“Salazar sabia manobrar as pessoas, o meu pai não tinha essa habilidade”

Numa conversa com José António Saraiva, autor de um livro recente sobre Marcello Caetano, o filho do último primeiro-ministro do Estado Novo recorda alguns episódios marcantes da vida familiar, como a doença da mãe ou o que o pai lhe disse quando avançou para a sucessão a Salazar. Na próxima semana, a segunda parte do…

“Salazar sabia manobrar as pessoas, o meu pai não tinha essa habilidade”

por José António Saraiva e José Cabrita Saraiva

Entre os muitos emails que recebeu com comentários a Caetano – O Drama do Político Obrigado a ter Duas Faces (ed. Gradiva), o último volume da trilogia que dedicou à queda do Estado Novo, houve um que mereceu a José António Saraiva particular atenção.

«Li o livro com o mesmo interesse e agrado com que tinha lido os dois anteriores, embora a época me recorde sempre os tristes dias do fim da vida política do meu Pai», dizia a mensagem, que era acompanhada por anotações reveladoras de um conhecimento detalhado e profundo daquela época.

O remetente do email era Miguel Caetano, um dos quatro filhos do último primeiro-ministro do Estado Novo.

Miguel de Barros Alves Caetano nasceu num andar da Rua Fernão Lopes, perto do Saldanha (Lisboa), em 1935, e cresceu no seio de uma família politizada – embora o pai fosse muito próximo de Salazar, o avô materno estava ligado aos meios maçónicos e republicanos, o que ainda assim não impediu uma relação de grande amizade entre os dois homens.

Licenciou-se em Direito (chegou a ser aluno do pai) e na faculdade integrou a Associação Académica. Foi fundador da SEDES, uma associação cívica a que o presidente do Conselho inicialmente deu luz verde mas com a qual acabou desiludido.

Miguel Caetano tinha 38 anos quando se deu o 25 de Abril, um acontecimento que marcou a sua vida. Na altura já era pai de oito filhos e, dada a dificuldade em encontrar trabalho depois da revolução, chegou a equacionar mudar-se para Espanha.

Embora já antes dos acontecimentos de 1974 soubesse que, sem o apoio das Forças Armadas, seria muito difícil ao seu pai manter-se no poder, quase cinquenta anos depois continua sem conseguir perceber a atitude deste no período final do regime.

É precisamente por aí que começa a conversa entre José António Saraiva e o filho do último presidente do Conselho, que nos recebe na sua casa do Linhó, outrora a casa de férias e de fim-de-semana da família. Marcello Caetano gostava especialmente do jardim, que desenhou, mas passava a maior parte do tempo a trabalhar à secretária. «Mesmo no inverno abria a porta e metia-se no escritório gelado», recorda o filho, sentado à mesa comprida, feita de uma só tábua, da sala de jantar.

A casa é tradicional, mas luminosa e arejada. Perto da mesa há um piano de cauda, com o tampo coberto por dezenas de molduras com fotografias da família, antigas ou recentes. «Um dos meus filhos é pianista profissional, de jazz», diz-nos o anfitrião. Do outro lado, na zona de estar, além da televisão há uma lareira para fazer face aos dias mais frios.

De momento, a luz natural entra abundante pelas janelas quadriculadas. Lá fora a paisagem é dominada pela mancha verde da vegetação. Por trás do jardim desenhado por Caetano (e onde há um busto seu feito por um artista búlgaro), ergue-se a serra de Sintra. Na década de 1950, depois de horas sentado à secretária, era muitas vezes para ali que se dirigia o professor de Direito para uma pausa ao fim da manhã. Mas não ia sozinho. «Queres dar uma volta pela serra?», perguntava ao filho. Iam passear os dois, ou ainda na companhia da irmã, Ana Maria, e conversavam. De regresso a casa, almoçavam e, se não esperasse a visita de familiares ou amigos, Marcello Caetano sentava-se a ler ou voltava para a secretária.

Acabei de reler por estes dias ‘Caetano – O drama do político obrigado a ter duas faces’ e fiquei com a impressão de que Marcello Caetano foi um homem profundamente incompreendido. Para os liberais, não era suficientemente liberal. Para a linha dura dos salazaristas, não era suficientemente duro. Até os industriais, que estavam a beneficiar com o grande crescimento económico, o criticavam. E depois há o povo do largo do Carmo que, no dia 25 de Abril, começa a dizer ‘Está na hora’ e ‘À morte’. Parece que, no fundo, toda a gente estava insatisfeita.

MC: O fim é triste. Acho que até escrevi isso numas notas. Mesmo no final, o meu pai sente-se incompreendido. Nos últimos meses pediu a demissão e sentiu que, se as Forças Armadas e os generais com mais prestígio tinham colocado em causa a política dele, acabava. Já não estava a aguentar a situação – que não era bem aquela que ele tinha pensado quando aceitou suceder a Salazar… Não tinha o apoio das Forças Armadas numa situação que era o que era [com a guerra colonial a decorrer], não tinha o apoio do Presidente da República e de toda a sua entourage… A parte popular não é tão clara. Eu estava a assistir ao tal Sporting-Benfica [de 31 de março de 1974]. Morava lá perto e fui ver o jogo, e às tantas vejo tudo a levantar-se e a aplaudir. Levanto-me, olho para trás e vejo o meu pai. Dizer que o povo estava todo contra ele é duvidoso.

JAS: Concordo plenamente consigo. Na altura, eu era, como muitos jovens da minha geração, de esquerda. Portanto, falava com muita gente do ‘outro lado’, de fora do regime. Nos sítios por onde eu andava, o seu pai não era uma pessoa odiada. Longe disso. Até acho que era uma pessoa estimada em alguns setores e respeitada noutros. Não havia um sentimento popular de rejeição ou oposição ao seu pai.

