Nem mortos estes milionários deixam as fortunas aos filhos

São cada vez mais os milionários que optam por deixar as suas fortunas a instituições de caridade, ao inves de proporcionarem aos filhos uma vida de luxos e de facilidades. Qual a filosofia por trás dessa decisão?

Conta-se que certo dia da década de 1930 o milionário John D. Rockefeller entrou no luxuoso hotel Waldorf Astoria, em Nova Iorque, dirigiu-se à recepção e pediu um quarto. O empregado que o atendeu ficou intrigado. «Um quarto simples?», perguntou incrédulo.

Afinal, a fortuna de Rockefeller era a maior do mundo, correspondendo a cerca de 2% de toda a riqueza da América. «Sim, simples», confirmou o milionário. «Mas, Sr. Rockefeller», arriscou o empregado, «o seu filho quando vem cá fica sempre na suíte presidencial…». Sem precisar de pensar muito, o magnata respondeu: «Pois… Mas sabe, é que eu não tenho um pai rico!».

Outrora, nascer num berço de ouro significava herdar tudo aquilo que os pais construíram – e às vezes até gastar mais do que os progenitores. Os filhos nasciam destinados a continuar o legado familiar e, em muitas situações, a transformarem-se exatamente naquilo que os pais haviam sido.

Mas o tempo passa e as mentalidades mudam. As preocupações são hoje outras. E, ao contrário daquilo que se possa imaginar, ser filho de um milionário não é necessariamente ‘pera doce’. Os homens mais ricos e conhecidos do planeta começam a repensar o futuro da sua família e a forma como querem ajudar a construir a personalidade dos seus descendentes.

Em vez da tradicional herança, muitos optam hoje por deixar aos seus filhos e netos um legado que não não é sinónimo de uma vida de super luxo e de facilidades. Impõem-se, agora, as causas sociais e ambientais, o poder para mudar alguma coisa a nível global e não apenas dentro das suas quatro paredes. Por isso, são cada vez mais aqueles que decidem deixar a maior parte das suas fortunas a instituições de filantropia… Em vez de favorecerem apenas um punhado de herdeiros, tentam alargar os benefícios a um círculo mais alargado. Fiquemos a conhecer quem são.

Daniel Craig

Atualmente com 53 anos, Daniel Craig construiu uma carreira brilhante que lhe valeu uma conta bancária que permitiria garantir o desafogo financeiro da família por muitos e longos anos. Contudo, o James Bond já deixou claro bastantes vezes que não deixará a sua fortuna, avaliada em 160 milhões de dólares (cerca de 135 milhões de euros) aos seus filhos quando morrer.

Considera essa ideia de herança «desagradável». No ano passado, numa entrevista ao Independent, Craig afirmou que a sua filosofia diz-lhe para se livrar da fortuna ou doá-la antes de morrer: «Não quero deixar uma grande quantidade de dinheiro para a próxima geração», assegurou o ator.

Na mesma entrevista, Craig explicou que pretende seguir o exemplo do empresário americano, Andrew Carnegie, que doou o equivalente a centenas de milhares de milhões de dólares a instituições de caridade antes da sua morte em 1919: «Não existe um velho ditado que diz que, se morrermos ricos, falhámos enquanto pessoas?», questionou. 

O ator tem um filho de dois anos com Rachel Weisz e uma filha de 29 anos com sua ex-mulher, Fiona Lourdon.

Warren Buffett 

A visão de Daniel Craig é partilhada por muitos outros milionários. O caso de Warren Buffett, o sexto homem mais rico do mundo, já fez saber que a sua fortuna, avaliada em 100 mil milhões de dólares, não ficará para os seus três filhos. Ao invés disso, o empresário optou por doar as suas ações da Berkshire Hathaway (BERK34), que representam 99% da sua riqueza. 

«Deixa para os teus filhos o suficiente para que estes façam algo, não o suficiente para que eles não precisem de fazer nada», defende.

Há poucos dias, o megainvestidor distribuiu 4,1 mil milhões de dólares em ações por cinco fundações e, com essas doações, já está a metade do processo de doar toda a sua fortuna. Buffet justificou a opção com a sua crença de longa data de que o seu património líquido seria «mais bem gasto em causas filantrópicas do que nas próprias carteiras de investimento dos meus filhos».

Juntamente com Bill Gates, outro dos nomes inevitáveis nesta lista, Buffett criou o The Giving Pledge, com o objetivo de encorajar outras pessoas ricas a deixarem as suas fortunas a organizações. «A ação mais fácil do mundo é doar dinheiro que nunca será de grande utilidade para si ou para a sua família», escreveu na carta aos acionistas.

Numa entrevista à revista Fortune, em 1986, o empresário já havia explicado o que motivava essa decisão, defendendo que não via sentido em deixar uma quantia impressionante de dinheiro aos seus três filhos- Howard Graham Buffett, Peter Buffett e Susan Alice Buffett – depois do falecimento da sua mulher. Nessa altura, Warren revelou acreditar que «dar aos filhos um suprimento vitalício de dinheiro apenas porque saíram do útero certo seria prejudicial para eles». 

