“Ditador é o menos, incomoda-me muito que chamem fascista ao meu pai”

Quando visitou o pai no Brasil achou-o amargurado e testemunhou como não gostava que se falasse de política. O filho do último primeiro-ministro da ditadura revela também que Marcello Caetano nunca disse não querer ser enterrado em Portugal. Mas a família prefere deixar as coisas como estão. ‘Lá tratam-no muito bem, mantêm flores na campa’.

“Ditador é o menos, incomoda-me muito que chamem fascista ao meu pai”

Por José António Saraiva e José Cabrita Saraiva

Na terceira e última conversa, Miguel Caetano explica-nos como o 25 de Abril mudou a sua vida. Numa fase em que já era pai de oito filhos, a falta de trabalho levou-o a equacionar mudar-se com a família para Espanha.

Licenciado em Direito, o seu primeiro emprego foi como estagiário no Banco Fonsecas, Santos & Viana. Depois passou para o Banco de Fomento, onde se especializou na área do planeamento regional. Acreditava que o desenvolvimento económico poderia transformar o país e foi fundador da SEDES, uma associação entendida por alguns como o embrião de um novo partido político, que o presidente do Conselho de início não hostilizou, mas com a qual acabou profundamente desiludido.

Miguel Caetano recebe-nos com a habitual cordialidade, mas sem formalismos, na sua casa do Linhó. Responde a todas as questões, mesmo as potencialmente incómodas, com uma franqueza desarmante e uma agilidade mental invejável. Falamos sobre a vida do seu pai no Brasil, a história atribulada da sua biblioteca particular e os gostos musicais do último primeiro-ministro da ditadura.

O legado de Salazar é muito evidente. Temos a ponte sobre o Tejo, os pavilhões da Exposição do Mundo Português, as escolas, os tribunais, os edifícios dos Correios… Está por toda a parte. O legado de Marcello Caetano não é tão óbvio. É certo que também está no poder por um período muito mais curto.

JAS: Salazar tem a ideia da construção de um Estado forte. Essa glorificação do Estado devia ser feita, entre outras coisas, através de grandes obras. Portanto, há um período em que o Estado Novo se afirma pela obra pública. E depois encontra um homem com uma capacidade de realização absolutamente impressionante, que é o Duarte Pacheco. A gente ainda hoje não percebe como foi possível, em tão pouco tempo, fazer tanta coisa. Quando olhamos hoje para a Lisboa moderna, é praticamente tudo desse período: o aeroporto, as gares marítimas, o Hospital de Santa Maria, o Júlio de Matos, a Casa da Moeda, o Instituto Nacional de Estatística, o Técnico, o Parque Eduardo VII, a Fonte Luminosa… Eu sei lá! É esmagador.

MC: Duarte Pacheco era de facto espantoso e insubstituível.

JAS: Diz-se que Salazar, por vezes, achava que ele andava depressa demais. E as suas obras não foram só em Lisboa, foram pelo país fora. Há os bairros económicos, que também são, em boa parte, iniciativa do Duarte Pacheco, embora com um modelo mais salazarista – é a ideia da criação de uma pequena aldeia dentro da cidade. O período de Marcello Caetano é completamente diferente. As grandes obras estão feitas e ele vai pôr mais o enfoque nos dois grandes problemas que o país tinha: a democratização e a guerra de África. E temos ainda as medidas sociais…

MC: É verdade, e volto a lembrar que lançou as bases de novas políticas de educação, saúde e assistência social, num quadro de grande crescimento económico, muitas das quais tiveram imediato impacto social. No 25 de Abril, o meu pai vai para o exílio. Eu costumava passar uma parte das férias nas Penhas da Saúde, porque a família da minha mulher tinha lá uma casa. Um dia, nesse verão de 74, vou com a minha mulher à praça da Covilhã e as vendedoras que estavam lá a gerir o seu lugar, começam todas a falar. A certa altura, ouço dizerem que sou o filho do Marcelo Caetano e vejo ali um movimento…

De ameaça?

MC: Ao contrário: preparavam-se para fazer uma manifestação de saudosismo ao meu pai, porque era ele que tinha arranjado a pensão para os rurais. Fui-me embora discretamente. Muitas vezes vou passar o fim-de-semana ao pé do Couço [Coruche] e aconteceu-me conhecer por lá trabalhadores rurais da minha geração que me disseram: ‘Se a gente tem reforma, deve-a ao seu pai’.

JAS: Em termos de obra construída, há os bairros sociais, mas num novo modelo. Já não a pequena casinha, mas os grandes blocos de construção pré-fabricada. Marcello Caetano sente que há uma nova sociedade. Um novo tempo.

MC: Um novo mundo.

