Modéstia ‘católica’: “Seja bonita sem mostrar o corpo todo”

No grupo de Facebook Modéstia Católica Portuguesa e o seu Apostolado Tradicional, são defendidas ideias controversas. No entanto, Nuno André acredita que está a existir “um aparente aproveitamento da terminologia católica para certificar um peso em torno dos costumes e da moral”.

Numa época em que as mulheres ainda lutam para que a sua voz seja ouvida e a igualdade de género fomentada, em muitas partes do mundo, há quem faça exatamente o inverso em Portugal. No grupo de Facebook “Modéstia Católica Portuguesa e o seu Apostolado Tradicional”, criado há dois anos, dois administradores e 3.800 membros apostam na “comunidade de pessoas Católicas, que são guerreiros de luz, estão a aprender a entender a Alma, pela oração, penitência e obras de misericórdia (…) levando luz onde há trevas”.

Se fizermos um pequeno périplo pelas últimas publicações, à data de fecho desta edição, encontramos as mais variadas ideias. Na primeira, é citada uma alocução do Papa Pio XII sobre a moda, em que se pode ler que “a sociedade, por assim dizer, fala com a roupa que veste, com a roupa revela as suas secretas aspirações e dela se serve, ao menos em parte, para construir ou destruir o futuro”.

Nuno André, professor e investigador na área da História e da Teologia, lembra que Pio XII foi Papa entre 1939 e 1958, adicionando que “se quisermos citar o discurso da Igreja Católica na atualidade, a única forma honesta de encontrar a sua mensagem é dando atenção aos textos e às ideias atuais, porque todas as afirmações são fruto de um contexto”.

Nas imagens que acompanham a reflexão, veem-se homens, mulheres e crianças com roupas consideradas formais e com as quais se vislumbra, no máximo os braços, as mãos e um pouco do pescoço dos fotografados. Noutra das partilhas, surge uma mulher com um vestido com um padrão tropical e umas leggings, sendo a legenda “Na praia e no desporto” indicativa de que o género feminino não deve mostrar o corpo nem sequer nestas duas situações.

Este comportamento afigura-se particularmente controverso cinco dias depois de ter sido noticiado que “Não toquem nas minhas roupas” é o slogan de uma campanha que se está a tornar viral nas redes sociais, representando a luta das mulheres afegãs contra o uso obrigatório da burca imposto pelos talibãs. Para isso, veiculam imagens suas envergando roupas coloridas, na medida em que a roupa tradicional afegã inclui vestidos que cobrem os tornozelos e também lenços que tapam o cabelo, mas não a peça larga de vestuário que cobre o corpo desde a cabeça até aos pés.

Há 20 anos, a burca conservadora já havia sido imposta pelos talibãs, sendo que este código de vestuário regressa agora com a retirada das tropas norte-americanas do país e o controlo total do mesmo. Tal decisão veio acompanhada de outras como a substituição, na passada sexta-feira, do Ministério dos Assuntos Femininos pelo de Promoção da Virtude e Prevenção do Vício, que esteve em vigor no período compreendido entre os anos de 1996 e 2001.

Apesar disto, as mulheres resistem e a campanha #DoNotTouchMyClothes, iniciada por Roxana Bahar Jalali, historiadora afegã que fundou o primeiro programa académico de Estudos de Género na Universidade Americana do Afeganistão, já conta com o apoio de nomes como o da jornalista da BBC Sana Safi. “Porém, considero que não podemos alinhar com a ideia de que se recuou 20 anos. Fazê-lo seria um desrespeito para com as mulheres afegãs que lutam diariamente para marcar a sua posição com uma força e uma garra que não seriam possíveis há duas décadas”, constata Nuno André.

No entanto, para o grupo Modéstia Católica Portuguesa e o seu Apostolado Tradicional, a conquista da liberdade do género feminino em diversas vertentes é tudo menos celebrada. A título de exemplo, numa publicação que data do início de julho, uma das administradoras publicou uma montagem com quatro imagens de uma mulher muçulmana à qual se juntam as frases “Sou apaixonada pela moda islâmica… mas continuo a ser cristã, pois amo a Cristo e à Virgem Maria”. Noutra, de ontem, lê-se “Não cedais à tentação de vestir-se imoralmente por causa do calor. Acredite: o inferno é 1 milhão de vezes mais quente”.

