Coerente, só com uma remodelação

António Costa nunca foi bom em campanha, comete erros de palmatória e, ainda assim, os resultados do PS melhoram de eleição para eleição.

António Costa tem tanto de bom a gerir poder como de mau a protagonizar campanhas eleitorais.

É um facto. Ora perde a voz de tanto esforçar as cordas vocais, quando lhe bastava saber colocá-la, que a tem grossa; ora pede meças ao velhote que o interpela numa arruada; ora dispara uma ‘bazuca’ de promessas impróprias para quem chefe do Governo; ora ataca uma empresa privada com a arrogância de quem já se julga intocável no seu poder absoluto (mesmo que este resulte da incompetência da Oposição e não do voto popular), chegando ao cúmulo de a ameaçar de represálias; ora usa a comunicação social que o Estado apoia para, assinando como primeiro-ministro, justificar uma ‘coerência’ inexistente com o líder partidário que é ele próprio.

Mas foi mais longe ainda o primeiro-ministro ao usar uma página no jornal Público para «deixar à Luísa Salgueiro e à Câmara de Matosinhos um pequeno encargo: é que utilizem todos os meios legais que as leis do ordenamento do território colocam nas mãos do município para garantir que naqueles terrenos só se fará o que o município de Matosinhos autorizar e só autorizará o que for para bem do progresso desta região».

A quatro dias de eleições autárquicas, quem fala assim como primeiro-ministro não é gago nem disléxico, é populista com falta de cultura democrática.

António Costa nunca foi bom em campanha, comete erros de palmatória e, ainda assim, os resultados do PS melhoram de eleição para eleição.

É fácil tirar as conclusões quanto ao demérito dos seus antagonistas.

No artigo Coerente, por uma transição justa, o primeiro-ministro esclarece que «a lição» que o secretário-geral socialista prometeu dar à Galp «não é mais do que usar o Fundo de Transição Justa e aplicar as leis para proteção dos trabalhadores». Que é como quem diz, as ameaças do líder partidário em campanha – o mesmo que afirmou e reiterou que «era difícil imaginar tanto disparate, tanta asneira, tanta insensibilidade, tanta irresponsabilidade, tanta falta de solidariedade como aquela de que a Galp deu provas aqui na refinaria de Matosinhos» – afinal resumem-se a não deixar que a Galp faça dos terrenos da refinaria o que lhe der «na real gana».

Como se fosse possível a Galp fazer ali o que quer que seja contra a vontade da autarquia de Matosinhos, seja ela governada por quem quer que seja, e do próprio Governo.

E esquece-se António Costa que a Galp é a maior exportadora de Portugal a seguir à Autoeuropa? E que o Estado também é acionista e nomeia um dos seus administradores? E o que já fez a tutela?

Esta reação do chefe do Executivo – obviamente não sendo contra a presidente da Câmara, Luísa Salgueiro, camarada de partido que antecipa como vencedora das eleições de domingo neste seu texto – só pode ser coerente se visar algum ministro e/ou secretário de Estado que António Costa eventualmente considere que não esteja empenhado na ação governativa a 200%.

Ou seja, ponham-se a pau o ministro João Pedro Matos Fernandes e o seu secretário de Estado João Galamba.
Por um lado, porque, ao contrário do que o primeiro-ministro escreve, não é «agora» que «sabemos que esta transição energética também tem custos» – sempre se soube, é uma evidência: ou o líder do PS teria a ilusão de que o fecho de uma refinaria criaria postos de trabalho???

Por outro lado, Matos Fernandes e Galamba – veja-se entrevista deste secretário de Estado ao mesmo jornal Público (em Novembro de 2019) defendendo uma refinaria de lítio para o Porto de Leixões (ao lado de Matosinhos) – chegaram a levar os suecos da Northvolt à Galp, num processo acompanhado pelo AICEP, para o desenvolvimento de uma refinaria de lítio.

Isto para não falar dos inquéritos do Ministério Público em torno de projetos associados à estratégia de transição energética do Governo, que motivaram escutas a Matos Fernandes e a Galamba, bem como ao ministro Siza Vieira, e nas quais foi também apanhado o primeiro-ministro. 

Inquéritos crime dos quais nunca mais se soube nada.

Na verdade, tanto as afirmações de campanha do líder socialista como o artigo do primeiro-ministro, em nome da mesma coerência, só podem culminar numa remodelação que o chefe do Executivo tem vindo a protelar, porque pode.

Quanto ao mais, vale a pena citar Luís Filipe Menezes no último programa Lei da Bolha, na TVI 24: em 13 eleições autárquicas, sempre que estas ocorreram com o PSD no Governo, só por uma vez os sociais-democratas saíram vencedores e, sempre que se realizaram com o PS no Governo, só por uma vez os socialistas não ganharam.

O debate prosseguiu versando sobre as duas únicas ocasiões em que um primeiro-ministro se demitiu na sequência de eleições locais (Balsemão após as autárquicas de 1982 e Guterres após as de 2001).

Ou seja, não há novidade alguma em António Costa andar pelo país a anunciar a distribuição de milhões da ‘bazuca’. 

O PS no poder, com essa exceção de 2001, sempre ganhou as autárquicas a meio das legislaturas porque sempre governou distribuindo a riqueza que o país não tem, seja da ‘bazuca’ que vem da Europa, seja dos impostos diretos e indiretos que asfixiam empresas, famílias e a economia.

E o PSD sempre foi chamado a governar em situações de crise ou de aperto do cinto e, por isso, tirando essa única vez (com Balsemão, num Governo que antecedeu o primeiro resgate do FMI em Portugal), sempre pagou a fatura a meio do mandato, nas autárquicas, mesmo que depois tenha voltado a merecer a confiança do eleitorado (vejam-se os exemplos da maioria absoluta de Cavaco Silva em 1991, dois anos depois de um ‘cartão amarelo’ nas autárquicas, ou da vitória da AD de Passos Coelho em 2015, após violento castigo eleitoral nas eleições de 2013).

Tudo coerente com uma economia, ou melhor um país que, assim, há de continuar a depender de fundos e subsídios externos, porque riqueza não cria e se limita a distribuir a que não tem.