JAS: E tem de dar mais resposta a isso do que propriamente fazer obra pública, construir edifícios públicos, símbolos do Estado. Depois tem esse enorme problema para resolver, que é a Guerra Colonial… Nas memórias, o seu pai diz que nunca lhe faltou o dinheiro. Mas sustentar uma guerra em três frentes, a milhares de quilómetros de distância, não é brincadeira nenhuma.

MC: Desenvolveram-se várias atividades económicas por causa da guerra, mas é evidente que não era uma situação ideal.

JAS: Na História Moderna, só a Inglaterra teve uma situação parecida com a nossa – uma guerra com três frentes de combate –, embora as distâncias somadas entre a metrópole e os cenários de guerra fossem, no caso inglês, bastante menores. Ainda hoje custa a perceber como foi possível. A propósito do legado, é preciso dizer que, ao contrário de Salazar, o seu pai nunca teve o poder todo.

Falaram de um ‘novo tempo’, de um ‘novo mundo’. A certa altura, o seu pai refere-se a «uma campanha em curso sistemática e por todos os meios contra a família, sociedade e autoridade». O que pensava ele ao ver aqueles jovens cabeludos, mal vestidos, hippies, com ideias mais levianas…? Sendo um homem conservador, como lidava com isso?

MC: Lidava mal. Tinha até dificuldade em aceitar as músicas modernas. Era uma pessoa com grande ouvido, gostava de música clássica, mas aceitava mal os Beatles e outras bandas do género. Também aceitava com grande dificuldade, ou não aceitava mesmo, que fosse fácil uma pessoa divorciar-se e casar novamente. Ele admitia que se criasse outro sistema jurídico, mas achava que as pessoas em consciência tinham de pensar naquilo que faziam. A família tinha de ter uma estrutura e uma organização. Não podia ser: ‘Eu caso, dois anos depois percebo que me enganei e divorcio-me’. Estou a exagerar, para tornar as coisas claras. Isso era muito difícil para ele. Começa esse período em que há divórcios, cabeludos, tudo isso, e ele ia aceitando, mas… Quando foi reitor, dialogava com a rapaziada, mas sempre com a ideia de que estava a transmitir valores.. Se dava a bênção a essas mudanças todas? Não dava.

E o senhor, ouvia os Beatles ou não?

MC: Os Beatles não são bem ainda do meu tempo, mas depois ouvi.

Às vezes há aqueles conflitos que resultam de os filhos gostarem de músicas que não agradam nada aos pais.

MC: Não, isso não havia. A primeira vez que comprei um álbum dos Beatles foi em 1966, era mais do que adulto, porque os Beatles, na primeira fase, não entram em Portugal de estrondo. Eu gostava muito era do Zeca Afonso e comprava as coisas dele. Um dia estávamos a ver o Festival da Canção e o meu pai comentou: ‘Não gosto nada disso’. E eu disse-lhe: ‘Há coisas portuguesas muito melhores que isto’. Tinha estado a dormir lá em casa e tinha comigo um leitor de cassetes com gravações do Zeca Afonso, e escolhi uma das suas baladas. E ele, que não sabia quem era o Zeca Afonso, disse: ‘Deste eu gosto. Por que é que não levam antes esta música para o Festival da Canção?’

E em termos de arquitetura? Esta casa é bastante tradicional. O seu pai era também conservador nesse capítulo? Disse-me que ele viajava bastante. Por exemplo, um arranha-céus era o tipo de coisa que ele apreciasse?

MC: Não era uma escolha que faria, mas também não era contra. Temos o Ritz, por exemplo. A história verdadeira é que não havia um hotel internacional e o Salazar chamou os capitalistas – o Ricardo Espírito Santo e o grupo do costume – para fazerem um, porque já era altura de algo do género existir em Lisboa. Dizem que Salazar se recusou a ir lá, que só viu à distância, e disse: ‘Que coisa horrível’.

JAS: Isso é completamente falso. Ele não foi à inauguração, foi na véspera ou na antevéspera, entrou pelas traseiras, curiosamente subiu num monta-cargas e não num elevador, depois deu a volta por tudo e, no fim, perguntaram-lhe: ‘Então, o que é que achou?’. E ele diz: ‘Há umas obras de arte modernas horríveis. Do resto, gostei’.

