Carlos de Oliveira. O mais anti-moderno dos poetas portugueses

No centenário da grande figura do neo-realismo português, fica claro que este poeta e romancista foi quem melhor interpretou a urgência de uma arte que se empenhasse em resgatar o homem a essa transformação em mero escravo da produtividade ininterrupta e da destruição que se segue.

Primeiro que tudo, Carlos de Oliveira ainda foi um homem, o que não é pouco, nem como exemplo para os demais. Como escreveu outro poeta, Manuel de Castro, “chama-se um homem ao que sabe o que está fazendo”. A esse que em vez de se servir dele para jogos de exibição, realmente pode com o peso do seu coração. Quando tantos apenas obedecem ao seu egoísmo e o fazem com espalhafato, Carlos de Oliveira, como lembrava no ano da sua morte Eduardo Prado Coelho, odiava o espectáculo. Foi, por isso, dando por si exilado do tempo que absorvia tudo ao redor. Vivia crescentemente exasperado com tudo aquilo que já então se pressentia, esta terra demarcada pelo fim das primaveras, como assinalou o filósofo Frédéric Gros. Este mundo com as suas desigualdades abissais, que assiste ao desmoronar dos seus alicerces naturais numa corrida suicidária para diante, enquanto nós, entre a impotência da maioria e o egoísmo demencial de alguns, de uma irresponsabilidade letal, deixamos para trás um legado nauseabundo às gerações futuras. Enquanto outros se bastam com o logro das suas ilusões pessoais, sendo embora um dos grandes escritores portugueses, e possuindo elementos que lhe permitiam ter consciência disso, Carlos de Oliveira preferiu sempre a imposição da ausência, furtando-se a quaisquer estratégias da glória ou malabarismos promocionais, diz-nos Prado Coelho. “Daí também o obstinado apagamento a que se forçou.”

A sua lição foi a de um termo face ao que por aí viria. Ele assistiu à queda no que já então assumia o aspecto de uma era glacial, estando entre esses jovens artistas que se reuniram nos cafés fora das coordenadas culturais da Lisboa do fim da guerra mundial, e, apesar da sua diferença que sempre soube defender, era cúmplice dos poetas do Novo Cancioneiro que, como dizia um deles, procuravam o sol através dos fantasmas do real. E à medida que essa esquadra inconformada deu lugar a uma outra cheia de tiques cosmopolitas, dissolvia-se a resistência aos tempos nesses tugúrios cada vez mais lotados até altas horas por hordas de barulhentos poseurs, acabando por se transformarem em desolados cemitérios nos quais nem mesmo os fantasmas queriam estar. Se a ideia comunista, como vinca Prado Coelho, decidiu o essencial da existência deste poeta nascido há 100 anos, e desaparecido há 40, “o espaço da sua obra está povoado de florestas que nenhuma ideologia reduz”. A sua exigência começava por ser humana, por identificar esse horizonte ameaçado, e a política que se inscreve na sua obra tem por isso um alcance bem mais longínquo. Já em 1961, a propósito da publicação de Cantata, João Gaspar Simões notava que Carlos de Oliveira não representava o lado ortodoxo do Novo Cancioneiro e que na sua poesia os ecos do lirismo cantabile de remota tradição nacional sempre abafaram quaisquer veleidades de discursividade militante. A sua inspiração remonta, na verdade, a “uma era arcaica e, mais ainda, primordial” (Osvaldo Manuel Silvestre), e ao pôr-se diante do papel, ele sabia como nele paira um passado de pedra, uma voz ao mesmo tempo mais profunda e sumida. Assim, foi levantar na linguagem, esse mapa interior às eras, “o sal dos velhos itinerários”, nutrindo-se numa tradição que ferve num hálito prateado, através de uma atenção antiga, liberta das tentações modernas, descobrindo “sobre as coisas o resíduo dum luar lento”.

