Herói do filme Hotel Ruanda condenado por terrorismo

Rusesabagina passou de ícone consensual a apologista da luta armada contra Kagame, acusado de gerir um “esquadrão da morte” que faz vítimas em Moçambique.

Para quem está a par da situação política no Ruanda, a condenação de Paul Rusesabagina por terrorismo, na segunda-feira, não foi grande surpresa. Mas para quem apenas se recorda de Rusesabagina como herói do filme Hotel Ruanda (2004), que conta como escondeu centenas de tutsis e hutus moderados no hotel que geria, para escaparem ao genocídio de 1994, a notícia pode ser um choque. Agora, aos 63 anos, foi condenado a 25 anos de prisão, sob acusação do seu partido, o PDR-Ihumure, estar ligado a ataques contra civis no sudoeste do país. Outros dizem que o verdadeiro crime de Rusesabagina foi ser dos mais conhecidos opositores do Presidente Paul Kagame, reeleito em 2017 com quase 99% dos votos, valores dignos da Coreia do Norte. 

Aliás, durante o julgamento, o próprio Kagame – cujos opositores rotineiramente acabam mortos, presos sob acusação de apoiar terroristas ou desaparecidos – veio à praça pública acusar o seu rival político de ter “o sangue de ruandeses nas suas mãos”, lembrou o Washington Post. Rusesabagina desistiria do julgamento uns meses depois, explicando que não tinha qualquer esperança que de lhe fosse feita justiça. 

As circunstâncias da detenção de Rusesabagina, que tem cidadania belga e estava exilado nos Estados Unidos há anos, estiveram envoltas em mistério. Quando o herói de Hotel Ruanda surgiu algemado em Kigali, em setembro de 2020, a sua família denunciou que fora raptado durante uma visita ao Dubai, e que este nunca teria arriscado voltar ao seu país com Kagame no poder. Já o Presidente negou que se tenha tratado de um sequestro. Mas pareceu particularmente orgulhoso das suas manobras. 

“Não houve nenhum rapto no processo de trazer Rusesabagina para cá. De facto, foi perfeito”, gabou-se Kagame, citado pela Associated Press. “Quando chegar a altura, eu mesmo vou contar essa história”. Eventualmente, Rusesabagina explicaria ao New York Times que foi enganado por um amigo, um pastor protestante que ‘virara’ agente de Kagame, e levado a entrar num jato privado que pensava dirigir-se ao Burundi. 

 

Luta armada No cerne da acusação da justiça ruandesa está o Movimento pela Mudança Democrática (MRCD, na sigla francesa), uma coligação de partidos da oposição, cujos líderes estão exilados, onde se incluía o partido de Rusesabagina. Daí surgiria uma ala armada, a Frente de Libertação Nacional (FLN, em francês), que lançou uma série de ataques na província de Nyaruguru, em 2018 e 2019, causando nove mortos. 

Antes de desistir do julgamento, Rusesabagina, que anteriormente divulgara um áudio dizendo que as vias políticas de oposição estavam esgotadas, apelando à luta armada, negou as acusações de ataques a civis. Lembrou que a MRCD é “uma plataforma de muitos partidos”, exigindo o fim do regime de Kagame. E, face à acusação de coordenar a entrega de armamento pesado ao grupo, Rusesabagina negou ter feito parte da sua direção. “Quando nós criámos a FLN, não era um grupo terrorista”, acrescentou, citado pela Reuters.

É um ciclo que reflete as queixas de muitos opositores do regime. Ameaçados, alvo de atentados – o próprio Rusesabagina viu a sua casa assaltada, em 2009, na Bélgica, tendo pouco depois um veículo tentado atirá-lo para fora da estrada, acabando a fugir para os EUA – ou detidos, acabam a virar-se para a luta armada, que depois justifica a sua prisão. E de muitos outros. 

“O espaço político no Ruanda está fechado”, lamentou Victoire Ingabire, líder do partido FDU-Inkingi, em 2019, após cumprir pena de oito anos de prisão. “Um mês depois, o nosso vice-presidente desapareceu, quatro meses depois o meu assistente foi morto, em julho o nosso representante nas províncias orientais desapareceu e ontem o nosso coordenador nacional foi assassinado”, enumerou, à DW

A lista de opositores de Kagame que sofreram um destino semelhante é extensa. Além dos assassinatos e desaparecimentos forçados, as “detenções arbitrárias, maus-tratos e tortura em centros de detenção oficiais e não-oficiais são comuns”, acusou a Human Rights Watch. Nem fugir do Ruanda é solução, o infortúnio – ou talvez seja o longo braço das secretas – persegue os opositores de Kagame.

Só este ano, já foi assassinado um dos principais rostos da oposição, Abdallah Seif Bamporiki, abatido a tiro na Cidade do Cabo, dias após organizar um vigília pelos dissidentes ruandeses mortos pelo mundo fora.

Já em Moçambique, mal foram enviados uns mil polícias e militares do Ruanda para combater a insurreição jiadista em Cabo Delgado, em julho, começaram a aparecer dissidentes ruandeses assassinados.

“Esse esquadrão da morte de Kigali é eficaz”, acusou Cléophas Habiyaremye, presidente da associação dos refugiados ruandeses em Moçambique, à RFI, após pelo menos três homicídios. Incluindo a morte de Revocant Karemangingo, um milionário crítico de Kagame, cravejado com nove tiros no bairro de Matola, em Maputo, segundo a France Press. E excluindo o desaparecimento do jornalista Cassien Ntamuhanga, apanhado pelas forças de segurança moçambicanas, entregue algemado e acorrentado na embaixada do Ruanda, segundo a imprensa local.