MC: Aí acrescentaria só uma coisa: da minha geração, foram para a guerra os militares, os médicos e mais alguns em tarefas administrativas. Já estávamos fora dos grupos etários que foram mobilizados. A geração que vem a seguir está a estudar, pensando: ‘Acabo o curso e vou para a guerra’. E isso cria na juventude um sentimento negativo… Eu ouvia dizer: ‘Vou chumbar mais um ano para ver se consigo fugir à mobilização’. Era fácil apresentar uma alternativa, mesmo que fosse entregar África, as colónias, sem saber o que ia acontecer.

JAS: A média burguesia – que em qualquer regime é o suporte fundamental do status quo – ficou de pé atrás com a guerra. Sobretudo, porque não via uma saída. Acreditou muito que Marcello Caetano encontraria uma saída qualquer mas o tempo vai passando, essa saída não surge e há jovens a morrer em África, as mães a verem os filhos a irem para a guerra ou a fugirem para o estrangeiro. De facto, o medo começa a criar na média burguesia, e na pequena também, uma distância em relação ao regime. Começa a instalar-se um clima de medo, as deserções tornam-se muito comuns. Muitos dos meus amigos foram para o estrangeiro. Para Paris, Suíça, Bélgica…

De qualquer modo, o que eu costumo ouvir é que antes do 25 de Abril havia um regime terrível, um ambiente quase irrespirável, as pessoas viviam muito revoltadas. Mas, pelo que me dizem, afinal não era bem assim?

JAS: Esse é um aspeto engraçado. Uma das coisas mais impressionantes para quem estuda História é a volubilidade do povo. Que num dia aclama um chefe e no dia seguinte aclama outro. A frase ‘Rei morto, rei posto’ é muito verdadeira. Acho que Marcello Caetano, do ponto de vista popular, era um homem estimado, respeitado. O problema era nos grupos que tinham acesso ao poder. Em primeiro lugar, as Forças Armadas. É um golpe terrível quando os dois mais altos responsáveis militares, Costa Gomes e Spínola, afirmam a sua hostilidade à política do regime. E Marcello vê-se sem meios de agir. Se um primeiro-ministro não tem a tropa com ele, numa situação em que o país está em guerra, sente uma impotência completa.

MC: Ele diz: ‘Se os senhores têm a solução, fiquem com o poder. Vou-me afastar, falem com o Presidente da República, que eu ponho o meu lugar à disposição’. 

Para não ser um obstáculo?

MC: Sim. 

JAS: Depois havia o Presidente da República, Américo Thomaz, e havemos de falar dele mais à frente… Penso que é claro que o seu pai tinha uma superioridade intelectual flagrante sobre ele. No entanto, há momentos em que se subordina completamente à vontade dele – e isso é estranho. Nunca foi bem explicado…

Mas não será uma questão formal, dado o Presidente ser hierarquicamente superior?

MC: Também, mas não é só isso. Evidentemente o meu pai respeitava muito os formalismos, mas era muito sensível àquilo de que discordava. E há atitudes do meu pai em que não o reconheço. De facto, é preciso ele estar muito desmoralizado e abatido para escrever aquela última carta, e terminando-a da maneira que termina. ‘Assumo tudo, e aqui nos despedimos’, e acabou-se. [Carta em que Marcello se demite mas depois recuará, perante a insistência do PR].

Falou-se no jogo Sporting-Benfica e eu estava a pensar na imagem de um árbitro isento, que às tantas não agrada nem a uma nem à outra equipa. Esse foi um pouco o pecado de Marcello Caetano, uma equidistância que acabou por lhe ser fatal porque, às tantas, não agradava a gregos nem a troianos?

JAS: Foi um homem forçado a ter um discurso acalmando uns e outros. Acalmando a oposição, por um lado, acalmando os ultras, por outro. Por isso, no título do meu livro usei a expressão ‘o político obrigado a ter duas faces’. Há dois casos semelhantes que me vêm à memória, porque isso é muito comum em pessoas apanhadas na saída de um regime para outro: o Adolfo Suárez, em Espanha, que é um grande político, faz um notável trabalho de transição para a democracia e, depois, é triturado pelas circunstâncias. E, noutro plano, o [Mendes] Cabeçadas, na transição da Primeira República para a ditadura militar. Ele tenta, de alguma maneira, prolongar o tempo passado, mas já não é um homem do passado, e não é ainda um homem do futuro. Fica emparedado entre duas épocas. E Marcello Caetano acho que também é um bocadinho isso.

MC: Quando aceitou ir para lá, apesar dos constrangimentos, tinha presente que devia haver uma solução para as colónias portuguesas e a guerra em África. Precisava de apoios internacionais porque havia dois impérios dominantes: o soviético e o norte-americano. A ideia dele era não entregar ao império soviético aquilo que tinha custado tanto a construir ao Ocidente. Para nós, hoje, isto é uma conversa histórica, mas para a geração dele era decisiva. A ideia dele era uma autonomização progressiva [das colónias] que, aliás, já tinha defendido no início dos anos 60. Mas precisava de ter o apoio de um dos grandes impérios para que isso acontecesse sem o ataque imediato da outra parte. Tenta isso, e até há o encontro das Lajes. Mas entretanto dá-se o impeachment do Nixon e fica sem o apoio dos EUA. Depois há uma conversa com o Santos e Castro [governador de Angola], que o meu irmão dizia ter ouvido, de que ia ser feita a declaração do início do processo de autonomia e até já teriam combinado a data para o dia 28 de abril [com a presença de Marcello Caetano em Angola]. 

JAS: Mas houve uma fuga de informação e o PCP soube…

MC: E criaram o 25 de Abril para evitar isso. Faz sentido.

A imagem que muitas vezes fica do seu pai é de falta de vontade. Jaime Nogueira Pinto fala de ‘indecisão hamletiana’. Mas é curioso que, quando vemos outras situações, ele era bastante frontal e convicto.

MC: Não concordo com a forma como o Jaime Nogueira Pinto avaliou este período. Ele, no prefácio de uma das edições seguintes, diz ‘tenho uma visão diferente, mas não vou alterar aquilo que escrevi na época e que corresponde a um ponto de vista’. Podia juntar qualquer coisa sobre o que era a visão diferente… O meu pai era um racionalista e tinha todos os defeitos de um racionalista, que é sopesar as situações de um lado e do outro.