Em O Aprendiz de Feiticeiro, este que Maria Filomena Molder considera ser “o menos biografável dos nossos poetas contemporâneos”, reúne uma série de escritos de circunstância que, no entanto, se organizam e funcionam como “chaves a abrir de lado em lado a porta da oficina”, dispondo um percurso instigante entre fragmentos soltos, avisos desgarrados, entre pequenas narrativas e meditações sobre as próprias obras, além de interpretações agudas sobre textos alheios. E um desses textos é decisivo pela inscrição deste homem entre os homens, fazendo saber desde logo que “mutações bruscas, cortes radicais com o passado literário”, lhe parecem inviáveis. “Começar outra vez a poesia portuguesa como se ela acabasse de nascer? Desculpem-me (os espíritos ‘cultos’) a imagem camponesa, mas a enxertia faz-se na árvore que já existe. Para a revitalizar ou para conseguir frutos diferentes que trazem no entanto um pouco do sabor, da textura anteriores.”

Há aqui uma consciência que ecoa em vários momentos ao longo da obra, e que denota essa lucidez de um poeta que entende que “o que subverte age sem se dar por isso” (Prado Coelho). A título de exemplo, relembremos uns versos do poema “Árvore”: “é então que vejo/ no halo mais antigo/ a árvore desolada,/ os ramos em que poisam/ as aves/ doutros livros,/ e pressinto/ as raízes/ através da sílica/ onde a família dorme/ com os ossos dispostos/ nessa arquitectura/ duvidosa/ de símbolos/ que chegaram/ aqui/ de mão em mão/ para caberem todos/ na constelação/ exígua/ que fulgura/ ao canto do quarto:/ o baú ponteado/ como o céu/ por tachas amarelas,/ por estrelas/ pregadas na madeira/ da árvore.”

Já em Finisterra, “essa alegoria ficcionalmente articulada que pode ser lida na perspectiva de uma espécie de cartografia imaginária do autor, constituindo assim a melhor introdução ou o melhor comentário à sua obra” (Herberto Helder), o poeta reconhece que o melhor é voltar atrás, ao começo de tudo. “Há mil anos (ou mais), alguém repara atentamente numa garrafa cheia de água e descobre a primeira objectiva. Lá está a imagem da realidade, quando os raios solares passam através da água.” E sublinha que, como diz o compêndio de fotografia, “a imagem apresenta um ordenamento inverso do real, mas captou-lhe os elementos essenciais”. Carlos de Oliveira liga assim o processo da arte às experiências para captar o real, deter uma imagem da imagem, e isto desde aquele espantado confronto inicial, quando alguém deu pelo real às avessas nessa rudimentar lente da garrafa de água, apercebendo-se de que tinha ali um negativo, essa ausência semelhante à que se forma à tona do texto, exposta “num gume fulgurante”. E diz-nos ainda: “Magia, imaginação, limitam-se a recolher o rigor submerso da realidade. Os números, a geometria, em que o mundo repousa.” Mais à frente, explicita que esta magia lhe serve para filtrar o mundo, dar-lhe algum sentido. Nesse esforço, indo às escuras sem, no entanto, andar às apalpadelas, o poeta admite que está condenado a ver a sua “solidão coalhada sobre a mesa”, e que não tem quem consultar, restando-lhe confundir duas ordens de sonhos, unificar o tempo. “Fazer contas e errá-las: a soma que se chama alma.” Um pouco antes fala em “criar o animal doméstico, a paciência que se ouve nos provérbios”.

É evidente como nesta narrativa da suspensão do mundo, o lirismo se extrai de entre vislumbres oníricos, o discurso estende um fio que, por mais tenso que seja, está contaminado tanto de elementos concretos, entre o que está ali e o que se arranca à memória, como esses outros que não existem (a gisandra) mas ilustram a invasão do imaginário. De tudo isso se faz esse ermo, essa casa ermada, na calcinação das imagens que se sucedem como ecos umas das outras, mas tocados por fascinantes variações. Avança, assim, à luz de sóis estilhaçados, e sente como “as palavras hesitam de repente, incertas, disjuntivas, e o poema esboroa-se no rasto da criação”.