Mas Nuno André acredita que está a existir “um aparente aproveitamento da terminologia católica para certificar um peso em torno dos costumes e da moral”. Relativamente à menção do inferno como destino final, lembra que “há muito que o discurso da Igreja relativamente à eternidade alterou o foco, ou seja, o desejo da perfeição e da virtude deve ser não uma fuga ao inferno eterno, mas sim a um encontro pleno com Deus e com o amor, pois a ideia de salvação eterna não se deve reduzir a um conjunto de considerações quantitativas em torno daquilo que fizemos bem ou mal, mas antes em torno daquilo que somos”.

Afinal, o que é a modéstia católica? O conceito apregoado no grupo não é recente porque, na doutrina da Igreja Católica, a modéstia designa a virtude caracterizada pela moderação de detalhes do quotidiano como as ações exteriores ou o vestuário. Por outro lado, numa imagem divulgada ontem na comunidade, lia-se “A verdadeira modéstia é a franciscana: do desapego a tudo que é material e ficar só o espiritual”.

Já em dezembro do ano passado, na comunicação “A modéstia feminina católica na internet: um novo velho modo de ser mulher no mundo”, apresentada, em território brasileiro, no 44.º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, SPG24 – Género, sexualidade e família: políticas, moralidades e direitos em disputa, os autores começaram por deixar claro que “enquanto podemos, por um lado, observar atualmente a ascensão pública de questões relacionadas com a questão feminista, por outro lado, começam a destacar-se também grupos de mulheres católicas que propagam, em especial pelas redes sociais, os seus modos de vida em função de uma defesa da virtude da modéstia feminina”.

No resumo do artigo, os investigadores esclarecem que estas mulheres seguem “um sentido completamente oposto a tal ascensão feminista”, sendo que “se declaram antifeministas e fazem uma defesa de que os seus corpos pertencem às suas famílias”. Foi exatamente este ideal, encarado como um dogma, que uma administradora frisou num vídeo que já não se encontra disponível, pelo menos, publicamente, realçando que o corpo da mulher deve ser somente visto pelo marido.

Ainda que o conteúdo do vídeo não possa ser visualizado, a mulher – que o i contactou na tentativa de narrar a perspetiva da mesma, não obtendo qualquer resposta até à hora de fecho desta edição – não eliminou ainda publicações onde se leem desabafos como “A modéstia não é fácil de viver, mas dou umas pequenas dicas: menos maquilhagem, roupa mais larga e comprida, meia manga ou manga comprida. Se não conseguir tudo de uma vez, comece aos poucos nesta modéstia”, “Seja bonita sem mostrar o corpo todo”, “Comprido e tapado: deve ser o vestido de noiva” ou “Se usar calças tenha muito cuidado para não parecer um homem”.

Porém, a moda anda de mãos dadas com a discussão acerca de outros tópicos, como o da manutenção do patriarcado. “A obediência da esposa ao marido está enraizada na obediência de Cristo ao Pai e na submissão da Igreja ao Senhor”, foi escrito, encontrando-se na caixa de comentários participações como “Hoje está tudo revirado, poucos homens e mulheres sonham em Ser Família, em obedecer àquilo que pede a Palavra de Deus ‘crescei e multiplicai’… e por aí vamos. Oremos muito por essa nova geração”.

Tais factos não são surpreendentes porque no texto referido, os autores abordam a conduta destas mulheres, explicando que “é a partir de seu modo do estar no mundo que elas narram a si mesmas e propagam valores próprios de um catolicismo tradicional, que tem como um dos fundamentos principais a família tradicional cristã, assim sendo, o papel da mulher enquanto esposa e mãe”.

Nos últimos dias, os administradores têm sido acusados de fazer uma “lavagem cerebral” àqueles que os seguem e, por isso, um dos administradores redigiu “Estamos a ser atacados gravemente, vamos remover todos os membros. Se alguém achar que quer continuar neste grupo, que peça novamente”, enquanto outra publicou dois screenshots alusivos a uma pesquisa que fez acerca de assédio online, em que utilizou a frase “assédio na internet é crime” para encontrar os resultados alusivos ao “crime de perseguição e suas consequências jurídicas”.