Os prós e os contras.

MC: Quando um racionalista se sente com força, vigor e capacidade de ação, e encontra quem o apoie, é evidente que decide. Era a situação do meu pai dez anos antes [de assumir o poder em 1968]. E ele decidia. Quando aceita ser presidente do Conselho, pensa que vai desempenhar ‘a missão’. Isso também fazia parte daquela geração. Pensa que as coisas se vão fazer como ele pensou. E em quem é que se vai apoiar? No grupo com quem tinha estado: o José Hermano Saraiva, o Baltazar Rebelo de Sousa, o Silva Cunha, o Dias Rosas… um grupo que viveu em euforia aquele período do pós-guerra até 60, quando começou a Guerra Colonial. Só que tinham passado dez anos, com uma guerra que já levava oito. Tudo estava mudado.

JAS: O seu pai se calhar chegou tarde ao poder. Se tivesse chegado dez anos antes, antes de a guerra começar, aparentemente tudo teria sido mais fácil. Penso que o Marcelo Rebelo de Sousa também disse isso. Agora, há uma coisa um bocadinho incómoda mas em que não podemos deixar de falar. Acho que o seu pai chega sempre atrasado aos momentos cruciais. Aliás, é muito atacado pelas pessoas do regime por isso, por não tomar as decisões a tempo. Qual é a minha interpretação? Enquanto Salazar, sendo um intelectual, muito cedo apanhou aquele lado do político – e nos momentos decisivos cortava a direito –, o seu pai nunca deixou de ser uma pessoa cerebral. E talvez esse pesar os prós e os contras fizesse dilatar o momento da decisão.

MC: Leu As Desventuras da Razão, de Vasco Pulido Valente?

JAS: Tenho-o lá para ler.

MC: Ele diz exatamente isso: ‘Marcello Caetano, porque racionalizava tudo antes de dar o passo em frente ou atrás, perdia o tempo’. Como professor, tinha uma maneira de ser e de analisar – isto de um lado, aquilo do outro – as várias hipóteses. Além disso, tinha muitas relações de amizade, da esquerda e da direita, e também falava com eles. Para ele, não era evidente o branco e o preto. Salazar diz-lhe um dia: ‘Nesse lugar não se pode ter amigos’. O meu pai não vivia assim. Mesmo que quisesse, não era capaz de ser assim.

Aproveitava essa referência para sugerir que recuássemos, para falarmos da relação entre Salazar e Marcello Caetano. Em que circunstâncias se conheceram?

MC: São factos documentados. O meu pai conhece o Salazar através do Pedro Theotonio Pereira, que era um pouco mais velho – um tinha 16 e o outro 20 anos –, porque ambos aderiram ao Integralismo Lusitano. O meu pai tinha entrado para a universidade com 15, 16 anos, vindo de uma família humilde e trabalhando para pagar os estudos. O Pedro Theotónio Pereira era um homem interessantíssimo, afirmativo, de choque. Criou-se entre eles uma relação de amizade extraordinária que durou toda a vida. A família do Pedro estava ligada a uma companhia de seguros e o Salazar, quando era ministro das Finanças, quis fazer a reforma dos seguros e chamou-o para o ajudar. Depois de redigidos os decretos, a legislação, o Pedro levava-os ao meu pai e dizia: ‘Marcello, veja lá aquilo que acha disto’ (não se tratavam por tu não sei porquê). Depois apresentava as sugestões do meu pai nas reuniões com o Salazar. E um dia, perante uma correção que o meu pai tinha feito num decreto, o Salazar diz: ‘Como é que eu deixei passar isto? Eu, que fui professor… Tem toda a razão. Foi você que descobriu este erro?’. E o Pedro: ‘Não, foi um amigo meu, um rapaz de 22 anos que se formou em Direito e a quem eu peço para verificar a parte jurídica’. ‘Essa agora!… Mande-me cá o rapaz para eu falar com ele’. O meu pai vai falar com o Salazar e…

JAS: Entra como auditor do Ministério das Finanças aos 23 anos. E depois, quando Salazar forma o primeiro Governo, convida-o. Acho que esse é um momento-chave. Salazar convida-o para o Governo e ele recusa. ‘Não, eu não vou para o Governo porque quero acabar o doutoramento’. Um miúdo dizia ‘não’ a Salazar. Ele deve ter tomado isto como uma…

Uma afronta?

JAS: Salazar não admitia muito a contestação. E, ainda por cima, Marcello Caetano era funcionário dele. Isto vai marcar muito as relações entre os dois.

MC: Esse choque houve sempre.

JAS: Muitos leitores disseram-me, para eles, uma das revelações do meu livro foi a dureza e a frontalidade com que Marcello Caetano falava com Salazar. Enviava-lhe cartas terríveis. Dizia aquilo que ninguém ousava dizer. Chegou a dizer-lhe que ele estava encaminhado para o abismo. Recordo aquele célebre discurso de Coimbra [1951] em que ele pergunta se de facto o regime é verdadeiramente um regime ou uma forma de garantir o exercício do poder por um homem. A forma encontrada para entregar o poder a um homem. E, depois, durante toda a vida vai ser uma sucessão de…

MC: Mal-entendidos.

JAS: E reaproximações. Agora, por que é que Salazar nunca rompeu definitivamente com ele? Julgo que a resposta é relativamente simples: ficou-lhe com respeito. Não era um miúdo qualquer que lhe diria ‘não’. E, portanto, nunca quis que ele se afastasse. Quis tê-lo sempre perto dele, para o poder minimamente controlar. Marcello Caetano na oposição seria um enorme perigo. Já depois de doente, quando dá aquela célebre entrevista ao L’Aurore [no verão de 1969], diz: ‘Tenho uma grande estima por Marcello Caetano. Engana-se em não querer colaborar connosco’. 

