“As coisas não se fazem em alternativa, têm de se fazer em conjunto”

A Fundação Champalimaud abre guerra ao cancro do pâncreas com a inauguração, na próxima segunda-feira, do maior centro de investigação clínica privado do país. O oncologista à frente do projeto fala do simbolismo do novo edifício e de como querem descobrir novas pistas de tratamento, com a ajuda dos doentes e dos sobreviventes.

O que se sente em vésperas de inaugurar um centro onde se sabe que vão passar muitos casos de sofrimento e ao mesmo tempo se espera abrir um novo capítulo no combate ao cancro do pâncreas?

Primeiro entusiasmo, esperança e depois um sentido de responsabilidade. O cancro do pâncreas é um tumor que está a aumentar em todo o mundo e, dos que têm maior impacto, é o mais letal, infelizmente a sobrevida global aos cinco anos (após o diagnóstico) é inferior a 10%.

Quando por exemplo no cancro da mama hoje é de 80%, 90%.

Exatamente. E isto transforma-o num problema muito sério de saúde pública para os próximos anos. Atualmente é a quarta causa de morte por cancro na Europa e nos EUA, a caminho de ser a terceira e dentro de dez, 15 anos, será muito provavelmente a segunda causa de morte logo a seguir ao cancro do pulmão.

Porque noutros cancros tem havido avanços e ao mesmo tempo porque a incidência, como diz, está a aumentar. Estima-se que os novos casos possam aumentar 70% nos próximos anos.

E temos duas dificuldades particulares: por um lado, a resistência aos vários tratamentos e, por outro, ser diagnosticado habitualmente numa fase muito avançada. Mesmo quando o tumor é muito pequeno, tem uma capacidade de formar metástases muito rapidamente e isso faz com que a maior parte dos doentes, mais de metade, sejam diagnosticados já com cancro avançado, o que limita as perspetivas de cura ou de controlo do tumor a longo prazo. 

Não há avanços?

As coisas têm avançado nos casos em que a doença é detetada numa fase inicial. A conjugação da quimioterapia com uma cirurgia muito fina consegue que, nessas fases iniciais, 40% dos doentes consiga sobreviver aos cinco anos, é um salto muito significativo. Mas este é um ganho numa fase inicial da doença e ainda são poucos os doentes que conseguem ser diagnosticados nesta fase. Para todos os outros, quando as metáteses infelizmente já existem, a resistência do tumor do pâncreas aos vários medicamentos que hoje existem, quer de quimioterapia quer de imunoterapia, é muito grande.

Há explicações para essa maior resistência?

Acontece na generalidade dos tumores mas mais no pâncreas. Estão descritos muitos mecanismos mas pretendemos fazer um trabalho centrado nos doentes, nas células do tumor e no que está à volta das células do tumor, nas células de defesa, e tentar perceber porque é que esta resistência existe de uma forma mais profunda. No fundo é perceber os mecanismos que fazem com que o cancro escape aos tratamentos ou porque é que às vezes responde muito bem aos tratamentos e depois evolui, as células transformam-se. Como acontece com todos os seres vivos, com os vírus, há uma evolução, há novas variantes, e no cancro essa evolução faz com que as células que sobrevivem sejam mais resistentes.

Como se costuma dizer, as células imortais do cancro, que se não forem travadas continuam a multiplicar-se.

Sim e modificando-se permanentemente. Podemos desenhar um tratamento para um tumor e esse tumor pode ser diferente ao fim de alguns meses e é isso que temos de encarar mais de frente, fazendo os investimentos necessários para o compreender melhor. O cancro do pâncreas, apesar do impacto que tem na saúde pública, tem recebido, nos últimos 10, 20 anos, 2% a 3% do investimento em investigação nesta área.

Não sendo o cancro com maior incidência – representa 3% dos casos de cancro – tem sido negligenciado pela indústria farmacêutica por não ser aquele em que há mais retorno do investimento?

