Chupa-Cabras. Oito ovelhas mortas numa noite em Porto Rico

A expressão tornou-se popular a partir de 1995 por causa de Madelyne Tolentino, mas já existia há mais de 200 anos. Incapazes de explicar o mal que lhes atacava os rebanhos, os agricultores sul-americanos inventaram um mito. Que, afinal, ia além de solitários coiotes carregados de escabiose.

O nome seria ridículo se não fosse grotesco. Ou grotesco, se não fosse sinistro. Toda a gente, em alguém lado, já viu o Chupa-Cabras: ou melhor, achou que viu e ficou com a certeza de que o viu. Mas o facto real e indesmentível é que não há um ser humano sobre a Terra capaz de jurar a pés juntos sem medo de ir parar às caldeiras de Pêro Botelho que esteve frente a frente com o maldito Chupa-Cabras. Produto somente de imaginações férteis? Não caiam nessa. As lendas não se constroem sobre invenções. Há qualquer coisa lá no fundo, se escavarmos como arqueólogos decididos e teimosos, que as alimenta. E, sobretudo, que as fez nascer.

«Batman, Superman, Aquaman, Redman/no, no se comparan/con el Chupacabras/es porque pego mi propio ego / me conduce a lo que hago, te/atrapo», cantavam os Tiro de Gracia. E sim, aquele «pego mi proprio ego» está lá propositadamente, como se houvesse um Chupa-Cabras em cada um de nós à espera do momento para soltar-se e atacar brutalmente a nossa existência.

O Chupa-Cabras é, definitivamente, um mito rural, um produto dos pavores campesinos e do medo que sentem por verem destruído o seu trabalho árduo que lhes caleja as mãos mas não o espírito. Há quem o defina apenas como um ser estranho que ataca animais nas quintas e deixa ficar para trás as carcaças dos cadáveres. O mito explodiu em 1995, em Porto Rico, em inícios de Março, quando um agricultor descobriu, desolado, logo pela manhã, que algo tinha feito em trapos oito das suas ovelhas, secando-as até ao limite da corrente sanguínea. A notícia espalhou-se em redor como fogo em palha seca. Havia à solta um animal suficientemente poderoso e faminto para deixar oito ovídeos reduzidos a pedaços de lã e ossos. Um pânico incontrolável tomou conta das vizinhanças. E, como sempre acontece, a imaginação dos homens foi largada à solta com as consequências que sempre daí advêm.

Uns meses mais tarde, Madelyne Tolentino apresentou uma queixa oficial às autoridades de Canóvanas, uma pequena povoação da ilha de Porto Rico, declarando que só nas três quintas em redor da sua – e na sua, naturalmente – o número de animais mortos atingira os 150. O cenário era horripilante; cabras, ovelhas, porcos e até vacas, apresentavam os mesmos sinais de ataque – perfurações profundas na zona do peito através das quais, aparentemente, todo o sangue dos bichos havia sido sugado sem dó nem piedade. Uma nuvem escura tapava o céu de Canóvanas. As pessoas tinham medo de sair de casa.

Silverio Pérez, um comediante porto-riquenho, uma daquelas almas descrentes que não aceita nada como verdadeiro sem ver com olhos de São Tomé, abriu o microfone da rádio na qual era responsável por um programa diário de curiosidades, e anunciou ao mundo (pelo menos ao mundo que estava ao seu alcance) a chegada de um demónio sanguinolento ao qual deu o nome de Chupa-Cabras. O baptismo da besta ficou, assim, da sua responsabilidade. Embora a maior parte dos seus ouvintes não tivessem encontrado no tema qualquer tipo de graça, bem pelo contrário. A comédia de Silverio serviu para alargar o cenário de tragédia.

Muitos anos antes!