MC: Há mais que uma relação de política entre eles. O Salazar era mais velho, aparece-lhe aquele jovem com muitos talentos, sem dúvida nenhuma, mas impetuoso, teimoso. Criou-se uma relação afetiva. Apesar disso, eu nunca conheci o Salazar. Havia ministros que pediam ao Salazar para lhe apresentarem os filhos, o meu pai nunca fez isso.

Separava as coisas?

MC: Numa altura de grande atrito entre os dois, quando morre o meu avô, José Maria Alves Caetano, o Salazar aparece na igreja e acompanha o enterro, dos Anjos ao Alto de São João. O que dá a entender que ele sentia afetivamente aquele jovem como… 

É curioso porque Guilherme Valente, o editor da Gradiva, diz que o seu pai era o filho que Salazar não teve e que, por isso, lhe permitia certas coisas que não admitia a outros.

MC: A minha irmã, que é psicóloga, costuma dizer que, a nível cultural, havia uma relação de pai para filho, em termos freudianos. A relação ultrapassava o político. Salazar podia estar afastado, mas chamava o meu pai e pegavam-se sempre. O meu pai dizia: ‘Estamos com um problema aqui, outro acolá’.

Disse que o seu pai entrou para a universidade com 15 anos?

MC: O meu pai entra no Liceu de Camões com 10 anos e, no mesmo ano, entrou o meu tio Henrique de Barros, com 12. Inscreveram-se ambos na secção do Liceu da Associação dos Escoteiros de Portugal, tornam-se grandes amigos e chegam a chefes. E assim nasceu uma amizade improvável, pois Henrique era filho de João de Barros, um homem de grande influência no movimento republicano, membro da Maçonaria, professor, escritor, poeta, pedagogo, que fez parte dum dos últimos governos da I República, enquanto Marcello pertencia a uma família muito integrada na Igreja Católica, com fortes convicções religiosas. Quando chega ao sexto ano do liceu, o meu pai e outros dois mais velhos dizem: ‘Se fizéssemos dois anos num, entrávamos mais cedo para a faculdade’. E o Henrique de Barros, que ia para Agronomia, junta-se a eles. ‘Também faço Letras convosco’. Esse grupo fez o sexto e o sétimo anos num ano só. E quem os levou a exame, porque tinha de haver um professor, foi o João de Barros, pai do Henrique. Fazem o exame, ele e mais três, para ganharem um ano na vida. Entretanto, Marcello conhece Teresa, irmã de Henrique, com quem virá a casar em 1930.

As origens da família de seu pai eram humildes?

MC: Isso era perfeitamente claro. O pai do meu pai, José Maria Alves Caetano, nasceu em Pessegueiro da Beira, na Pampilhosa da Serra. O pai dele morreu tinha ele 12 anos.

Eram agricultores?

MC: Segundo reza a história, o meu bisavô seria alfaiate. Quando ele morreu, a família ficou sem capacidade para se sustentar, e o meu avô, com 12 anos, vem trabalhar para o estabelecimento – vamos usar a linguagem da época – de um patrício [conterrâneo] em Lisboa. Ele teria pedido ao padre da terra que, quando fosse a chamada dos mancebos para a tropa, caso estivesse na lista, o chamasse. Mas o padre esqueceu-se. E ele, em vez de fazer o tempo de tropa normal, levou com quatro anos ou cinco. E decide fazer disto carreira. Como sabia ler e escrever, rapidamente faz a recruta e chega a sargento da Guarda Fiscal. Anos depois, já colocado em Lisboa, concorre para a Alfândega de Lisboa e entra como escriturário. E aí começa uma outra vida. Entretanto, já tinha casado com uma rapariga da região de Arganil, tem várias filhas e o meu pai é o último filho do primeiro casamento e o único rapaz. Todas as filhas, menos a mais nova, fizeram o curso de professoras primárias e exerceram, numa altura em que poucas mulheres estudavam. E o meu pai também vai estudar e, como o meu avô tinha dificuldades, começa a dar explicações a colegas do liceu.

Devia ser um aluno excecional, não?

MC: Foi sempre bom aluno e cada vez mais. No início, quando a mãe dele morreu, tinha 10, 11 anos, brilhou menos, mas depois foi sempre um aluno excecional, que dava explicações e escrevia nos jornais ao mesmo tempo. Era uma pessoa excecional, de uma cultura fora do vulgar. 

JAS: Nalgumas coisas o seu pai e Salazar parecem quase feitos a papel químico. Nascem em famílias modestas, são ambos, no início da vida, monárquicos conservadores ligados ao meio católico, depois ambos formam-se em Direito, têm especializações na área económica. Há essa diferença essencial: um nasceu no campo e o outro na cidade. E logo isso estabelece mundos diferentes. Depois, há outra coisa: Salazar ficou solteiro a vida inteira e o seu pai casou, constituiu família.

MC: Teve os filhos e um sogro com quem tinha uma relação espetacular.

JAS: Mas o seu tio Henrique de Barros era um homem claramente da esquerda. Não era um moderado. Houve alturas em que penso que esteve próximo do Partido Comunista.

MC: Provavelmente foi aí que se deu a fricção. O meu pai não aceitava que ele pudesse ter simpatias pelo comunismo. O império comunista era a destruição da civilização cristã, dos ideais todos que tinham constituído. Eu tenho um lado da família republicano e outro católico. Do lado da minha mãe, o meu bisavô Teixeira de Queirós tinha sido deputado republicano, primeiro presidente do Parlamento, etc. Teve cinco filhas: uma casou com o meu avô João de Barros – republicano e ministro na I República, maçom em certa altura da vida –, outra casou com o irmão do meu avô, que também era maçom e republicano. Do outro lado, havia o ramo empresarial, que deu os Queiroz Pereira, que eram monárquicos conservadores. A minha bisavó manteve uma unidade enorme entre os 24 netos, que eram como irmãos. Nos jantares de família, juntavam-se os Barros e os Pereira, e, um dia, o meu bisavô deu um murro na mesa e disse: ‘Às terças os republicanos, às quintas os monárquicos!’, mas as cinco irmãs juntavam-se todas as semanas. E eu nasço neste meio. O meu pai tinha pelo meu avô João de Barros uma consideração e uma amizade extraordinárias. Íamos lá todas as semanas jantar e eles conversavam. O meu avô era reformado e não se podia dar a luxos, então houve uma revista que o meu pai assinou só porque o meu avô gostava imenso da literatura francesa e levava-a para falarem os dois.