E tem sido de alguma maneira não só negligenciado pela indústria farmacêutica mas também pela sociedade em geral. A perceção que temos do impacto do cancro da mama ou do cancro do pulmão felizmente é grande. O cancro do pâncreas, apesar de ter estes desafios, nunca foi considerado como um cancro onde o investimento se devesse fazer.

Porquê?

Por um lado porque há muito poucos doentes que são verdadeiros sobreviventes e muitos destes movimentos dependem dos próprios doentes que sobrevivem, que são os motores que fazem o lóbi para que alguma coisa mude. Por outro lado, dos próprios médicos e cientistas nunca houve uma verdadeira dedicação a este problema de forma multidisciplinar e consequente, que é o que este novo edifício pretende simbolizar.

Em 2010 quando abriu o centro de investigação da Fundação puseram muito a tónica nessa multidisciplinaridade. A segmentação, ou as quintas na academia e na medicina, foram barrando o progresso?

As coisas têm mudado muito e os centros de investigação evoluíram em Portugal e nos outros países mas não pode haver barreiras. Na Fundação temos pessoas de todo o mundo e isso está a acontecer também na génese das equipas que vão trabalhar neste novo edifício. Vamos ter médicos e investigadores de vários países e muitos já cá estão.

Quando começaram a trabalhar?

Há três, quatro anos. Lançar um projeto assim significa formar médicos, cirurgiões, com equipas especializadas nos centros mais avançados em pâncreas em todo o mundo e também preparar os laboratórios que se vão dedicar a formas muito avançadas de imunoterapia. Hoje a imunoterapia é uma esperança para o tratamento de vários tipos de cancros. Infelizmente ainda não consegue tratar a generalidade dos cancros e no caso do pâncreas apenas 1% a 2% dos doentes respondem aos tratamentos disponíveis nesta área mas a imunoterapia está na sua infância e estamos no início destes medicamentos que estimulam as células do doente a responder mais ativamente ao tumor.

Em vez do clássico mas ainda atual paradigma de quimioterapia, que elimina as células malignas mas também as boas, levar o organismo a melhorar as suas defesas.

Sim, é um princípio com mais de 100 anos, mas a forma como nos últimos anos tem sido possível tornar a imunoterapia uma realidade constitui de facto uma mudança de paradigma no tratamento de cancro. Isso não significa que a quimioterapia vá desaparecer, o natural é que se utilize os medicamentos de quimioterapia em combinação com cirurgia, radioterapia e imunoterapia.

Para a maioria dos cancros não vai haver um ‘comprimido mágico’? 

Provavelmente não. Hoje em dia a imunoterapia está a caminhar para outros tipos de tratamentos que já são usados em Portugal para certos tipos de tumores do sangue, como linfomas e leucemias, que são aquilo a que chamamos a imunoterapia celular. Já não é só estimular as células com medicamentos, é usar as próprias células de forma inteligente para tentar destruir as células tumorais. Foi a linha de investigação com as células dendríticas e com as células CAR-T, que são linfócitos T que são dirigidos para certos tipos de tumor. E a nossa expectativa é que esta abordagem possa estender-se a outros tipos de tumores e ao cancro do pâncreas, mas para isso acontecer vai ser necessário uma grande evolução do conhecimento científico e ensaios clínicos, que são um dos nossos objetivos estratégicos. Esperamos ter um papel no desenvolvimento de ensaios inovadores nesta área, em parceria com outras instituições. Este edifício não é um edifício isolado, queremos que seja um polo de investimento e desenvolvimento a fazer investigação transnacional. 

Em Portugal que parcerias vão ter?

Temos trabalhado com todos os hospitais portugueses, depois existem formas mais ou menos próximas quando há acordos que permitam que os doentes sejam tratados aqui. Não seremos os únicos a tratar o cancro do pâncreas mas esperamos poder ser um centro na fronteira do conhecimento desta área.