MC: O meu pai é da geração a seguir, de modo que o Ritz foi uma obra que ele acompanhou e de que gostou. Se falarmos dos arranha-céus, já entramos num campo muito específico, porque ele achou sempre que a cultura europeia não era comparável com a americana, que era menos sofisticada. Mas se a arquitetura fosse bonita, não era contra, porque ele tinha gosto e não era limitado. Aliás… isto é quase ridículo, mas houve quem dissesse que o jazz foi proibido pelo Estado Novo. É uma ‘laracha’, como muitas que se contam por aí. O Hot Clube foi criado era eu miúdo, e um primo meu e o meu irmão mais velho, que não foram fundadores, faziam parte do grupo dos irmãos Sangarou e outros. E o meu pai interessadíssimo. Quando veio cá o Sidney Bechet [famoso clarinetista e saxofonista norte-americano] tocar, no Monumental, a minha mãe já não estaria muito bem e também não gostava muito de música. O meu pai foi convidado e perguntou-me: ‘Vens comigo?’. E eu fui. E, depois, veio o Louis Armstrong e fomos os dois também. Portanto, dizer que era uma coisa proibida… Era uma música nova, mas o meu pai ouvia-a interessadíssimo. Tal como ouvia música clássica. E tinha muito ouvido, coisa que eu não tenho.

Sendo o seu pai um homem tão viajado, havia algum país do qual gostasse especialmente? Há aquelas pessoas que vão à Suíça e dizem ‘Lá é tudo arranjadinho’ ou vão a Itália e vêm encantadas…

MC: Itália, talvez. Ele não era muito de viajar em turismo. No princípio dos anos sessenta foi convidado para fazer parte do corpo docente da Faculté Internationale pour l`Enseignement du Droit Comparé, com sede em Estrasburgo, e todos os anos ia lá dar o curso. Também ia muito para a América Latina, mas sempre por razões profissionais. Talvez tivesse mais interesse pelo Brasil do que teria por países europeus, embora tivesse imenso interesse pela cultura francesa. A literatura interessava-lhe imenso.

JAS: No início, o seu pai teve aquelas viagens às parcelas do Império. Por outro lado, tinha uma ligação à Europa. A verdade é que Portugal foi membro fundador da EFTA [European Free Trade Association, em 1960, que esteve na origem da CEE e da UE].

MC: Com ele. Como Ministro da Presidência, nos anos cinquenta, tomou parte na reunião dos chefes dos Governos da OTAN , realizada em Paris em 1957 e chefiou as delegações portuguesa às reuniões da OECE e da EFTA.

JAS: E depois tem o tratado de associação com o Mercado Comum. Como é que ele via esse triângulo Colónias-Europa-Portugal?

MC: Ele não considerava que a sobrevivência económica de Portugal estivesse ligada à existência das colónias. Mas considerava que Portugal podia ser muito mais importante na Europa se mantivesse relações especiais com territórios como Angola, Moçambique, etc. Queria a abertura à Europa, mantendo a articulação com o ‘império’. E pensava que era possível autonomizar as colónias ficando estas com uma ligação a Portugal. Era um valor acrescentado.

Era uma maneira de manter a relevância de Portugal na Europa?

MC: Este rectângulozinho não tinha importância nenhuma. O nosso trunfo na Europa e no mundo era esse: a relação especial com o Brasil e a presença noutros continentes, designadamente em África.

Há alguém que vê a biblioteca do seu pai e nota que os livros estão anotados, foram lidos…

JAS: É o Alçada Batista, nas Conversas com Marcello Caetano.

MC: Um livro muito interessante, é uma pena terem-no desvalorizado. 

O seu pai lia sobretudo livros técnicos, de Direito, ou também se interessava por romances, História…?

MC: Interessava-se por tudo. A biblioteca tem de tudo. Literatura portuguesa – Camilo, Eça, etc. –, literatura estrangeira e coisas curiosas e inesperadas para mim, como o Sartre, o Freud… Ele lia, interessava-se e anotava. A minha irmã foi discípula do psiquiatra e psicanalista João dos Santos, que era um homem da oposição… E, quando está a fazer o curso de Psicologia, o meu pai interessa-se imenso por aquilo – e ela fica espantada com tudo o que ele tinha lido. Mas a biblioteca tinha uma parte jurídica enorme, uma parte histórica enorme. A História, para ele, era mais importante que o Direito.

A biblioteca formava uma divisão à parte?

MC: Quando eu nasci, vivíamos num andar e era no escritório. Mas nos corredores havia livros por todo o lado. Quando ele foi viver para Alvalade, a cave era a biblioteca.

E essa biblioteca hoje está onde?

MC: Está no Brasil. Foi uma história muito complicada. Quer que conte?

Estamos aqui para isso.