O seu avô também adaptou aqueles livros todos – Os Lusíadas, A Odisseia, A Eneida… – para crianças.

MC: E o meu pai nunca proibiu, antes pelo contrário, que o avô tratasse da nossa biblioteca em miúdos. Aparecia lá em casa e trazia O Papagaio, O Diabrete, as histórias aos quadradinhos, assim como trazia livros para crianças e, mais tarde, disponibilizou-nos toda a coleção da Editora Livros do Brasil. O avô entrava lá em casa e o meu pai aparecia imediatamente. E com o meu tio Paulo, que morreu novo, também tinha uma relação extraordinária. Com o meu tio Henrique [de Barros] depois houve um afastamento, mas nós não nos apercebemos. Nunca vivi num mundo em conflito. Só muito mais tarde o meu pai me disse: ‘Quando foi da Guerra de Espanha, não nos conseguimos entender’. O meu tio Henrique tinha uma casa em Benfica com jardim. Nós não tínhamos jardim, de modo que apanhávamos o elétrico em S. Sebastião da Pedreira e íamos brincar para lá. Nunca sentimos nenhum problema.

Em vossa casa falavam de política? 

MC: Houve épocas diferentes. Por exemplo, nos anos 60, a relação com o meu pai, antes de ele ser primeiro-ministro, é extremamente aberta. Claro que o meu pai não era fácil. Lá em casa, as refeições eram um bocado doutrinárias. Mas isto mostra a maneira de ser dele: quando aceita ser ministro da Presidência, uma coisa que ele diz ao Salazar é: ‘Aceito este lugar, mas tenho de estar em casa às 20h30 a jantar’.

Para ele, isso era sagrado.

MC: Sagrado. Tinham de estar os filhos todos. Eu cheguei a deixar um filme a meio porque tinha de estar à mesa àquela hora. E depois era ele que dirigia a conversa. 

Mas sobre os assuntos do país?

MC: Havia sempre uma conversa sobre aquilo que se passava no mundo, sobre pessoas, isto e aquilo, em que ele perguntava: ‘O que vocês pensam?’. Ainda nos anos 50, nós éramos miúdos, e eu andava metido nas associações académicas. Quando lhe disse que me convidaram para a secção desportiva da Faculdade de Direito, ele olhou para mim e disse: ‘Eu acredito no teu bom senso e no teu sentido de responsabilidade’. E não me disse mais nada. Nunca mais me chateou. De vez em quando fazia-me uma pergunta, mas não se metia nos assuntos. A minha irmã tinha um regime diferente porque era a mais nova…

Podia dizer o que quisesse?

MC: Era a única. Ele punha uma questão. Se a gente respondia, ele dizia: ‘Não estás a ver bem o problema. Falta isto, falta aquilo’. E é claro que ele sabia muito mais e isso deixava-nos naquele papel de ‘vamos ouvir’. Nos anos 60, eu já casado, a trabalhar, ele queria saber tudo o que se passava. ‘Os teus amigos, o que pensam sobre aquilo e aqueloutro?’. 

Quem eram esses amigos?

MC:O João Salgueiro, o Alçada Baptista, o Rogério Martins, o Xavier Pintado, o Alexandre Vaz Pinto… Tudo gente com que eu me dava normalmente. Nos liberais, o José Pedro Pinto Leite era um amigo especial… Grande parte daquele grupo vinha da Ação Católica. Mas eu, por causa das minhas independências, não fui para a Juventude Universitária Católica (JUC). Tirei do catolicismo princípios que ainda hoje defendo, mas não misturava problemas de fé com questões políticas.

JAS: Ocorreu-me uma ideia. O seu pai tentou reformar o regime antes de ser presidente do Conselho. Por dentro, tentou e não conseguiu. E depois de ser presidente do Conselho faz uma nova tentativa, aí já com o poder teoricamente todo, mas também não consegue. 

MC: Ele ficou com a ideia ‘eu tenho um projeto para o país e não pude fazê-lo’. Lá estão os dez anos que passaram….
O seu pai era ambicioso, no sentido de ter uma visão e querer ter o poder para a levar para a frente?

MC: Era ambicioso na profissão, era ambicioso na ação política… Em qualquer função, ele achava que tinha capacidade e, portanto, avançava, procurando sempre novos caminhos, sempre com espírito de missão. Depois, é claro, às vezes esquecia-se que havia uma envolvente política que não era bem aquela em que ele julgava que estava a atuar.

JAS: O Salazar era um homem bastante dogmático. Construiu uma determinada tese e seguiu-a metodicamente. O seu pai dá-me ideia que era uma pessoa mais adaptável. Tinha marcos, como o nacionalismo, o anticomunismo, uma certa ideia relativamente ao papel do Estado na economia. Mas era mais pragmático. Era um homem que, apesar de tudo, ia-se adaptando às circunstâncias, enquanto o Salazar a determinada altura ficou imóvel. Ficou ali um pedregulho que não andava para diante nem para trás. Era um camião que estava ali parado – enquanto o seu pai era um carro em andamento. 

MC: Realmente, em termos de visão do mundo, Salazar tinha um certo imobilismo, enquanto o meu pai era viajado, culto internacionalmente. Há um discurso que faz em 1956 ou 1957 que é notável de estratégia para o país, porque fala da abertura à Europa, do desenvolvimento, tudo isso. E tinha um contacto com o mundo, através dos filhos e dos amigos. Há um problema que torna tudo diferente: Salazar sabia manobrar e mexer nas pessoas, deixando este em falta, colocando o outro assim, fazendo cair um terceiro. O golpe Botelho Moniz é um exemplo extraordinário de como ele, em três tempos, dá cabo daquilo. ‘Quando eles acordarem, já eu tirei os comandantes todos’. O meu pai não tinha essa habilidade, nem pouco mais ou menos.