Ora bem, Silverio Pérez pode ter tentado ter sucesso com a sua palhaçada – e já vimos que não teve – e conquistado a efémera fama de ser o autor desse termo assustador, ridículo, grotesco e sinistro, tudo ao mesmo tempo, Chupa-Cabras. Mas, nestas coisas de lendas, geralmente há sempre algo que se esquece naquelas eras sobre eras que se somem nas eras que com o tempo vêm, como diria Fernando Pessoa, n’A Mensagem. Por isso, ao consultarem um livro escrito em 1823, escrito pelo explorador inglês Sir John Franklin, Journey to the Polar Sea, certos historiadores não deixaram passar em claro uma frase bastante esclarecedora: «Os melancólicos sons que se ouvem nas silenciosas noites de Verão, e que a ignorância dos homens brancos considera como gritos dos goat-suckers, são na realidade, segundo me informou um índio, os lamentos desses seres infelizes». Ora, se não duvidarmos das palavras do emérito britânico (e por que haveríamos nós de pôr em causa a palavra de Sir John Franklin, o termo chupa-cabra – goat-sucker – já tinha mais de de duzentos anos e, desta forma, teria viajado pelos oceanos polares até à Europa e daí é que teria partido para se instalar na América Latina.

Outro coca-bichinhos de espírito empreendedor e pouco dado a fantasmagorias, levou a cabo a tarefa de descredibilizar tudo o que Madelyne Tolentino tinha levado ao conhecimento da polícia. Acrescente-se que mais de uma ano havia decorrido e, um pouco por toda a parte, começaram a ser registados ataques brutais do maldito Chupa-Cabras, desde o Brasil às Honduras, do Paraguai ao Chile, da Argentina a San Salvador. Tornara-se uma praga invisível que chupava avidamente o coração das suas vítimas, aproveitando para despachar mais uma ou outra víscera que considerasse apetitosa.

O coca-bichinhos a que me refiro chamava-se Benjamin Radford e descobriu, sem precisar de investigações suplementares, que a descrição feita por Madelyne às autoridades sobre o terrível bicho era totalmente decalcada de uma criatura de nome Sil que surgira numa série bastante popular, de origem norte-americana e intitulada Species. Chamada a reforçar as suas declarações iniciais, Madelyne repetiu tim-tim por tim-tim que tinha visto, com aqueles olhos que a terra haveria de comer, um animal de costas arqueadas e saliências ao longo da espinha, de caninos bem saídos da boca, do tamanho de um cão de grande porte e caminhar desengonçado. Também admitiu ter visto o episódio em causa da série Species, do qual era personagem principal uma espécie de canídeo de costas arqueadas, saliências ao longo da espinha, e caninos bem evidentes. O mito do Chupa-Cabra acabara de sofrer um golpe duríssimo na sua credibilidade. Mas algo acontecera entretanto: entrara definitiva e irreversivelmente na imaginação dos homens.

Ora diacho! Coiotes?

Nos Estados Unidos, onde também foram testemunhados ataques de Chupa-Cabras, sobretudo nas regiões mais desérticas, o caso foi entregue à ciência pura e dura. Rapidamente, estudiosos de inequívoca capacidade e de imbatível currículo, foram enviados para os locais das aparições e vieram de lá com uma explicação tão simples que seria de irritar um mero contador de histórias à volta de uma fogueira num acampamento de escuteiros: os chupa-cabras encontrados, tanto vivos como mortos, não passavam de coiotes com escabiose. A sarna oferecia-lhes aquele aspecto nojento, as comichões e as feridas abriam-lhes a pele em cortes profundos, o abandono a que eram votados por parte das matilhas fazia com que atacassem sozinhos, de preferência animais indefesos e fechados em cativeiro.

Ora diacho!, terão pensado alguns dos que o mito do Chupa-Cabras já levara à construção de teorias mirabolantes. Coiotes é que não. Kevin Keel, um dos especialistas da Southeastern Cooperative Wildlife Disease Study de Universidade da Georgia, escreveu num artigo científico: «Se tivesse vivido a minha existência toda rodeado por bosques, é bem provável que ao ver um bicho como este não o reconhecesse e resolvesse apelidá-lo de Chupa-Cabras, ou algo do género. Mas a verdade está numa infecção provocada pela Sarcoptes Scabiei, que também é responsável pela sarna nos humanos. O ácaro introduz-se por debaixo da pele do hóspede e segrega um líquido onde despeja os seus ovos, provocando uma reacção inflamatória muito forte do sistema imunitário e uma irritação permanente da pele».