Acreditando que os seus filhos ficarão bem sem uma grande herança, afirmou: «Os meus filhos vão conquistar o seu próprio lugar neste mundo e sabem que podem contar comigo para tudo aquilo que planearem fazer». E manifestou o seu desejo de vê-los fazer «esforços filantrópicos que envolvam tempo e dinheiro».

De acordo com o The Washington Post, cada um dos três já possui uma fundação de dois mil milhões de dólares financiada pelo pai e, embora o valor não esteja nem perto da fortuna total de Buffet, os três irmãos já se encontram entre as pessoas mais ricas do mundo.

Bill Gates 

O fundador da Microsoft também planeia doar a maior parte da sua fortuna antes de morrer, deixando apenas 10 milhões de dólares, o equivalente a quase 9 milhões de euros, a cada um dos seus três filhos. Segundo o bilionário, «as crianças deverão trabalhar e compreender a importância do trabalho».

O que para muitos seria um jackpot – para Jennifer, Rory e Phoebe Gates são quase ‘trocos’. Quanto ao resto da fortuna do fundador da Microsoft, avaliada em 87 mil milhões de euros, irá para obras de caridade nas quais está envolvido e à própria instituição criada por ele e pela sua ex-mulher, Melinda – a Fundação Bill e Melinda Gates. Em vez de milhares de milhões de euros, os três filhos ficarão com uma pequena fração desses valores.

Em compensação, terão acesso a uma educação de excelência que lhes permitirá ter ferramentas para iniciarem as suas próprias carreiras: «Os nossos filhos irão receber uma educação ótima e irão receber algum dinheiro, portanto para além de nunca ficarem mal, terão ferramentas para iniciar as suas próprias carreiras», disse Gates, de 60 anos, num programa da televisão norte-americana. Bill e Melinda preferem que os filhos construam o seu próprio caminho e acreditam que deixar-lhes uma fortuna daquele nível «não é um favor que se lhes faz».

Surpreendentemente, os filhos não só aceitaram bem a decisão dos pais, como se sentem orgulhosos deles.
Jennifer, de 25 anos, estudou na Universidade de Stanford, na Califórnia, instituição que recebeu uma avultada doação do pai para construir um edifício para o estudo de ciências informáticas. Além disso tem-se destacado no desporto equestre.

A excentricidade de Nubar

Mas já antes de Buffet e Gates um outro milionário decidira não deixar grande parte da sua fortuna aos filhos. Falamos de Calouste Gulbenkian. O magnate do petróleo, grande colecionador e mecenas, escolheu Portugal para fugir à guerra que grassava na Europa e posteriormente decidiu instalar aqui a sua coleção de arte. O testamento, datado de 18 de Junho de 1953, criou a fundação com o seu nome para apoio às artes, que ficou herdeira do grosso da sua fortuna.

A decisão de ‘retirar’ a herança aos filhos tinha um motivo: a excentricidade de Nubar Gulbenkian. Rosto regular na cena playboy internacional, Nubar andava ora em Rolls Royces feitos por encomenda, ora em táxis Austin FX4 adaptados ao seu gosto excêntrico. Havia quem dissesse: «Nubar é tão duro que cansa todos os dias três corretores da bolsa, três cavalos e três mulheres».

As relações com o pai eram tensas: chegou a processá-lo em 10 milhões de dólares, quando este se recusou a dar-lhe 4,50 dólares para almoçar. Talvez o incidente tenha contribuído para que Gulbenkian decidisse deixar 420 milhões de dólares à fundação e apenas 2,5 milhões ao filho.

Os novos filantropos 

Atualmente, o interesse crescente pela filantropia entre os mais homens mais ricos do Reino Unido e dos Estados Unidos indica que a próxima geração de multimilionários talvez «não faça justiça ao título».

Segundo uma pesquisa divulgada recentemente, muitos milionários – e até bilionários – pretendem deixar menos dinheiro de herança. Richard Harris, fundador do serviço de testamento online, descobriu que 62% das pessoas com ativos estimados em mais de 800 mil dólares, o equivalente a quase 680 mil euros, para investir, planeiam gastar o seu dinheiro com obras de caridade ou simplesmente doá-lo a organizações.

De acordo com o próprio Richard Harris, «filantropos ricos, principalmente empreendedores multimilionários, são firmes em dizer que querem que os seus filhos tenham um incentivo para trabalhar no duro como eles fizeram nas suas vidas e uma forma de fazer isso é limitar as suas heranças».

«Os pais não querem tirar a ambição dos filhos», sublinhou, acrescentando que estes estão a oferecer a maior parte do dinheiro a causas sociais que defendem e nas quais acreditam. «Estão a dar mais importância ao desejo de deixarem um legado que beneficie a sociedade em geral». 

As mudanças estão à vista. «Há uns dez anos, 75% da lista dos mais ricos do jornal Sunday Times eram compostos por gente que havia herdado dinheiro de família. Hoje, essa proporção é totalmente inversa», conclui Harris.