Uma campanha alegre

O país atravessa uma grave crise moral, que só será vencida quando a maioria dos cidadãos tiver dela consciência e for capaz de se mobilizar para a derrotar.

Quando escreveu os vários textos que posteriormente publicou dando origem à obra Uma Campanha Alegre, (1890/1891), Eça de Queirós não estava seguramente a pensar no Portugal Contemporâneo e nas eleições autárquicas de 2021. Mas podia.

Basta recordar estas passagens de um dos textos que compõem a obra, para compreender quanto é válida a ideia de que, em Portugal, o tempo passa mas os vícios ficam.

«O país perdeu a inteligência e a consciência moral. […] a prática da vida tem por única direção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida».

Eça dizia à época, o que é hoje claro na sociedade portuguesa, ou seja que mais importante que uma crise económica, que a Europa fará o favor de nos permitir ultrapassar, ou uma crise pandémica, que a vacinação e posteriores desenvolvimentos da ciência, nos possibilitará vencer (com data administrativa e convenientemente fixada), o país atravessa uma grave crise moral, que só será vencida quando a maioria dos cidadãos tiver dela consciência e for capaz de se mobilizar para a derrotar.

A forma como está a decorrer a campanha autárquica é um excelente testemunho desta realidade.

Estas são eleições de proximidade que, teoricamente, até podiam dispensar a participação asfixiante dos partidos e, sobretudo, nunca deviam ser eleições de prova de vida partidária, reforço dos poderes dominantes a nível nacional ou antecâmaras de ajustes de contas com data marcada.

Só que não foi isso que se verificou com a campanha que antecedeu as escolhas do próximo domingo.

Com honrosas exceções pouco se falou dos candidatos locais e pouco se soube dos seus propósitos, dos seus anseios e dos seus compromissos.

O palco foi integralmente ocupado pelos líderes partidários e pelos membros do Governo, sem nunca se ter percebido onde acabava a propaganda e começava o compromisso sério com as pessoas.

Tudo foi usado para condicionar, manipular e orientar o que devia ser a escolha livre dos cidadãos.

Não há memória de uma eleição local em que um primeiro ministro em exercício tenha desempenhado um papel tão ativo e proeminente e, com essa atitude, tenha reduzido o debate eleitoral quase a zero.

Que interessante teria sido, por exemplo, assistir a um confronto leal e aberto em Coimbra, sem que as alternativas fossem intoxicadas por propostas de última hora que, independentemente do seu valor intrínseco, se limitam a soundbites desgarrados para enganar os cidadãos distraídos.

Como seria igualmente interessante propiciar condições para que a população de Matosinhos, a primeira interessada, pudesse discutir, em liberdade e com toda a informação, as vias alternativas para a utilização dos terrenos que o desmantelamento da Galp local, irá tornar disponíveis.

No primeiro caso, o debate local ficou poluído, com a proposta de transferência do Tribunal Constitucional para a cidade ou com a oferta de uma maternidade, promessas que, de um lado ou doutro, só serão concretizáveis (se forem) a médio prazo, provavelmente no quadro de umas próximas eleições autárquicas.

Quem ainda se lembra da prometida transferência para o Porto da sede do Infarmed, feita na antevéspera das eleições de 2017?

Mas o segundo caso é ainda mais grave pois reduz à insignificância absoluta a capacidade dos eleitos locais, nomeadamente dos incumbentes.

O encerramento inevitável das instalações da Galp em Matosinhos é discutido na autarquia e da responsabilidade dos seus titulares há mais de vinte anos, pelo que houve tempo suficiente para preparar as respostas sociais adequadas e «defender os que foram despedidos» que parece ser a interpretação minimalista que o primeiro-ministro agora faz da sua recente intervenção na campanha local.

O chefe do Governo (nesta qualidade) acabou por anular a campanha autárquica, primeiro com a utilização obsessiva da ‘bazuca’, colocada mais ao serviço do poder instalado e menos ao serviço do interesse geral e agora com a ameaça pouco subtil de que quem estiver desalinhado com o executivo, estará sujeito a represálias. E este recado não foi só para a Galp, pois, na verdade, visou toda a sociedade civil com a comunicação social incluída.

Os resultados eleitorais imediatos até poderão ser muito favoráveis, mas este estilo de fazer política causará danos irreversíveis no futuro e não é compatível com o ideário do ‘partido das liberdades’ que Mário Soares fundou.

No fim o espaço que restou para os verdadeiros protagonistas (os candidatos) não foi muito e interessante e organizou-se, quase exclusivamente à volta de três eixos: mobilidade (o tema da moda), habitação (o tema dos anos setenta e oitenta do século XX que, afinal, não está resolvido) e mudança (prometida por quase todos, mesmo pelos que, desde há muitos anos, têm responsabilidade no poder local). Pouco, muito pouco.

O Presidente Jorge Sampaio usava o conceito de ‘magistratura do estímulo’ em contraponto à desgastado fórmula da ‘magistratura da influência’ com a esperança de motivar o Governo, a Oposição e, em especial, os cidadãos a construírem um país melhor.

Desrespeitar este imperativo moral e histórico é continuar Sempre em Festa, com campanhas alegres mas sem utilidade, até ao momento em que faltem os recursos e já não haja capacidade para lançar um simples foguete final.