Neste percurso, diz-nos António Ramos Rosa, as palavras criam e ocupam o seu próprio espaço e a poesia torna-se a invenção do real nesse centro originário em que linguagem e mundo são um”. Finisterra aponta para isto mesmo, falando em “palavras como cozedura, forno, espécies de fogo, referidas aos reinos da natureza, ao princípio da indiferenciação…” Contudo, adianta Ramos Rosa, esta operação não é fácil, “porquanto se lhe contrapõe um grande obstáculo, o silêncio, que, aliás, é uma condição e um elemento do poema, o qual tem de o absorver em si e integrar no seu tecido de linguagem”. Ora, Carlos de Oliveira toca precisamente este aspecto num dos seus poemas: “Localizar/ na frágil espessura/ do tempo,/ que a linguagem/ pôs/ em vibração,/ o ponto morto/ onde a velocidade/ se fractura/ e aí/ determinar/ com exactidão/ o foco// do silêncio.” Assim, o próprio silêncio se converte num elemento chave para a revelação do que possa ser o mundo.

Esse silêncio com que se depara incessantemente funciona, por isso, tanto como uma força ameaçadora, como algo que engendra a própria concentração do acto poético, e sinaliza o espaço de aventura ao qual aquele tem de estar aberto, para que a palavra seja um meio de “confrontação do poema com o espaço cósmico, geológico, na busca de uma rigorosa autodefinição, a obsessão de uma ilimitada intemporalidade reduzida a um momento de concreção quase intolerável” (Ramos Rosa). Mas como acontece no silêncio, não cabe aqui qualquer forma de convencimento, e trata-se sempre de uma indagação, tantas vezes dolorosa, que obriga o poeta a uma vigilância perpétua, até que o tempo inteiro da criação deflagre num instante: “O poeta/ [o cartógrafo?]/ observa/ as suas/ ilhas caligráficas/ cercadas/ por um mar/ sem marés,/ arquipélago/ a que falta/ vento,/ fauna, flora,/ e o hálito húmido/ da espuma,/ pensando/ que talvez alguma ave errante/ traga/ à solidão/ do mapa,/ aos recifes desertos,/ um frémito,/ um voo,/ se for possível/ voar/ sobre tanta/ aridez.” 

Na relação entre imagem e palavra, na intimidade do texto ou do poema, projectam-se sombras como corpos compactos, sombras de gestos dum ritual perto do fim (“Mal se vê dentro destas frases. Só com a lâmpada da paciência”, lê-se em O Aprendiz de Feiticeiro). O poeta mantém, no entanto, a sua crença nos poderes da intuição, e dela se serve sem reservas.

Busca o crepúsculo que vai “entrando/ poro a poro/ pela mão/ que escreve,/ encaminhando-a/ entre/ a pouca luz// do texto/ à sílaba inicial/ da única palavra/ que é/ ao mesmo tempo/ água e pedra:// sombra,/ som”. E a obra de Carlos de Oliveira é particularmente exemplar uma vez que nunca se aquietou, impondo a si mesma essa devastação sensível que opera por meio de um efeito rasurante, como se o próprio tempo fosse uma função que ele conseguiu capturar nessa ficção reveladora do real. E se “as palavras não perdem o ritmo tumultuoso”, impõe-se esse paralelismo com o processo alquímico, com o poeta investido em lidar dentro dos sentidos como se transmutasse metais, recriando o ouro, dando passos que ninguém suspeita.

Busca o milagre, esse para o qual se orienta o trabalho alquímico, numa exasperante investigação, num trabalho vagaroso – “feito, desfeito, refeito, rarefeito”… Assim, reconhece-se que o poeta é a sua própria criação, aquele ser longo e paciente, que sabe que não há sílabas soltas, que tenta chegar às palavras sem fracturas, sem empastamentos: “um bloco íntegro, mas distentido”. Para isso, procura falar “como se esticasse a massa espessa dos sons”.

Em sinal inverso da ausência que cumpriu em tudo o que não respeitasse à obra, Carlos de Oliveira foi o seu mais impiedoso leitor, e regressou sempre a ela, releu-a de forma incessante, reescreveu-a obsessivamente, trabalhou de modo consciencioso e incansável para reduzir a vaga substância das palavras a um nítido e incisivo resíduo de beleza. Desse modo, prestou o mais convicto testemunho de que “Rudes e breves as palavras pesam/ mais do que as lages ou a vida, tanto,/ que levantar a torre do meu canto/ é recriar o mundo pedra a pedra;/ mina obscura e insondável, quis/ acender-te o granito das estrelas/e nestes versos repetir com elas/ o milagre das velhas pederneiras;/ mas as pedras de fogo transformei-as/ nas lousas cegas, áridas, da morte,/ o dicionário que me coube em sorte/ folheei-o ao rumor do sofrimento:/ ó palavras de ferro, ainda sonho/ dar-vos a leve têmpera do vento.” 