JAS: Salazar era dogmático, mas também muito hábil taticamente…

MC: Terrivelmente hábil. Talvez o meu pai devesse ter demitido o Spínola e o Costa Gomes, ter demitido tudo de uma vez e avançado no caminho das autonomias multirraciais das nossas colónias. É claro que tinha de afastar o Thomaz também. O Salazar era capaz disso, mas o meu pai não era.

JAS: Ainda em relação a Salazar, há um momento em que se diz que o seu pai conspira contra ele. Que está ligado ao golpe do Botelho Moniz. É verdade que o seu pai tem uma boa relação com o Craveiro Lopes?

MC: Sim, sim.

JAS: E até há uma cena muito engraçada em que o Craveiro Lopes lhe confessa que andam atrás dele para encabeçar uma revolta, isto em 1958, na altura em que o Craveiro está de saída. O seu pai depois vai a São Bento e o Salazar fica muito espantado por vê-lo aparecer àquela hora. O seu pai começa a contar que esteve com o Presidente da República. Mais tarde, confidenciará: ‘Por um momento, percebi que ele pensou que o Presidente da República o tinha demitido’. De repente, essa ideia passou-lhe pela cabeça… Isto mostra ao mesmo tempo uma grande fidelidade do seu pai a Salazar. Ele podia ter ouvido a conversa e guardá-la para si. Mas não. O seu primeiro instinto foi ir contar ao Salazar o que se passava. 

MC: Segundo me lembro, no livro As Minhas Memorias de Salazar, o meu pai diz que foi o próprio Craveiro Lopes que lhe pediu para contar a Salazar…

JAS: Agora, também é verdade que, quando sai do Governo, forma o célebre Grupo da Choupana, com o Baltazar Rebelo de Sousa e outros que o acompanhavam desde o início dos anos quarenta. Penso que até houve reuniões aqui nesta casa…

MC: No inverno, o meu pai, aos sábados, vinha para aqui. Abria a porta e metia-se no escritório gelado. Depois falava com o caseiro, gostava muito da horta e dessas coisas todas, que era ele que geria. E esses amigos, mais novos, vinham cá ter, mas não tinham um mínimo de condições para se instalarem. E combinaram que o meu pai vinha tratar da horta e depois ia para a Choupana.

JAS: Que, curiosamente, era um restaurante muito perto do Forte de Santo António, onde o Salazar passava as férias. Mas dava ideia que era um grupo que se constituiu numa espécie de alternativa. Não havia partidos e o seu pai, de alguma maneira, formou um grupo que era um bocadinho isso. Não conspiravam, mas existiam, discutiam e tinham posições diferentes das do regime.

MC: Se for ver a origem desse grupo, nasce no tempo em que o meu pai é comissário da Mocidade Portuguesa. E acompanha-o sempre ao longo da vida. Conspiravam? Não conspiravam mas, de facto, pensavam-se como alternativa. Ninguém sabia quanto tempo Salazar ia durar em termos de saúde, de política, de querer ou não querer. Portanto, ele tem à volta um grupo que, se for preciso, ou quando houver uma oportunidade, está em condições de assumir o poder… Quanto à história do Botelho Moniz, eu sempre ouvi o meu pai dizer que não alinhava em golpes militares contra o Salazar. Eu não estava lá para ver. Mas nunca ouvi o meu pai a admitir que se tinha envolvido no golpe Botelho Moniz. 

JAS: E agora pergunto-lhe: ele em casa não falava do Salazar? Nunca disse mal dele?

MC: Isso não fazia, mas tem uma ou outra coisa escrita em que se vê que está zangado. Não fazia, porque havia uma defesa do formal. Ele saiu muito magoado, em 1958, e é verdade que fez uma obra extraordinária nesse período. O Banco de Fomento, os planos de fomento… É tudo deixado ou feito por ele.

JAS: Até a RTP nasce nesse período….

MC: Sim. E tem tudo preparado para continuar. A nível de reformas, de instituições, etc.

JCS: E Salazar afasta-o.

MC: Por causa do conflito com a ala do Santos Costa. Diziam que o meu pai era liberal, mas liberal nunca foi muito, enquanto o Santos Costa era reaccionário. E Salazar fez aquilo que sempre fez: se demite um, demite o outro, porque senão o que fica julga que é o dono disto tudo. Ele aí ficou muito magoado. ‘Acabou-se a minha vida política’. Apossou-se dele uma certa tristeza, mas nunca disse ‘O Salazar atraiçoou-me’ ou coisa parecida. E, passado algum tempo, aceita o convite para reitor. Não é um cargo político, mas era um compromisso. E ele, como reitor, envolve-se em diálogo com alunos, que eram a esquerda da juventude.

Mas disse que há sítios onde escreveu e deu vazão à sua insatisfação. São diários, cartas?

MC: Ele publicou tudo o que quis. Escreveu as suas memórias do Salazar. Em combinação com os meus irmãos, publicámos a correspondência toda entre os dois e que chega para perceber que havia, de vez em quando, estalada. Vê-se que ele, de vez em quando…

Precisava de desabafar?

MC: Vinha irritado. Mas essas não vou publicar. Uma das coisas que pode dizer do meu pai é que procurou deixar o seu pensamento, em várias épocas, expresso em livros. Havia sempre conflitos. Quando ele aceita a presidência da União Nacional, está convencido de que vai haver, a seguir à guerra, uma mudança na política do Estado Novo. Que vai haver uma abertura, uma modernização. O meu pai ia lá fora, viajava muito e via o mundo mudar. E, ao fim de um tempo, percebe que está a ser enganado. E escreve ao Salazar mais ou menos isto: ‘Estou metido num gabinete em Lisboa, perfeitamente fora daquilo que se está a passar no país todo; visto que não querem saber da minha opinião para nada, vou-me embora’. E o Salazar pede-lhe: ‘Mas se saísse agora dava um aspeto tão negativo’ e o meu pai aceita ficar mais seis meses. O que ele disse era real, não queriam saber para nada do presidente da União Nacional, não tinha poder para modificar nada. Isso passa-se em várias ocasiões. Ele fazia a avaliação do mal menor: ‘Se eu partir agora a loiça, o estrondo será aproveitado pelo outro lado e isso pode ser negativo porque não há alternativa’.

