Legalizar canábis será mau para os traficantes, defende Francisco George

Carta assinada por 60 personalidades, entre eles o ex-diretor-geral da Saúde, pede regulação do consumo com idade mínima e preço e potência controlados.

por Gonçalo Morais*  

Sim à legalização do consumo de canábis – mas com regras bem definidas. Numa altura em que a legalização do consumo recreativo de canábis volta à discussão na Assembleia da República – graças a projetos de lei apresentados pelo Bloco de Esquerda e pela Iniciativa Liberal – 60 personalidades, algumas com destaque na área da saúde, publicaram uma carta aberta a defender que o processo avance. Francisco George, médico especialista em saúde pública e antigo diretor-geral da Saúde, um dos signatários, defende ao i que a regulação iria prejudicar os traficantes. O consumo, diz, “não é bom”, mas o mercado clandestino “é pior do que num cenário diferente [em que existe regulação]: globalizado, controlado”.

A carta aberta foi publicada esta quinta-feira no jornal Público. Os signatários, que incluem ainda o ex-ministro da Saúde António Correia de Campos, o ex-ministro da Saúde Fernando Leal da Costa e figuras de outros quadrantes como Paula Teixeira da Cruz ou António Barreto, defende que Portugal “vive um novo momento que deve servir para clarificar e melhorar a eficácia das políticas públicas de drogas, na defesa da saúde pública e individual, do Estado de Direito e do combate ao narcotráfico”.

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Para fundamentar esta posição, a carta salienta — fazendo referência a dados de análise sobre o consumo de drogas e citando o mais recente estudo do relatório do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas dependências (SICAD) — que a proibição da canábis não teve qualquer efeito na redução do seu consumo. Pelo contrário: “continua a aumentar e tende a normalizar-se socialmente”.

Reagindo à publicação, o subdiretor-geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) mostrou-se reticente. Em declarações à TSF, Manuel Cardoso disse que não assinaria a carta em causa: “Temos o exemplo do tabaco e do álcool, que são apenas as duas substâncias consumidas que mais contribuem para as doenças não transmissíveis, com fatores de risco para a redução da esperança de vida. Temos problemas gravíssimos. [A legalização da canábis] só viria acrescentar a esses problemas que já temos”. Manuel Cardoso considera importante que seja feita uma avaliação sobre os efeitos que esta medida teria na saúde pública — o que, diz, ainda não foi feito.

Os signatários da carta aberta defendem que a legislação deve definir uma idade mínima de consumo, limitar o nível máximo de THC (o elemento psicotrópico da planta), a criação de regras para o cultivo e produção orientada para a proteção do ambiente e também da saúde. E ainda proibir e punir a condução de veículos e máquinas sob o efeito da droga, assim como preparar as forças de segurança com o que for necessário para garantir o respetivo controlo. Os signatários defendem ainda que sejam criadas obrigações de informação do consumidor nos respetivos pontos de venda sobre o conteúdo e os possíveis riscos associados, mas também “os riscos de dependência, as formas para reduzir o risco e as alternativas para tratamento, através da indicação das organizações e dos serviços públicos a contactar”.

Júlio Machado Vaz, médico psiquiatra, que também integra o rol de 60 personalidades que apoiam a regulamentação da droga, explicou ao i que a sua assinatura veio, em primeiro lugar, da “preocupação com a saúde dos utilizadores”. Isto porque as concentrações da substância ativa da canábis que chega aos consumidores nos dias de hoje são mais elevadas do que há 20 anos. Mas também por outros fatores que considera pertinentes: “tráfico, criminalidade e o estigma”, elenca. “A legalização é um primeiro passo em termos de saúde, de prevenção e tratamento, baseado em países que já estão a experimentar a regulamentação com uma avaliação permanente”, afirma.

O médico confessou que esteve, por curiosidade, a ver os comentários da carta em questão do Público — nos quais “a esmagadora maioria é favorável” à regulamentação.

A discussão sobre a legalização da canábis já tinha sido tema de debate no parlamento em junho, quando os deputados confrontaram ideias e tanto o Bloco de Esquerda como o Iniciativa Liberal pediram que as suas propostas fossem discutidas em pormenor antes de irem a votos. CDS e PCP não alinhavam: estavam contra os diplomas. Em 2019, projetos de lei do Bloco de Esquerda e do PAN para regulamentar o uso recreativo foram chumbados no Parlamento. A única mudança nos últimos anos foi a legalização do uso de canábis para fins medicinais, aprovado em junho de 2018. O uso recreativo da canábis está legalizado no Uruguai, Canadá, México, Geórgia e África do Sul, bem como em 18 estados dos EUA.

*Texto editado por Marta F. Reis