De resto, a propósito deste confronto decisivo, da permanente reescrita a que Carlos de Oliveira foi sujeitando a sua obra, Joaquim Manuel Magalhães observa que há uma alta tarefa educativa em poetas assim, uma vez que “eles evocam quanto a escrita pode ser um combate persistente entre a intenção de caos da linguagem e a tensão de sentido da formação verbal”.

E se não restam dúvidas de que Carlos de Oliveira foi o grande nome do neo-realismo português, quando se defende que foi o maior escritor da sua geração, como fez Prado Coelho, esse risco prende-se com um modo específico de esta obra se relacionar com um país meio decrépito e meio infantil, defendendo, no entanto, a sua distinta paisagem e as condições para o seu firme povoamento, não tanto nas leis como nas histórias que lhe conferem uma dimensão mais decisiva. “Ele conseguiu não ser o escritor de uma geração”, diz Prado Coelho, “mas o escritor onde cada geração soube encontrar o modelo da sua procura mais funda”. E isto não resulta de ter sido um poeta alinhado com a modernidade, como sugere este crítico, mas é precisamente por estar do lado das resistências “provinciais” ou da persistência de zonas não assimiladas nem assimiláveis ao modelo cosmopolita da arte de vanguarda. Tendo nascido no Brasil, em Belém do Pará, Amazónia, onde estavam emigrados os pais, com apenas dois anos Carlos de Oliveira voltou para Portugal, tendo passado a infância na árida região da Gândara, tendo os caminhos e veredas da região sido mais do que transpostos, num certo sentido foram (re)criados na sua obra, de tal modo que Osvaldo Manuel Silvestre admite que seja impossível hoje falar-se da Gândara sem ter como referência capital a história que esta obra nos conta sobre aquele território.

Wystan H. Auden disse que um bom poeta deveria ser como um bom produto agrícola, como um determinado queijo ou vinho, típicos de colinas e vales específicos, mas que, justamente por isso, são apreciados em toda a parte. O crítico italiano Alfonso Berardinelli é quem nos lembra esta definição, e quem nos faz notar que, do mesmo modo que “o capitalismo, que é filho da organização e exploração de um espaço desmesurado, também a poesia moderna é filha de um império cultural de confins ilimitados”. E acrescenta que “as suas ofuscantes riquezas derivam do saque das mais longínquas e inacessíveis civilizações, da exploração livre e intensiva de minas situadas nas regiões mais acidentadas e remotas: estratos originários e arquetípicos da cultura ocidental, médio-oriental e asiática”. Concluindo que estes tesouros “convergem para o centro e são submetidos a um processo produtivo artístico excepcionalmente eficiente e concentrado”.

Berardinelli fala ainda do modelo cosmopolita como um processo de desenraizamento e fragmentação, uma “aspiração extrema ao essencial ao preço de reduzir catedrais, templos e palácios a pedacinhos minúsculos, migalhas estéticas”. E se em quase toda a poesia que se vem escrevendo nas últimas décadas se sente a ausência de centro, a obra de Carlos de Oliveira define-se precisamente por um princípio de coesão e uma unidade interna de medida capazes de organizar e manter unida a poeira das emoções, elementos de experiência e impressões, mas também regulares, ainda que discretíssimas, marcas sociais, naquele empenho sério em provocar uma crise da linguagem, abalando os fundamentos conservadores do mundo. Assim, Carlos de Oliveira afasta-se para as margens, e, “do fogo das pedras à pedregosa luz da poesia, a luz escrita desencadeia um movimento desenquadrante”, como assinalou Silvina Rodrigues Lopes (SRL). Enquanto a luz do seu tempo se detinha e capturava aquele círculo de gente que, mesmo se combativa em face das circunstâncias que se viviam, acabou aprisionada num ranço de gravura antiga, este poeta estava atento não só à linguagem mas à crise que o próprio tempo produz, e entendeu esse desafio duplo que leva a lírica a tomar posse do seu tempo-espaço por um efeito de decomposição, de tal modo que na obra de Carlos de Oliveira “o rasto de luz da ficção é cortado em versos pedregosos, separados e ligados pelos intervalos que os iluminam” (SRL). Em vez de se mostrar interessado em satisfazer esse registo que se contenta com as emoções fictícias de uma existência estetizada, a beleza aqui respeita a uma condição de fidelidade extrema: “Vocábulos de sílica, aspereza,/ Chuva nas dunas, tojos, animais/ Caçados entre névoas matinais,/ A beleza que têm se é beleza.// O trabalho da plaina portuguesa,/ As ondas de madeira artesanais/ Deixando o seu fulgor nos areais,/ A solidão coalhada sobre a mesa.// As sílabas de cedro, de papel,/ A espuma vegetal, o selo de água,/ Caindo-me nas mãos desde o início.// O abat-jour, o seu luar fiel,/ Insinuando sem amor nem mágoa/ A noite que cercou o meu ofício.”

