De “herói” a “prudente”. Foi assim o último adeus a Sampaio

Filhos de Sampaio recordam “homem bom” que sabia que na vida e na política “nada se faz sozinho”. António Costa falou em exemplo de rigor ético, honradez e vigilante defensor da democracia, enquanto Ferro Rodrigues evocou amigo cujo exemplo “vai perdurar e inspirar muitas gerações”.

“Nunca quis ser herói, mas foi, em tantos e tantos dos seus lances de vida, heroico. Daquele heroísmo discreto, mais lírico do que épico, mais doce do que impulsivo. Firme, mas doce. E também por isso o recordamos com doçura. E lhe agradecemos o amor que nunca negou a Portugal, à sua maneira de amar Portugal”. Foi desta forma que Marcelo Rebelo de Sousa se despediu na sessão evocativa de homenagem a Jorge Sampaio, que morreu na sexta-feira, aos 81 anos.

“Amou Portugal pela fragilidade e tantas vezes na fragilidade. Mais do que isso, fez dessa fragilidade, sua, nossa, de todos nós”, afirmou. Um discurso que foi acompanhado pelas mais altas figuras do Estado, família, amigos próximos, deputados e delegações estrangeiras que ocuparam os lugares disponíveis no Mosteiro dos Jerónimos. No interior estiveram cerca de 300 pessoas, número que corresponde a 75% do total da capacidade, seguindo as regras da Direção-Geral da Saúde, devido ao contexto de pandemia, mas os populares que se quiseram despedir do antigo Presidente da República tiveram acesso a um ecrã gigante fora do mosteiro para poderem acompanhar a homenagem.

E os elogios não ficaram por aqui. “Sampaio amou Portugal no calor imparável dos seus sonhos de jovem: liberdade, igualdade, Democracia, socialismo, fraternidade. Amou Portugal na fraternidade para com os perseguidos e na sua defesa na barra de uma Justiça pré ordenada”, disse ainda. “Amou Portugal na militância solidária com os seus próximos, mas também com os mais distantes. Amou Portugal nos sem-teto, a quem ajudou a dar teto; nos sem horizonte, a quem ajudou a dar razões de esperança”. 

Filhos falam em “homem bom”

Coube à filha mais velha o primeiro discurso na cerimónia oficial no claustro do Mosteiro dos Jerónimos, que, juntamente com o irmão André, recordaram o pai como “um homem bom”, que sabia que na vida e na política “nada se pode fazer sozinho”.

Vera quis recordar o pai com a “autenticidade e proximidade” com que falava com os filhos. “O nosso pai era um homem bom, atento e disponível, para quem as pessoas contavam cima de tudo, não as pessoas em geral, mas cada pessoa com nome e rosto”, lembrando que “não gostava de arrogância” e “cultivava a amizade e a camaradagem porque sabia que, na vida e na política, nada se pode fazer sozinho”. E fez questão de chamar a atenção para a ideia de que o pessimismo, com que alguns o identificavam, revelava prudência.

André Sampaio, visivelmente mais emocionado, recordou o pai como um homem “popular sem ser populista, sempre próximo sem nunca banalizar a proximidade, que foi estadista e simultaneamente cidadão comum, que foi amado sem gostar de ser venerado”.

“Foi lutador e pacificador, sabia ouvir e sabia decidir, valorizava a convergência, mas também os momentos de divergência, foi um homem justo, corajoso, mas sem medo de chorar, foi um homem bom, um pai extraordinário”, referiu.

Exemplo de rigor ético a inspiração de gerações

m exemplo de rigor ético, honradez e vigilante defensor da democracia, nunca cedendo à demagogia e ao populismo. Foi desta forma que António Costa se referiu a Jorge Sampaio e à sua profunda ligação pessoal, profissional e política com o chefe de Estado de Portugal entre 1996 e 2006. 

“Fazia isso com a autenticidade que punha em tudo e com a seriedade que nunca cedia à demagogia ou ao populismo. Nestes tempos de tantas tentações antidemocráticas, este património é fundamental. Mostra-nos como se pode ser um atento e vigilante defensor da democracia, não pactuando nunca com aquilo que a desvirtua ou desvaloriza, e fazendo tudo para denunciar e corrigir o que nela está mal, mas usando sempre esse combate e a denúncia dessas fraquezas para aperfeiçoar e reforçar a democracia – e nunca contra ela, para a depreciar ou desacreditar”, defendeu o primeiro-ministro. 

Também o presidente da Assembleia da República recordou “o amigo” Jorge Sampaio, que “escolheu colocar as suas qualidades ao serviço de causas” e cujo exemplo “vai certamente perdurar e inspirar muitas gerações”.
Ferro Rodrigues destacou ainda o “ilustre português e o seu exemplo vai certamente perdurar e inspirar muitas gerações”, recordando-o como “uma pessoa de grande saber, cultura, inteligência e generosidade”.

Música e poema

O início da cerimónia ficou marcado pela voz do antigo Presidente da República, quer num excerto do seu discurso na tomada de posse em março de 1996, quer, em seguida, numa intervenção na CNN sobre Timor-Leste, uma das causas a que dedicou parte da sua vida. Seguiram-se outro momentos marcantes dos seus mandatos no mais alto cargo da Nação – uma entrevista à CNN sobre Timor-Leste –, assim como mensagens de Mari Alkatiri e Ramos Horta. Também em vídeo, ouviu-se a música que marcou a causa timorense em Portugal – Ai Timor, de Luís Represas – entoada pelo coro da escola portuguesa de Díli.

A luz foi também protagonista, quer do discurso do Presidente da República, que se referiu ao poema momentos antes declamado pela atriz Maria do Céu Guerra: Uma pequenina luz, de Jorge de Sena.

Já sob batuta da maestrina Joana Carneiro ouviu-se Lacrimosa, de Mozart, Requiem ‘In Paradissum’, de Gabriel Fauré e o hino foi tocado pela Orquestra Sinfónica Portuguesa, assinalando o último adeus ao antigo Presidente da República. O cortejo fúnebre partiu dos Jerónimos em direção ao Cemitério do Alto de São João, em Lisboa, onde foi recebido sob aplausos de dezenas de pessoas. Ainda na Praça do Comércio, o desfile foi sobrevoado por cinco caças F-16 da Força Aérea Portuguesa. 

Na entrada do cemitério, aguardava uma Guarda de Honra constituída por 165 militares dos três ramos. Foi das mãos de Marcelo Rebelo de Sousa que Maria José Ritta recebeu a bandeira cuidadosamente dobrada, tendo depositado um beijo neste símbolo nacional.

A urna foi depois levada até o jazigo familiar pelo filho André e por elementos que tinham pertencido ao corpo de segurança pessoal de Jorge Sampaio. É neste momento que os populares que estavam do lado de fora do cemitério bateram novamente palmas e gritaram “Viva Sampaio”, entre algumas lágrimas.
As cerimónias foram vigiadas por centenas de agentes da PSP que fizeram a segurança a diversas figuras estrangeiras.