MC: O meu pai foi para o Brasil e das poucas coisas que pediu foi se nós, os filhos, lhe conseguíamos expedir a biblioteca. Segundo o contrato que fez com a Universidade Gama Filho, onde era professor, haveria uma sala própria para a biblioteca, que seria doada. Ao mesmo tempo, a Gama Filho comprometia-se a manter o ordenado e o andar onde o meu pai vivia, mesmo que ficasse sem condições para continuar a ensinar. O meu irmão Zé Maria, que era amigo do major Vítor Alves, estava a tratar disso, e ficou tudo pronto para sair. Entretanto dá-se o 11 de março [de 1975, golpe spinolista falhado] e das primeiras medidas tomadas pelo novo Governo de vasco Gonçalves foi proibir a saída da biblioteca do meu pai, que já estava despachada. Ficou ali tudo já em caixotes, na casa onde o meu pai morava, em Alvalade. Parecia que não havia nada a fazer, até que chegou o 25 de novembro. O meu irmão tinha ido trabalhar para o Brasil – e há um período em que só eu e a minha irmã Ana Maria ficamos em Portugal. Começámos a tratar disso, mas, mesmo depois de já ter tomado posse o 1.º Governo constitucional, as coisas iam ficando encravadas constantemente sem razão nenhuma. Até que eu vou falar com o meu tio Henrique [de Barros], que era ministro de Estado, sendo primeiro-ministro o dr. Mário Soares. O despacho era feito pelo Ministério das Finanças, mas tinha de ser assinado pelo primeiro-ministro. O meu tio leva-o ao Mário Soares, que pergunta: ‘O que é isso?’. ‘É um despacho para o Marcello Caetano, que queria a biblioteca dele’. E o Mário Soares: ‘Dele?’. E o meu tio: ‘A que ele fez. Do primeiro ao último livro’. E o Mário Soares: ‘Então, se é dele e se foi ele que a fez, tem todo o direito a ela. Dê cá o papel, que eu assino já’. Devo isso ao Mário Soares, digo-o muitas vezes. Escrevi ao meu pai e contei-lhe a história e ele, na resposta, pediu-me para agradecer ao tio Henrique, com quem mantive sempre as melhores relações familiares. A biblioteca lá foi para o Brasil. E foi um sucesso.

Eram quantos livros?

MC: 20 mil, acho eu. Ficou impecável, organizada por ele , com a ajuda do motorista da Universidade. Mas passam-se anos, o meu pai morre, a biblioteca fica na Gama Filho. Entretanto há uma cedência da exploração da universidade, vai para lá alguém pouco sério… Dá-se a falência da Gama Filho e o juiz arrolou todos os bens que existentes para responder pelas dívidas criadas. Uma biblioteca daquele valor ficou metida numa cave fechada… Entrámos em contacto com várias pessoas, e por fim conseguimos que o Real Gabinete Português de Leitura se tivesse mostrado disponível para receber a biblioteca. Contámos sempre com a grande ajuda da Manuela Goucha Soares que, como biógrafa e jornalista, tinha acompanhado todas estas peripécias. Tentou-se através de um advogado, mas aquilo não andava. Eis que sou informado que o Marcelo Rebelo de Sousa vai fazer uma visita ao Brasil. E pedi-lhe: ‘Vê lá se consegues resolver isso. Conheceste a biblioteca, é um valor de interesse nacional, e aquilo está metido numa cave’. O Marcelo chega lá, faz várias reuniões com o cônsul e arranja um compromisso em que o Tribunal constitui o Real Gabinete Português de Leitura como fiel depositário da biblioteca . Sei que está lá… Foi inaugurada. Conseguiu-se isso e deve-se ao Marcelo Rebelo de Sousa ter desbloqueado o assunto.

O primeiro chefe do Governo depois do 25 de Abril foi Adelino da Palma Carlos. Que depois vai ao Brasil visitar o seu pai. Como foi isso?

MC: Os dois eram amigos. Foram colegas e mantiveram sempre uma relação de amizade que continuou entre nós e os filhos dele, o Guilherme e o Antero. Quando se deu a revolução, o Palma Carlos era o presidente do Conselho de Direção da Faculdade de Direito, e a 26 ou 27 há um voto a apoiar o 25 de Abril, ao qual se junta um voto para que o professor Marcelo Caetano, «a seu devido tempo, possa regressar a esta faculdade que tanto lhe deve». Bom, isto deu um sarilho e as assembleias estudantis correram com os professores todos, foi tudo saneado. Incluindo o Palma Carlos. Logo a seguir, o Adelino é nomeado primeiro-ministro. E a primeira preocupação do meu pai, ainda na Madeira, foi dizer ao meu irmão Zé Maria para ir falar com ele a São Bento e levar-lhe tudo o que estava numa determinada gaveta. Eram documentos da Presidência do Conselho que deviam ser entregues ao chefe do Governo. E o meu irmão vai entregar isso tudo diretamente ao Adelino. A caminho do exílio, a grande preocupação do meu pai foi ‘há documentos que não são meus’.

Queria passar o testemunho. 