Este que é um dos mais perfeitos sonetos alguma vez escritos nesta língua, é uma arma deixada nas nossas mãos, um artefacto de puro fascínio, por um lado, e por outro, é algo de contundente, uma estrela de mão, um punhal afiado contra a pedra do idioma, e que “fulmina como um relâmpago, queima como uma ponta de gelo ou é já só um brilho restante à beira da exaustão, o fulgor do halo de uma coisa que vai extinguir-se” (Manuel Gusmão). E se a beleza aqui tem esta força, ela não se dirige a um mero anseio de prazer estético, mas arma-nos para entender o que separa uma sensibilidade humana fundamental de todo esse género de criações literárias que negam qualquer determinação de tempo e de lugar, e que tentando ser reflexos de uma visão epocal e planetária, na verdade, como aponta Berardinelli, correspondem a um género literário niilista e sintético, filosofante e descontínuo, para o qual a totalidade do mundo parece ser demasiado pequena, demasiado estreita e limitada. “O Universal moderno já não é fundado na unidade perceptível da natureza cósmica. É o universal das mercadorias e das trocas, da produtividade ininterrupta e da unificação dos mercados, da destruição de qualquer localismo variegado e de estreita província.”

Ora, voltando ao texto antes citado de O Aprendiz de Feiticeiro, é importante lembrar como Carlos de Oliveira sintetizou a crise primordial do mundo moderno, dizendo que o impasse que hoje vivemos se liga a um cenário em que vemos “almas contra-revolucionárias com as armas das revoluções industriais nas mãos”, e que, sendo a “arte, espelho social, apesar de tudo límpido, reflecte por força as consequências dessa crise”. E hoje já ninguém duvida que estamos imersos nesse outro apocalipse, cujos efeitos se fazem sentir por dentro, o qual sendo menos espectacular não deixa de ser absolutamente devastador. Este é o da tecnocracia, diz-nos o poeta, o da “habituação passiva ao mecanismo, a uma atmosfera de metal diluído”. Fala ainda da idolatria, da sufocante obsessão dos objectos, fomentada por um aparelho publicitário formidável. “É neste ponto que julgo ter a arte um papel de medicina humanista, de contraveneno insubstituível. Sartre diz algures que ‘o rigor científico reclama em cada um de nós outro rigor mais difícil, que o equilibra: o rigor poético’, sublinhando que se trata de duas formas culturais ‘complementares’.

E é por isto que Carlos de Oliveira talvez venha a ser o mais urgente dos poetas da nossa contemporaneidade, porque a sua obra soube exprimir como mais nenhuma outra o desafio que hoje se impõe à arte e ao engenho humanos, isto se ainda for intenção nossa resistir à era da indecência para a qual fomos atirados pelas condições de exploração impostas pelo regime em que vivemos, com o enriquecimento hoje a fazer-se em detrimento da humanidade futura. “E se a poesia é como queria Maiakovski uma ‘encomenda social’”, lembra Carlos de Oliveira, “o que a sociedade pede aos poetas de hoje, mesmo que o peça nebulosamente, não anda longe disto: evitar que a tempestade das coisas desencadeadas nos corrompa ou destrua.”