promessas de apoios solenes como a da Câmara de Lisboa.

E os países vizinhos sofrerão crises e desestabilizações.

Encabulados ficamos.