Ouvir isso não poderá gerar ansiedade no doente que é diagnosticado com cancro do pâncreas e não pode vir a este centro porque não tem acordo ou não tem dinheiro?

Estamos a falar de desenvolvimento do conhecimento que passa por ensaios clínicos. Muitos desses ensaios não têm resultados concretos infelizmente. Estamos longe de ter essa expectativa. Temos a expectativa de que ao fim de dois, três, quatro anos, possamos começar a ter resultados interessantes e que, daqui a mais algum tempo, possamos começar a ter contributos que possam fazer a diferença para os doentes. Além da investigação, somos um centro de tratamento. Já tratamos cancro do pâncreas e vamos continuar a tratar o melhor que soubermos, agora o que queremos fazer de forma consistente é um investimento na investigação. E os doentes vão ter um papel que não é passivo: estes tratamentos dependem das células que vamos estudar nas biopsias dos tumores que nos permitirem usar para investigação e células de defesa que vamos extrair do tumor com a ideia de as multiplicar, estimular e reinfundir nos doentes.

Quando esperam começar os primeiros ensaios clínicos?

Meados, fim de 2022. Será o começo. Vamos ter laboratórios para fazer a preparação das células de defesa, as tais células CAR-T, que atualmente são produzidas ainda em poucos laboratórios a nível mundial. Este trabalho de dirigir estas células para novos alvos tem de ser feito por centros de investigação. Há uma fase em que os laboratórios da indústria têm um papel importante, mas estamos a falar de uma fase prévia. Portanto temos de estar muito centrados neste objetivo e não criar a ilusão de que vamos ter um milagre e um novo tratamento amanhã. 

Que relação esperam ter com o SNS?

Tratamos aqui já muitos doentes com cancro do pâncreas. Esperamos que assim continue e com o avançar de tratamentos que surjam possam estar acessíveis a doentes de todos os sistemas. Quando estamos a falar de ensaios clínicos normalmente o doente não paga nada e abrindo ensaios clínicos nesta área em Portugal isso pode dar um benefício a qualquer doente independentemente do seu sistema de saúde. Há tratamentos avançados que fazemos que têm custos, mas os ensaios estarão abertos a qualquer pessoa do país e até de outros países.

Quanto podem custar hoje esses tratamentos mais avançados?

Há muitos tratamentos que não têm custos tão elevados assim. A cirurgia, a radioterapia e a quimioterapia têm custos semelhantes em qualquer hospital. Se tivermos de pensar em alguns tratamentos que ainda não estão tão acessíveis em Portugal, alguns tratamentos de imunoterapia ou vacinas anti-tumorais para as quais existem alguns protocolos em que doentes têm acesso no estrangeiro, têm um custo mais elevado mas não estamos a falar de custos como os das células CAR-T, da ordem de várias centenas de milhares de euros. As vacinas anti-tumorais podem ter custos de 10 mil, 20 mil, 30 mil euros que não são custos tão elevados como aquele com que a indústria farmacêutica está a comercializar a imunoterapia celular. O custo é um aspeto importante mas para os doentes que vierem a ser recrutados para os ensaios clínicos não é uma preocupação. A preocupação aí é a segurança e conseguir encontrar respostas. 

Fala-se muitas vezes no atraso no acesso a inovação em Portugal. No cancro do pâncreas existe atraso?

Não penso que haja um atraso global significativo, tomáramos nós. Infelizmente esse exemplo que estava a dar das vacinas anti-tumorais só é eficaz num número muito restrito de doentes. Não conseguimos dizer que há algum tipo de tratamento extraordinário a que cá as pessoas não tenham acesso, longe disso. O problema aqui é mesmo a necessidade de investir no desenvolvimento desta área e ter mais ou menos recursos é importante a esse nível, porque treinar equipas, ter laboratórios, termos um cirurgião que vai fazer um estágio durante seis meses num grande centro internacional ou um cirurgião que vem cá ajudar a avançar com uma técnica específica é um grande investimento. E daí a importância deste investimento e dos nossos doadores, a família Botton, que foram de uma generosidade que nos obriga a um enorme respeito.