MC: E mostra a confiança que, no meio daquilo, ele tem no Adelino. Depois as coisas embrulharam-se, ele esteve pouco tempo como presidente do Conselho… Mas o ‘golpe Palma Carlos’ não foi golpe nenhum. Muita gente pensava que devia haver uma relação mais definida entre o MFA, o presidente do Conselho e o Presidente da República. Quiseram esclarecer melhor os poderes e foram afastados. Depois de sair de S. Bento, o Palma Carlos escreveu ao meu pai a dizer: ‘Vou aí’. E o meu pai responde: ‘Adelino, estou à tua espera’. Juntam-se, o meu pai acompanha-o onde tem de o acompanhar. Foram amigos até ao final. Aliás, as amizades improváveis, a que já aludi, mantiveram-se ao longo de toda a sua vida – Fernando Abranches Ferrão, Domingos Monteiro, Mário Neves, até mesmo com Pedro Ramos de Almeida, amigo do meu irmão José Maria. Coube-me organizar e depositar na Torre do Tombo o Arquivo Particular Marcello Caetano e fiquei espantado com a correspondência com amigos que fui encontrando.

Quando o seu pai foi para o Brasil, os filhos acompanharam-no?

MC: Nenhum de nós foi com o meu pai, que foi sozinho para o Brasil. Quem organizou a ida e o recebeu foram o Francisco Correia de Campos e o Alexandre Carvalho Neto, seus secretários quando ele era presidente do Conselho, a quem ficámos a dever todo o seu empenho e amizade. O meu pai foi sozinho e nós combinámos ir um de cada vez acompanhar a instalação dele. Ele desembarcou em S. Paulo, foi para o Rio, depois esteve num mosteiro dos beneditinos durante cerca de um mês, entretanto recebeu o convite da Gama Filho, que previa as condições que ele pediu. Primeiro foi a minha irmã, e depois fui lá nesse ano passar o aniversário dele, a 17 de agosto, e fiquei uma semana. Um ano depois, ou assim, uma das irmãs dele mais velhas, que era solteira, foi viver com ele, e ficou lá até ele morrer.

Imagino que nesse aniversário que passou lá o ambiente não fosse muito festivo…

MC: O meu pai tinha-se organizado. Para ele era fundamental todos os dias ter trabalho, escrever, e tinha amigos da sua vida universitária. Quem o recebeu foi o Pedro Calmon, que tinha sido reitor da Universidade do Rio e era um personagem de grande importância. Quando estive lá, foi uma das pessoas que me apresentou, e com quem eu almocei. 

JAS: O meu tio José Hermano Saraiva falava muito desse Pedro Calmon. Quando era adolescente, foi ouvir uma conferência dele na Academia das Ciências e ficou tão entusiasmado que disse: ‘Eu gostava de ser assim um dia, de ter este dom da palavra, esta capacidade de comunicar’. E acertou…

MC: O Pedro Calmon um homem muito interessante. Eu já o conheci com alguma idade, ele era mais velho do que o meu pai. Mas estava ótimo, ainda veio cá a Portugal passado algum tempo, e foi recebido por todos nós – menos o meu irmão mais velho, que foi para Paris. 

De livre vontade?

MC: Não. Ameaçado. Era arquiteto e tinha criado uma empresa que não só tinha ateliê de arquitetura como um núcleo ligado ao imobiliário. A seguir ao 28 de setembro [manifestação da ‘maioria silenciosa’] resolveram que tinham de acusar alguém da família. O meu irmão tinha uma vida empresarial e acusaram-no de levar dinheiro para o estrangeiro. Um dia ele recebe um telefonema de um velhíssimo amigo dele, o Gomes Mota [José de Magalhães Gomes Mota, diretor das campanhas de Soares à presidência], a dizer: ‘João, foge, põe-te a andar daqui que eles puseram-te na lista’. Como era casado com uma francesa, foi para Paris, conseguiu arranjar trabalho num atelier de arquitetura e lá ficou uns quatro anos, ou coisa assim.

Depois do 25 de Abril também se sentiu discriminado? Há pessoas a quem, graças ao seu apelido, se abrem todas as portas. Depois dá-se uma mudança e caem em desgraça…

MC: Todos os meus amigos, tirando aqueles que tinham tido cargos políticos – como o João Salgueiro, que teve de fazer uma ‘travessia do deserto’ –, foram para os melhores lugares dos bancos, do Governo… Eles não tinham obrigação de me convidar mas, de facto, não me abriram a porta. Tinha um currículo que chegava para ir para esses lugares, mas não fui. Fiquei desempregado, não tinha dinheiro. Arranjei um emprego aqui e outro acolá. As poupanças que teria na bolsa desapareceram todas…

O que fazia antes?

MC: Nos anos setenta, era uma espécie de profissional liberal. Colaborava em trabalhos de planeamento regional. Fiz parte, por exemplo, da equipa que fez a revisão do Plano Diretor da Área Metropolitana de Lisboa. Estavam lá o Francisco Pereira de Moura, o Gonçalo Ribeiro Telles, o Filipe Mário Lopes e muitos outros de grande nível profissional. Foram três anos de trabalho que deitaram fora. Depois do 25 de Abril, a pouco e pouco, os outros trabalhos também foram desaparecendo. Não fiquei totalmente desocupado, porque o Filipe Lopes, foi nomeado vice-presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Lisboa e chamou-me. Era um part-time, mas já não era nada mau! No verão de 1975, já tinha só esse part-time.

