A carta de Pessoa a um jovem poeta

O autor da Mensagem dirigiu palavras de encorajamento a Miguel Torga,mas logo de seguida disse-lhe algo que o deixou irritadíssimo.

Na semana passada escrevi aqui sobre Dark Star Safari – Overland from Cairo to Cape Town, de Paul Theroux. Uma das coisas de que não gostei no livro foi a insatisfação quase permanente do autor, sempre a pensar no próximo destino, numa espécie de fuga para a frente sistemática. Darei um de muitos exemplos possíveis: «Não tinha pressa – não me esperavam em lado nenhum – e, no entanto, sempre que chegava a uma cidade africana queria partir de imediato».

Esta ânsia de partir fez-me lembrar uma conhecida música de António Variações («só estou bem aonde eu não estou»)e um não menos conhecido poema de Fernando Pessoa:

«Não pertencer nem a mim!
Ir em frente, ir a seguir,
A ausência de ter um fim
E da ânsia de o conseguir».

‘Viajar! Perder Países!’ era um dos dois poemas de Pessoa que a minha professora de Português do 12.º ano considerava que todos devíamos saber de cor. O outro era ‘Autopsicografia’.

Sempre tendi a ver ‘Autopsicografia’ como o elogio da falta de sinceridade. «O poeta é um fingidor…» – que é como quem diz, quase um mentiroso. E, se é um fingidor, como sabemos que neste caso está a dizer a verdade?
Mas recentemente descobri que talvez não seja bem assim. Talvez Pessoa nos quisesse antes dizer que para ser um bom poeta não basta sentir, ou transmitir sentimentos: há que transmutar esses sentimentos em matéria literária para que produzam o efeito pretendido no leitor.

Essa mesma ideia aparece num texto reproduzido no livro Cartas para Miguel Torga (org. Carlos Mendes de Sousa, ed. D. Quixote). Trata-se de uma carta em que o famoso poeta agradecia um livro que lhe fora enviado pelo debutante.

«Muito agradeço o exemplar do seu livro ‘Rampa’. Recebi-o já há alguns dias. Só hoje posso escrever para lho agradecer. Li-o, porém, logo que o recebi. Li-o e gostei dele».

Palavras simpáticas que deveriam ter enchido o jovem Torga de orgulho. Mas logo em seguida Pessoa dizia algo que deixou o destinatário irritadíssimo: «A sua sensibilidade é de tipo igual à do José Régio – é confundida em si mesma, com a inteligência. O que em si é ainda por aperfeiçoar é o modo de fazer uso dessa sensibilidade. Há que separar mais os dois elementos que naturalmente a compõem; ou que confundi-los ainda mais. Uma análise instintiva que coloque a sensibilidade desintelectualizada perante a inteligência dessensibilizada, em contraste, diálogo e reparo; ou uma síntese em que desapareçam os traços de haver dois».

Grosso modo, Pessoa estaria a dizer qualquer coisa como isto: que Torga tinha sensibilidade de poeta mas não sabia depois separar a sensibilidade da inteligência, distanciar-se dos sentimentos para os transformar, através da razão, em matéria poética.

Esta reflexão, de resto, mereceria ao autor da Mensagem uma segunda carta, em que desenvolveu essa teoria – mas que nunca chegou a enviar.

No comentário a Rampa, livro de poemas de Torga, Pessoa tratou da separação entre a sensibilidade e a inteligência.

Na ‘Autopsicografia’, dizia que «o poeta é um fingidor» e falava do «comboio de corda» que «gira a entreter a razão».

Talvez não se trate de um acaso. O livro de Torga foi publicado em Coimbra em abril de 1930 e acarta de Pessoa é de 6 de junho de desse ano. Já a ‘Autopsicografia’ está datada de 1 de abril, dia das mentiras, de 1931, e foi publicada pela primeira vez em novembro de 1932, na revista Presença. Terá Pessoa, depois de espicaçado pelo livro de Torga, ficado cerca de um ano a ‘ruminar’ sobre o assunto, até destilar a sua visão num poema?

Apenas mais uma curiosidade: um dos poucos que mostraram reservas à ‘Autopsicografia’ foi José Régio. Nada mais, nada menos do que aquele cuja sensibilidade Pessoa tinha implicitamente criticado na carta a Torga.