Mauricio Botton Carasso e Charlotte Botton, da família que fundou à Danone, doaram 50 milhões de euros ao centro. Como surgiu esta ligação?

Foi através dos administradores e curadores da Fundação mas no fundo com esta ideia de que queriam deixar uma marca que fosse um desafio para o futuro. O cancro do pâncreas não tinha respostas e começa-se a perceber mais o impacto que tem na sociedade. Todos nós conhecemos hoje alguém que teve cancro do pâncreas e morreu com cancro do pâncreas.

Existe ainda muito estigma?

Existe mas menos do que quando comecei a tratar doentes há 30 anos. Nessa altura a própria palavra era difícil de pronunciar. O doente respirava fundo, havia uma expressão.

Muitas vezes nem a palavra cancro era dita pelos médicos.

E continua a ser filtrada na sociedade. Mas ao mesmo tempo hoje também existem muitas histórias de sucesso, em que há uma redução da mortalidade, tumores em que a maior parte dos doentes, como dizíamos no início, consegue uma sobrevida maior. Agora sabemos que em cancro do pâncreas não é tanto assim, havendo também grandes sobreviventes.

Nesses casos, pesa ainda mais a sorte?

É sempre fruto de um esforço. A sorte pode ser a biologia da pessoa, a biologia do tumor que naquele doente pode ter sido mais favorável, a doença ter sido diagnosticada numa fase mais inicial, ter sido possível fazer um tratamento combinado e multidisciplinar e depois a sorte, sim, porque mesmo quando um doente é operado e corre tudo bem há o risco de a doença reaparecer e a probabilidade de ficar curado ainda é tão grande como noutros cancros. O risco é maior. E é por isso que é desafiante. Temos de ter noção de que não podemos criar uma esperança vã, de dizer que vamos de repente encontrar respostas, mas acreditamos que com trabalho, investimento, seriedade vamos conseguir avançar.

Já tocava nesse ponto há pouco: abrindo portas, é natural que comecem a chegar pedidos. Preocupa-o essa gestão da esperança?

Temos de moderar um bocadinho a ideia de que abrir um edifício vai fazer com que de repente tudo mude. A realidade ainda é muito dura. Vamos ter muitos dos nossos doentes com cancro do pâncreas, como com outros cancros, a morrer. Isso vai acontecer e mesmo daqui a 10, 20 anos, infelizmente, ainda vai haver muita gente a morrer com cancro. Podemos ter diagnósticos mais precoces, reduzir a mortalidade, mas a epidemiologia do cancro faz com que a doença, até pelo envelhecimento, continue a aumentar. Estamos a usar o cancro do pâncreas como um símbolo de um inimigo que vai para além do cancro do pâncreas e esperamos que alguns dos resultados que viermos a ter aqui possam ter impacto noutros tumores. O conhecimento não é fechado. Agora, às vezes, é preciso reunir equipas, criar sinergias de uma forma dirigida para avançar.

Pode dar um exemplo? 

Precisamos de estudar melhor os doentes que sobrevivem muito mais tempo do que era esperado. São doentes mistério. Se temos um doente hoje com metástases do cancro do pâncreas e que sobrevive e que consegue ter uma resposta completa mesmo com esse quadro inicial, pode haver razões que conhecemos parcialmente mas desconhecemos ainda de forma aprofundada o porquê.

Tem algum caso desses?