Já tinha os oito filhos?

MC: Sim, o oitavo nasceu em 1972.

Deviam estar preocupados…

MC: Com certeza. Chegou uma altura em que disse à minha mulher: ‘Vamos para Espanha’ – porque havia uma quantidade de amigos que tinham ido para lá. Nessa altura aconteceu-me algo de inesquecível. Um casal nosso amigo, que eu tinha conhecido nos trabalhos preparatórios do III Plano de Fomento, a seguir ao 25 de Abril, depois de uma reflexão profunda, resolveu apoiar o PCP. Éramos muito amigos, víamo-nos várias vezes, e numa delas contei-lhes que estava a ver se conseguia emprego em Espanha. Uns dias depois, ele diz-me: ‘Estive a falar com a Margarida. Vocês fazem cá falta. Quanto é que precisam para se aguentarem? Garantimos isso durante três meses’. Por acaso, não foi preciso. Em setembro de 1975 consegui um emprego a full-time… e já não fui para Espanha. Também não me queriam lá. Diziam que o meu nome não convinha naquela altura. Mas nunca mais me esqueci do gesto daqueles meus amigos.

E o resto da família sofreu outras ‘represálias’?

O meu irmão Zé Maria foi saneado. O caso dele é curioso, porque era um tipo inteligente e muito culto, embora fosse uma pessoa especial. Era presidente do Instituto Nacional do Têxtil. Em fins de 1974, vão ter com ele e dizem-lhe: ‘Não temos nada contra si. Sempre se deu bem connosco, mas há aqui três pessoas que o senhor tem de sanear’. E o meu irmão responde: ‘Não vos reconheço competência para sanear ninguém’. E eles: ‘Tome cuidado, se não é saneado’. E foi para a rua. O Governo da altura, de gente moderada, assinou todos os despachos de saneamento.

E depois ele refez a carreira?

MC: Não refez nada. Foi para o Brasil. Esteve lá um ano a trabalhar, mas não se entendeu. Voltou para Portugal, já isto estava mais tranquilo. Quando ele disse que vinha do Brasil, eu contei ao Zé Rabaça, um homem do têxtil que conheci na Serra da Estrela, ainda no tempo do meu pai, e com quem, mais tarde, criei uma amizade fraternal inesquecível Estivera sempre ligado à oposição à ditadura e foi o militante número 100 do Partido Socialista. Pois bem, ele tinha conhecido profissionalmente o meu irmão e, sem me dizer nada, faz uma coisa extraordinária: contacta empresários da província e diz ao meu irmão para organizar em Lisboa um escritório de representação das empresas têxteis interessadas. Graças a isso, o meu irmão viveu os últimos anos profissionais como representante dessas empresas em Lisboa.

JAS: O seu pai, do ponto de vista familiar, nunca reorganizou a vida? Depois da morte de sua mãe nunca teve outra mulher?

MC: Não, não. Correspondeu-se, como se sabe, com uma professora da Faculdade de Letras, mais nova. As cartas que trocaram ultrapassam muito a sua relação académica. Julgo que o meu pai terá sentido necessidade de uma correspondência romântica. A senhora era casada e tinha família.

JAS: Há quem ache que, numa relação a dois, há sempre um que ama e outro que se deixa amar. Um toma a iniciativa e o outro deixa-se ir – ou não. Como era a relação entre o seu pai e a sua mãe?

MC: Talvez a minha irmã pudesse responder melhor a isso porque estudou Psicologia. O que nos transmitiam era uma grande relação, mas com alguma formalidade. Eram dependentes um do outro, sem dúvida nenhuma. O meu pai, quando tomava as decisões, tinha de saber se a minha mãe o apoiava. Mas demonstrar afeto ou amor, beijinhos, à nossa frente, nada. Era a minha mãe a dependente? Era o meu pai? O meu pai, no Brasil, na véspera de morrer, teve um ataque cardíaco, desmaiou, o médico viu-o e disse: ‘Isto está mal’. Foi para casa, teve a noção de que ia morrer e disse (já não sei se para a minha tia, se para o médico): ‘Eu já não devo viver mais do que dois dias, se calhar vou passar os 50 anos de casados com a minha mulher’. E assim foi. Explique-me lá isto…
Quando estava no Brasil, o seu pai já sabia que não ia regressar a Portugal, ou ainda acalentava alguma esperança?
MC: Não queria! Nem sequer ir a Espanha para ver a família. Não é verdade que ele tenha dito que não queria ser enterrado em Portugal. Tenho uma carta dele para os filhos todos, mas da qual sou o fiel depositário, em que diz: ‘Depois de eu morrer, os meus filhos farão aquilo que acharem melhor. Não vou deixar nenhuma vontade expressa sobre isso’. Ficou lá porque nós quisemos. E, se quisermos, podemos decidir trazê-lo para cá. Mas isso seria suscitar uma série de movimentos, não vale a pena. De certeza que ia haver manifestações. E agora ainda seria pior… Lá tratam-no muito bem, mantêm flores na campa.