Loren Coleman, director do Museu Internacional de Criptozoología de Portland (Maine, Estados Unidos), também é da mesma opinião. Os Chupa-Cabras não passam de canídeos selvagens que a escabiose vai matando por dentro ao ponto de se transformar em assassínios solitários. Ainda assim, deixou aberta uma porta de esperança para os fanáticos das conspirações e dos seres incompreensíveis ao reconhecer que, dos muitos testemunhos que recolheu nos anos mais recentes, havia uma grande quantidade em que os bichos descritos nada tinham que ver com caninos. «Em 1995, quando a febre dos Chupa-Cabras teve início, a crença era que a criatura fosse bípede, medindo cerca de um metro de altura, com pelagem cinzenta, espinhos nas costas e deslocava-se em saltos compridos como os cangurus. Só mais tarde  começámos a generalizá-la em forma de cão, à medida que íamos encontrando cadáveres dos atacantes».

A tragédia de Calama!

Em Abril do ano 2000, os camponeses da região de Calama, no norte do Chile, estava-se bem nas tintas para o aspecto que tivesse o raio do Chupa-Cabras. A tragédia caíra-lhes em cima e não tinha explicação nenhuma para o assunto. Mais de centena e meia de animais de curral foram encontrados mortos e dessangrados da noite para o dia. O prejuízo daquela gente era incalculável. E um nome viajava de boca em boca, tornando-se cada vez mais audível: Chupa-Cabras.

«Es una vida casi extinta en el planeta/es algo que viene más/allá de las estrellas/chupa, absorbe, niñas bellas, buscador/Amador del sexo sangre, hambre de olor femenino/confundido como el violador de Maipú/el Chupacabras ser/ardiente como yo y tú/Tapia, rabia, contra la mafia del Chupacabras», ameaçava a canção. Homens e mulheres apavorados. Viria o Chupa-Cabras buscá-los a eles depois de destruir os animais? Desejaria, naquela sua sede incompreensível, sentir o sabor do sangue humano?

Todos os animais suspeitos estavam na mira das espingardas dos camponeses. Linces, coiotes, chacais, cães sem dono. Varria-se o sangue com o sangue. O sangue dos cordeiros inocentes era lavado com o sangue dos carnívoros como se todos eles personificassem o Chupa-Cabras. Os cientistas, as autoridades, não tinham mãos a medir. Não havia resposta para a morte dos bichos que pertenciam aos homens, carcaças eram encontradas todos os dias sem pinga de sangue, a raiva ia-se acumulando nas gentes que precisava do gado para sobreviver.

Um vaqueiro matou uma criatura que descobriu rondando a sua quinta. A imprensa sensacionalista chamou-lhe imediatamente La Bestia de Elmendorf. Tinha um aspecto bisonho: um cão sem pêlo. Em Davis, na Universidade da Califórnia, o diagnóstico repetiu-se: tratava-se de um coiote com sarna sarcóptica. Mais casos se seguiram a este com as mesmíssimas conclusões: coiotes atacados pela escabiose cuja incomodidade os conduzia a um estado de loucura raivosa.

A popularidade do Chupa-Cabras tornou-se universal. Não apenas pelo tal nome entre o ridículo e o grotesco, entre o sinistro e a comédia, mas principalmente pela atenção que a imprensa – na sua grande maioria regional – foi dando aos supostos avistamentos e ataques do bicho. Durante anos a fio, na América Latina era raro não surgir alguém nos jornais e nas televisões a descrever bichos estapafúrdios que devastavam rebanhos inteiros de quadrúpedes apetitosos, tanto para o homem como para o assim dito Chupa Cabras. As lendas têm sempre pernas para andar enquanto o homem tiver imaginação para transformar uma realidade banal numa maldição divina, saída de um ser super-poderoso para o qual não há, neste planeta, maneiras de deter a sua intrínseca maldade. O Chupa-Cabras veio e ficou, mesmo que não passe de um miserável e esquálido coiote com uma comichão pelo corpo todo que o conduz a um estado desesperado de loucura.

Ou, como diz também a canção dos Tiro de Gracia, simplesmente um canalha sempre disposto a morder a mão que lhe dá de comer: «I say Juan/tu tu mi mi yo yo/siendo Chupacabras la hinchada/de bandas del barrio/Copihuano marihuano tanteando lo humano/así que no muerdas la mano la cual te dá de comer…»

Chupa-Cabras – estamos infinitamente dispostos a encontrar novos nomes para a maldade. Mesmo que ridículos, grotescos ou sinistros… Pouco importa se o mal está lá. Cada um o vê com os olhos que tem.