Temos todos. Hoje vi um desses doentes, diagnosticado há oito anos. Esta ideia de estudar os grandes sobreviventes está a ser encarada como um caminho em todo o mundo e não é os grandes sobreviventes em que se esperava essa sobrevivência, é aqueles em que a sobrevivência não era esperada. Uma das preocupações é que se tem estudado sobretudo o tumor do doente mas não tanto como é que as células de defesa do doente reagiram contra o tumor. E da mesma maneira que hoje estamos a apostar muito na imunoterapia como tratamento, temos de tentar perceber porque é que estes doentes têm mecanismos imunológicos nas suas células de defesa que fazem com que as células do tumor, mesmo em fase avançada, não se multipliquem. Vamos ter programas dedicados a subtipos de doentes, doentes com evoluções difíceis de compreender, os tais doentes a que chamo doentes mistério e a ideia será ao mesmo tempo tentar que todos os doentes sejam estudados de uma forma detalhada nas características das células do tumor e das suas células de defesa.

Imaginava estar à frente de um centro assim há 20 anos?

Era difícil de imaginar e esperamos que venha a haver muitos mais como hoje já existem centros dedicados ao tratamento do cancro do pâncreas no mundo e também em Portugal. Aqui tivemos o cuidado de desenhar um edifício a pensar no tratamento do cancro do pâncreas e no futuro. A arquitetura do edifício tem áreas em que os blocos operatórios e os laboratórios que vão receber as células de defesa quando o tumor é operado são salas contíguas, o que permite que essas células vivas sejam imediatamente isoladas, armazenadas e multiplicadas nas condições ideais. Construir um edifício em que a própria arquitetura está ao serviço de uma ideia de investigação e de tratamento é que torna este edifício único, não é a parede, é o que significa em termos de conceito.

Fez muitas exigências?

Nunca é trabalho de uma pessoa só. Comungámos desde o início deste princípio de que tínhamos de juntar cientistas e médicos e tentar que os médicos sejam cientistas e os cientistas sejam médicos. Sabemos que existem culturas e conhecimentos diferentes mas queríamos que essa proximidade fosse real. Essa é a alma do edifício e foi a nossa maior exigência. Isso implica trabalhar diariamente com uma cultura própria, que resulta de ter pessoas de diferentes áreas, de diferentes nacionalidades. E é essa fusão que queremos que este edifício simbolize. E além disso é importante o lado humano: os doentes que estão fragilizados precisam de estar num ambiente que seja o mais protetor possível e que tenha este sinal de esperança. As paredes de vidro vão permitir que possam ver os laboratórios de investigação. Claro que é preciso que a investigação depois tenha impactos reais, mas é preciso, antes disso, criar condições para que possa acontecer.

Trabalhou no SNS até vir para a Fundação Champalimaud em 2014. Podia haver espaço para mais investigação nos hospitais públicos?

Já há muita investigação.

Muitas vezes o que ouvimos é que os recursos são poucos e não há tempo.

Os recursos são sempre poucos e apesar deste investimento nós também não temos os recursos todos. Existem países com muito mais recursos. Por isso temos de usar recursos de uma forma inteligente e, sobretudo, usá-los em parceria. Se trabalharmos aqui sozinhos com as condições que temos hoje não vamos chegar muito longe. O dinheiro tem de ser sempre usado de uma forma inteligente, se não é pouco.

Têm muitos médicos a vir do SNS?

A maior parte dos médicos que trabalha aqui teve formação em hospitais públicos, temos médicos e investigadores de outros países, como temos médicos nossos que vão para outros centros. Isto é um processo que acontece em todo o mundo, o anormal é não acontecer.

Não diaboliza essa circulação? Fala-se muitas vezes da sangria do SNS para o setor privado e estrangeiro porque as pessoas estão desmotivadas.

É muito importante naturalmente que haja investimento mas temos de ser realistas em relação às dificuldades económicas que o país tem e portanto não podemos ter condições ideais. Acredito que é preciso um investimento muito maior nos hospitais públicos agora as coisas não se fazem em alternativa, têm de se fazer em conjunto e todos beneficiamos se houver um investimento. Esta ideia da oposição permanente entre locais…

Entre público e privado?