Imagino que fique incomodado quando ouve as pessoas chamarem ditador ao seu pai.

MC: Ditador é o menos, fascista incomoda-me muito. Ditador é uma expressão que indica que é uma pessoa autoritária. Havia um autoritarismo de direita, não há dúvida nenhuma, e a guerra até terá levado a certos excessos… Penso que era algo que o meu pai não quereria, e a vida dele como professor, comissário da Mocidade Portuguesa, etc., mostra isso. Não há atos de repressão, nem connosco. Podia castigar-nos, mas nunca fisicamente.

Que tipo de castigos recebiam? Não poderem sair de casa ou ficarem sem semanada?

MC: Não mexia na semanada. Era mais a maneira como falava quando se zangava… Podia dizer ‘Vai para o quarto’ ou ‘Hoje não comes à mesa’, isso podia acontecer. Era uma atitude que nos deixava…

Constrangidos?

MC: Posso contar esta anedota dele? Eu tinha tido aulas, e vinha a pé da faculdade, como sempre. O meu pai tinha dado aulas e vinha de carro, já com motorista privado. E ao passar ao pé de mim disse-me para entrar no carro. A Faculdade de Direito na altura era num antigo palacete em que havia uma saída nobre e outra saída que dava acesso às antigas cocheiras, onde era a associação académica. Aí jogávamos ping-pong, matraquilhos, essas coisas. E o meu pai, para gozar comigo, disse-me: ‘Tu sais pela porta das cocheiras, enquanto eu saio pela porta principal. São diferenças que a gente tem de ter’. E eu digo-lhe: ‘Isso é verdade, mas agora vamos comer na mesma manjedoura’. [risos] Ele dá uma gargalhada… ‘Essa é uma boa piada!’. Chegámos, entrámos os dois em casa e íamos almoçar. Quando vou lavar as mãos, ele diz-me: ‘O que disseste pode ter tido graça, mas foi uma falta de respeito. Não comes comigo’. E pronto, eu fiquei enfiadíssimo. 

JAS: Foi uma lição inesperada…

Dizia-me que aquilo que o incomoda mais é que lhe chamem fascista…

MC: Sim, até porque eu não penso que o meu pai tenha sido fascista, no sentido que lhe querem atribuir. Era defensor da Aliança Inglesa. Foi estudar o regime italiano como constitucionalista. Até comentou com Salazar que havia no fascismo coisas curiosas, mas a nossa solução era bem melhor do que a deles. Quando dizem que era fascista… acho uma estupidez. E é ofensivo. ‘O teu pai era fascista’. Não, não era.

JAS: Concordo. Aliás, Salazar também não era fascista. Ele via era o fascismo e o nazismo como um escudo contra o comunismo. Várias vezes disse que não concordava com a humilhação da Alemanha no fim da Segunda Guerra Mundial, porque deixava a Europa exposta ao avanço comunista. Mas isso é diferente de ser fascista ou nazi.

MC: É uma questão de geografia política.

Disse-nos que, quando falaram pela primeira vez depois do 25 de Abril, o seu pai parecia aliviado. Como o achou quando o viu no Brasil? A saída do poder foi como se lhe tivessem tirado um fardo de cima ou pareceu-lhe amargurado?

MC: O telefonema que me faz depois de sair do Carmo transmite-me uma sensação de: ‘Acabou, mas foi com dignidade’. Em consciência, achava que podia descansar. Quando vou visitá-lo pela primeira vez ao Brasil – combinámos entre os irmãos que não o íamos deixar sozinho –, ele estava amargurado, não posso dizer que não. Mas isso não foi tão visível porque estava a instalar-se e queria mostrar-me as coisas todas. O andar onde vivia, onde era a universidade…

Andaram a conhecer os cantos à casa.

MC: E falava o menos possível daqui. Na primeira vez, não queria mesmo. Lembro-me de, num almoço, haver um brasileiro que falou de política e ele mostrou-se irritado. ‘Não venha cá com essas coisas’.

Não queria ouvir falar de política.

MC: Depois, escrevia-nos muito. Para os filhos e não só.

Quanto tempo demorava uma carta a chegar?

MC: Três dias, segundo me lembro. 

