O esqueleto incómodo e uma ilha deserta

Deve estar agora a fazer vinte anos que ouvi Carlos Moura, o meu professor de História da Arte na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da então Universidade Nova de Lisboa, revelar qual o livro que levaria para uma ilha deserta. Todos os outros comentários que teceu em torno da obra varreram-se-me. Mas a imagem…

Sendo o professor um homem tão culto, sério e conhecedor, eu sabia que a recomendação não era feita de ânimo leve. Por isso, lá fui comprar o livro – na verdade dois grossos volumes (o preço dos meus exemplares está marcado em escudos, o que me leva a pensar que até já passaram mais de vinte anos…) – para o caso de algum dia ir parar a uma ilha deserta e me ser concedido o desejo de escolher o que levaria para ler.

O livro em causa é O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico no Tempo de Filipe II, de Fernand Braudel. O primeiro volume acompanhou-me nas últimas férias, que é o mais parecido com uma ilha deserta que conheço.

Este retrato do Mare Nostrum, como lhe chamaram os romanos, começa pela caracterização da paisagem, das culturas, das correntes, do clima. Braudel tentou desconstruir certas ideias feitas, como a de um mundo mediterrânico feito de planícies, de clima temperado propício à oliveira e às árvores de fruto. «O dado adquirido», contrapõe, «é de uma unidade arquitetural desse espaço mediterrânico de que as montanhas constituem o ‘esqueleto’: um esqueleto incómodo, desproporcionado, omnipresente, cujos ossos por todo o lado furam a pele».

Entre os historiadores, que sempre se basearam em papéis, registos, cartas, contratos, esta ideia de «distinguir, a partir do espaço, o que é repetição, lentidão, permanência», de sublinhar «o imóvel, ou o quase-imóvel», deve ter parecido uma loucura, uma blasfémia ou uma iluminação. De facto, Braudel desconfiava muito da História feita exclusivamente nas bibliotecas e arquivos. Vejamos, a esse propósito, uma passagem deliciosa sobre o inverno, período em que muitas das atividades paravam e se faziam planos para o futuro. «Para os próprios governos, é a ocasião dos projectos e das grandes discussões. O trabalho dos estados-maiores aumenta desmedidamente. O Inverno é o período dos arquivos sobrecarregados. Diríamos de bom grado: arquivos de Inverno, a utilizar sempre com precaução pelos historiadores. Nada apressa. É a boa ocasião para discutir, para prever e, finalmente, para construir, preto no branco. […] E as grandes páginas escurecem de tinta… As grandes ideias, os planos maravilhosos que os historiadores analisam com respeito e convicção, quantas vezes não amadureceram ao calor de um braseiro, num quarto bem calafetado, enquanto lá fora, em Madrid ou algures, se desencadeava o cierzo, o vento de neve oriundo das montanhas». E conclui com ironia: «Tudo está previsto e, como tantas vezes, nada se executará».

O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico é um livro de uma riqueza prodigiosa, esmagadora. Envolve geografia, meteorologia, economia, estatística… Mas creio que nunca é tão rico como quando fala de escassez e do atraso. «Montanhosa, excessivamente compartimentada, prisioneira da sua pobreza, a Sardenha vive essencialmente virada para si própria, e constitui por si só um continente, com língua própria, os seus costumes, a sua economia arcaica, e a sua vida pastoril que em muitas regiões se processa ainda segundo os moldes do tempo do Império Romano». E cá estamos nós a falar novamente de ilhas. Eu sabia que havia uma razão forte para o meu professor mencionar a tal ilha deserta.