Falou do desejo de modernização que o seu pai tinha. Salazar fazia quase o culto da pobreza, uma santificação através da pobreza, e ele próprio cultivava muito essa simplicidade, esse desprendimento. O que é que o seu pai achava disso?

MC: Tinha uma ideia diferente, claramente… O meu pai não suportava era a burguesia que não trabalhava, a burguesia instalada.

JAS: Essa ideia do miserabilismo de Salazar foi muito parodiada. Penso que aí há duas coisas: ele era intrinsecamente assim, até pelas suas origens. Nasce numa aldeia muito pobre e tem noção das dificuldades da vida, sabe que é preciso poupar, ser-se austero, não gastar mal dinheiro. É algo que está ligado ao meio em que nasce.

MC: E ao seminário.

JAS: Em segundo lugar, quando Salazar vai para ministro das Finanças está ainda em cima da mesa um pedido de empréstimo feito pelo antecessor, Sinel de Cordes, que Salazar recusará. Ele ainda vai retomar a ideia, mas os credores impõem medidas que considera humilhantes e ele diz: ‘Não, então não queremos’. A questão do empréstimo está definitivamente encerrada. E, aí, faz um apelo ao país: ‘Temos de defender a honra, porque estão a querer ofender-nos, e vamos poupar, fazer sacrifícios, mas manter a dignidade’. Daí vem um bocadinho o ‘pobres mas honrados’. Há, digamos, um lado que tem a ver com ele e com o meio em que nasce, e outro lado que tem a ver com as condições em que assume o poder. De facto, há grandes dificuldades, que aumentam com a recusa do empréstimo estrangeiro, mas sempre neste sentido de ‘vamos defender a honra’.

MC: A afirmação de que Portugal não é dependente.

JAS: Exatamente.

MC: Aliás, mais tarde, num primeiro momento, Portugal recusa aderir ao Plano Marshall, depois adere, mas faz questão de proceder ao pagamento integral do empréstimo. Ninguém pagou a prestação na altura, e Portugal paga. Quanto à pobreza, não foi o Estado Novo que tornou Portugal pobre. Portugal já era pobre. Salazar fez disso uma mensagem que depois foi muito ridicularizada, de que ser pobre era uma maneira de estar e viver, etc., etc. Mas não havia possibilidade. Quando Salazar foi para lá havia uma dívida brutal, era um país falido. E Salazar criou o mito da pobreza, com aquelas canções e aquela coisa toda. Ele nunca tinha vivido de outra maneira nem sentia necessidade. O meu pai não era assim. Cresceu num meio que não era rico nem pobre, era remediado, mas pensava que se devia dar oportunidade a todos de viverem melhor. A criação e a distribuição de riqueza era um dos objetivos de qualquer um dos planos de Fomento, mas também achava que as pessoas tinham de trabalhar para isso. Devemos ajudar as pessoas que precisam, mas têm de estudar, aprender, trabalhar e fazer melhor. Temos de dar meios, não fazendo, de maneira nenhuma, o culto da sociedade pobrezinha.

E em termos pessoais, de gastos, era poupado, despreocupado…?

MC: Era austero. Em termos pessoais, na medida em que foi tendo mais disponibilidades, vivia mais descontraído. Podia ir a um hotel, mas não tinha vícios. A gente passava o verão num andar alugado, na praia, aqui ou acolá e ele sempre foi frugal. Também não gostava de ir a restaurantes, ia por obrigação. 

JAS: Não se interessava pelo dinheiro?

MC: Não. O dinheiro era para usar, não para acumular. E também não gostava de grandezas. O primeiro carro que ele comprou foi em 1948, um pequeno Austin. Quando esteve na Mocidade como comissário, tinha um Fiat 600. Depois, mais tarde, nos anos 60, fora da política e exercendo como jurisconsulto, tinha um Mercedes já com motorista. Havia sempre quem tivesse mesadas superiores às nossas… Às vezes, era eu estudante, pedia-me: ‘Preciso que faças aí o índice do Manual de Direito Administrativo. Se fizeres isso, pago-te x’. O dinheiro era um meio. Foi importante para a doença da minha mãe, mas para ele não era uma necessidade.

JAS: O José Pedro Castanheira conta no livro A Queda da Cadeira – o princípio do fim da ditadura, uma história impressionante. O seu pai, quando chegava a casa, à noite, ia para o quarto da sua mãe e, mesmo sabendo que ela já não estava em situação de o compreender, fazia questão de contar-lhe aquilo que tinha feito, como tinha corrido o dia…

Isso é tocante.

MC: A relação deles era muito intensa. A doença da minha mãe é algo de terrível na família, porque ela entrou em depressão aos 50 anos. E a doença foi progredindo. Atingiu níveis de tristeza e ansiedade, uma coisa…

Essa depressão foi desencadeada por algum acontecimento específico?

MC: Não houve nenhuma razão. A minha mãe era uma pessoa muito sensível, muito culta, muito ativa e sempre disponível para os outros. Em meados dos anos 50 teve uma crise renal complicada, sofreu muito, ficou deprimida, com baixas de tensão e outros sintomas. Parecia que tinha recuperado, mas entrou numa depressão cada vez maior. Já nessa fase, em 1960, morreu o meu avô João de Barros, seu pai, com quem ela tinha uma relação especial. Já acompanhada por um neurologista, continuou a piorar, vivendo num sofrimento cada vez maior. Durante esse período, o meu pai procurou fazer tudo para a manter interessada. O meu avô deixou no seu espólio um envelope dirigido à sua filha: ‘A minha filha Teresa que sempre amou a poesia’, dentro do qual estavam poemas seus nunca publicados. Eram versos para a minha mãe escolher, o que ainda foi fazendo, sempre com a ajuda do meu pai, que nunca desistiu até editar em 1967 o livro Eterno Mar – Últimos Versos, de João de Barros. Em meados de 60, depois duma conferência entre os médicos portugueses e outros estrangeiros, entendeu-se que a operação era uma alternativa. Foi operada – fizeram-lhe uma leucotomia e não uma lobotomia. E logo a seguir ficou muito mais tranquila

Ou seja, aparentemente, tinha resultado.