Mais rápido do que agora! Então dava para se manterem a par…

MC: Sim, sim. Fomos escrevendo e ele mostrava-se muito interessado por aquilo que se passava aqui. Por outro lado, pediu-me para o representar . Eu é que tinha as procurações dele, de modo que andei a resolver várias coisas, como enviar a biblioteca para o Brasil ou tratar da casa de Alvalade. Esta do Linhó, onde estamos agora, já não era dele, quando a minha mãe morreu o meu pai decidiu fazer partilhas e ficámos nós, filhos, com ela. Mas a de Alvalade ainda era dele, e a minha irmã deixou de viver lá porque não era seguro…. 

Porque as pessoas sabiam que tinha sido a casa do Marcello Caetano e que estava lá a filha?

MC: Sim. No princípio houve um assalto. Depois, passou a ter guarda militar à porta. Mas o meu pai acabou por conseguir vender a casa a uma pessoa que tinha atividade no Brasil. Esse foi o dinheiro extra que ele teve lá, para além daquele que ganhava como professor. A conta bancária dele em Portugal estava congelada, mas houve um amigo advogado, o António Alvim, que resolveu isso. O meu pai disse-me para dividir a conta por quatro, ficar com um quarto e dar o resto aos meus irmãos. E com isso – e só para isso chegou – fui com a minha mulher ao Brasil em 1979, no ano antes de ele morrer. A minha correspondência com ele é muito curiosa porque, além da troca das informações e dos assuntos que havia para tratar, falávamos do que se estava a passar – e eu também nunca lhe escondi a minha atividade por cá. Quando ele me enviou As Minhas Memórias de Salazar, eu li e escrevi-lhe: ‘Gostei imenso de ler, porque pensei duas coisas: se calhar, se tivesse nascido naquele tempo, teria feito o mesmo que o pai fez. E se calhar o pai teria feito o mesmo que eu, se tivesse nascido quando eu nasci’. Não me disse nada. Mas recebia cartas de todo o lado, e entre as poucas cartas pessoais que guardou, estava esta.

JAS: Escreviam-se com que regularidade?

MC: De 15 em 15 dias. Ele escrevia para os filhos todos separadamente. E para os netos, que ainda têm as cartas do avô.

Falava sobre o que gostava e o que não gostava no Brasil?

MC: Ia dizendo: ‘Cheguei agora de uma conferência’, ‘Acabei as provas de doutoramento’… Não sei se conhece o livro Marcelo Caetano no Exílio, que publiquei com o Fernando Guedes, o editor da Verbo, que foi um grande amigo do meu pai. Escrevi uma nota de introdução em que dizia: ‘É curioso que um homem que representava o último ‘governo colonialista’ da velha Europa, percorresse o Brasil defendendo a atividade civilizadora dos portugueses e lamentando apenas não ter tido tempo (ou ter chegado tarde?) para encaminhar territórios como Angola e Moçambique para o mesmo destino histórico: novos Brasis. E durante aqueles seis anos foi convidado para ensinar, explicar, transmitir no Brasil esta heresia. A vida dele, no Brasil, dividia-se entre o dia-a-dia na universidade, onde dava aulas, e a Academia de História – todas as semanas ia lá, fazia intervenções e outros trabalhos mais profundos. Estava sempre em ação.

JAS: Voltando ao tema da amargura, acho que isso é não só natural como inevitável. Por um lado, foi o choque de sentir a falta de reconhecimento da sua obra e do seu trabalho. Sentir-se incompreendido e, mais do que isso, vilipendiado, provoca obviamente amargura. Por outro lado – e isso nota-se nas Confidências no Exílio –, acha que aqueles que vieram depois só estão a fazer disparates. No fundo, estão a desfazer aquilo que a pessoa, com muito esforço, tinha conseguido construir. E estão a desfazer em nome de posições ideológicas que ele toda a vida tinha combatido. De certa forma, era inutilizar toda a sua vida política.

MC: Eu sabia que ele estaria amargo e preocupei-me em, por exemplo, transmitir o menos possível o que cá se passava. Quando foi a recandidatura do Eanes, eu fui um dos 300 e tal que subscreveram o primeiro documento de apoio. O Veríssimo Serrão escreveu logo ao meu pai a contar e o meu pai ficou magoadíssimo. Assim que percebi, escrevi-lhe a explicar: ‘Olhe que eu fiz isto com a maior das discrições. Neste momento, apoio o Eanes por isto e isto. Custa-me imenso saber que isso chegou aí de uma maneira que, provavelmente, o vai magoar’. E a última carta que ele me escreve é a dizer que agradece imenso a minha carta, e para eu considerar ultrapassado qualquer problema que tenha havido, para não estar preocupado. Queria dizer-me que achava que eu soube fazer a minha vida e ser independente, e que tinha muita consideração por mim. E assim ficámos – morreu um mês depois, em 26 de Outubro de 1980.

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