Sim. É uma ideia que compreendo mas que dentro de alguns anos vai fazer muito pouco sentido.

Porquê? Pelo peso do envelhecimento, uma Medicina mais tecnológica e mais cara?

Estou convencido que, como acontece em muitos países, as coisas se vão esbater muito mais sociologicamente, tecnicamente, tecnologicamente. Penso que daqui a alguns anos a mobilidade entre os dois setores vai existir. É evidente que os hospitais privados começaram a desenvolver-se há muito menos tempo.

E em áreas menos complexas, ficando o SNS com a fatia mais pesada dos tratamentos mais complexos e onerosos.

Nós aqui não somos propriamente um hospital privado no sentido clássico do termo. Não temos acionistas. Não estamos aqui a tentar fazer dinheiro, o que é perfeitamente lícito, mas o objetivo é termos um círculo reprodutor do investimento que fazemos. O dinheiro pode ser cego, mas os investimentos não podem ser e temos de encarar isto de uma forma dinâmica e não com tabiques. 

De que tem mais saudades no SNS?

Das pessoas, das equipas. Aqui tenho um ambiente que não tem a ver com o vulgar hospital privado, trabalhamos exatamente com os modelos de qualidade que via no setor público, com investimento nas reuniões multidisciplinares, que não tem a ver só com ver o doente, operar. Temos muito doentes da ADSE, o que faz com consiga sentir aquilo que são as dificuldades da população. Mesmo pessoas com seguro não são ricas e os co-pagamentos dos seguros põem problemas sociais que sentimos aqui.

Tem havido preocupação com os casos de doentes que esgotam plafonds e têm de ir a meio do tratamento para o SNS.

Somos muito cautelosos em dar as perspetivas aos doentes. Evidente que há surpresas, uma complicação numa operação com um internamento muito complicado, mas da minha experiência tem sido muito raro. E temos muitos doentes que vêm aqui para uma segunda opinião, doentes que não tratamos mas que ajudamos no diagnóstico ou nas decisões, muitas vezes concordando com tudo o que está a ser feito mas dando esse apoio complementar.

O que o levou para esta área? 

Desde muito cedo quando acabei o curso de Medicina que queria fazer oncologia. Acabo o curso nos finais dos anos 70 e nessa altura não havia ainda a especialidade. Havia centros de tratamento, os institutos de oncologia, cirurgiões especializados, radioterapia, mas esta área da oncologia médica, da quimioterapia, da imunoterapia, estava no seu início. Não sei dizer porquê, mas senti que era um grande desafio porque não estávamos a tratar uma doença mas muitas doenças.

Nunca acreditou na ideia de uma cura universal para o cancro?

Não, a variedade era enorme e já se adivinhava, pelo avanço da genética molecular e da biologia, que haveria uma explosão de conhecimento. No fundo era um sentimento semelhante ao que tenho hoje: era e é apostar num problema muito difícil para o qual está a haver avanços extraordinários em termos científicos e que é preciso transformar em qualquer coisa de mais concreto para o prognóstico dos doentes.

Tem doentes na cabeça agora que vão dar este passo?

Sobretudo às vezes penso em doentes em que houve uma mudança no paradigma do tratamento e se tivesse esses doentes hoje podia-os ter curado ou tratado de forma diferente. Alguns doentes tenho a fotografia na minha cabeça. Às vezes mudou poucos anos depois e teria feito uma grande diferença. E esse é o nosso desafio.

Daqui a dez anos o que gostava de poder anunciar?

Que muito daquilo que eu hoje sei, ou penso que sei, era mentira. Quanto mais puder dizer que aquilo que hoje estou a dizer não faz sentido mais importantes serão os avanços. E é preciso pensar que a saúde e o combate ao cancro depende muito da evolução da sociedade, não é só da medicina. As mudanças de prevenção podem mudar muita coisa e esse é um trabalho que se faz agora para ter efeitos daqui a dezenas de anos.