MC: No meio disto tudo, voltou a sociabilizar. Como conta a minha irmã, com muito mais competência do que eu, de repente começou a notar-se um envelhecimento precoce. A minha mãe começa a ficar muito mais velha, embora mais tranquila. Acharam aquilo esquisito e vai à Suíça a uma clínica. E dizem: ‘Está tudo bem, mas a senhora tem uma infeção. Como agora vai para Lisboa, vejam lá o que se passa’. Chegou cá e entrou em coma renal. Já antes se queixava de dores nos rins mas achavam que era devido à doença psicológica. Estava com um problema grave há meses. Recuperou, mas depois ficou acamada. Toda a vida a minha mãe foi uma conselheira que o meu pai gostava de ouvir. Portanto, mesmo quando ficou acamada, o meu pai chegava a casa e ia falar com ela. Nós nunca vimos, a minha irmã é que contava isso. E um dia diz-me: ‘Isto é muito estranho. A mãe começou a fazer-me perguntas sobre coisas que não era suposto saber. Depois percebi que era o pai que ia lá contar’. 

Não tinha perdido completamente o entendimento.

MC: Por vezes desinteressava-se da realidade que a cercava e evitava comunicar com o exterior. É claro que o pai viveu esse período amarrado pela doença da minha mãe. Meses depois de ele aceitar ir para o Governo, já a minha mãe estava acamada. Era a altura em que ele vinha para casa fazer-lhe companhia. Ao fim do dia, ficava com ela. Isso marcou-o, como é evidente. Não posso dizer que o meu pai, nos anos 60, e até à morte da minha mãe, não esteja afetado por isso.

Uma última questão. Poderá alguma vez ter passado pela cabeça de Marcello Caetano que assumir o poder seria uma deslealdade para com Salazar, estando este ainda vivo? 

MC: Naquele período em que teve a queda da cadeira – ou da banheira [tese defendida por JAS no livro Salazar – A queda de uma cadeira que não existia] –, Salazar não estava em condições de mandar. O meu pai foi extremamente exigente quanto a esperar que houvesse um diagnóstico que dissesse que ele não voltaria. Portanto, atenção – não foi o meu pai que decidiu isso, foi uma solução que saiu das várias reuniões do Conselho de Estado. A maioria entendeu que Salazar não podia voltar e era também essa a opinião médica. Só nessas condições o meu pai aceitou o convite de Thomaz.

JAS: Há uma coisa que foi muito falada na altura. Quando Salazar adoeceu, disse-se que o seu pai não foi logo visitá-lo. Mas o José Pedro Castanheira descobriu uma foto do seu pai, sozinho, na Casa de Saúde da Cruz Vermelha. Portanto parece que foi mesmo. É estranho que nenhuma pessoa da família, nem ele próprio, tenha desmentido essa ideia de que não foi visitar Salazar após o internamento.

MC: A única pessoa que me disse que o meu pai tinha ido à Casa de Saúde foi o Joaquim Silva Pinto. ‘Eu acompanhei-o. O teu pai foi lá saber do Salazar’.

JAS: O seu pai também esteve dez anos sem ir ao Conselho de Estado. E volta na altura em que Salazar adoece. Ele tinha noção de que podia ser o sucessor?

MC: É uma pergunta um bocado psicanalítica…

JAS: Podia ter falado sobre isso com os filhos.

MC: Ele escreveu em 1958 uma carta ao Presidente da República dizendo que tinha pedido a demissão de todos os cargos políticos e que também pedia a demissão do Conselho de Estado. E o Presidente da República respondeu-lhe que o cargo era vitalício, não se podia demitir. De facto, aquilo que eu sentia antes é que ele se tinha afastado. Não estava a vê-lo com disponibilidade para avançar. Mas, do que conhecia dele, também sabia que se ele pensasse que o achavam necessário – e nisso era empurrado pelos seus discípulos – poderia considerar que tinha a obrigação de avançar. Por outro lado, ele teve o seu projeto [político] parado dez anos e pode ter tido a tentação de pensar: ‘Posso dar a volta e fazer qualquer coisa’. Podemos dizer que o seu espírito de missão o leva a voltar ao Conselho e a querer ser candidato à sucessão. Eu preferia que não o tivesse feito, mas enfim…

Ele discutiu isso com a família?

MC: Não. Quando me chamou cá…

… já tinha tomado a decisão.

MC: Exato. Eu disse-lhe qualquer coisa do género: ‘Cuidado que o primeiro será para queimar’. Não foi exatamente essa a frase, mas era esse o sentido. Ele olhou para mim e disse: ‘Quando se tem obrigações para cumprir não é com esse tipo de argumentos que se responde’.
Ia perguntar-lhe isso, se o seu pai tinha assumido o cargo com gravidade ou entusiasmo.

MC: Primeiro esteve a matutar. A minha mãe estava doentíssima, havia um ambiente complicado. Sei que quando decidiu estava convicto. Depois há um mal-entendido, o Thomaz escreveu que ele o pressionou para ser presidente do Conselho.

JAS: Disse nas memórias que o seu pai estava ansioso por ser convidado.

MC: A única coisa que sei é que o Thomaz lhe disse: ‘O senhor foi escolhido. Portanto, vamos confirmar isso’. E o meu pai terá dito: ‘Mas se é para confirmar, não pode demorar muito. A vacatura do poder, para mim, é um erro tremendo’. Passaram-se 15 dias. Os boatos, os prós, os contras, tudo aquilo entrou em ebulição. E o meu pai telefona ao Thomaz a dizer que não lhe interessa tomar o poder no meio de uma convulsão do regime. Poderá ter sido por isso que Thomaz disse que ele o pressionou fortemente.