Canábis para fins recreativos: mais um tema fraturante

No confronto com a Europa, pode dizer-se que Portugal está numa posição favorável, apesar do crescimento do consumo de canábis. Porquê então esta medida completamente ao arrepio, abrindo as portas ao alargamento do consumo, com especial risco para jovens adultos? 

Por António Lourenço Martins, Juiz Conselheiro do STJ Jubilado, ex-presidente do OICE (Órgão Internacional de Controlo 
de Estupefacientes)

Insistência

1. Em agendamento potestativo de 9.06.21, o Bloco de Esquerda (BE) insiste na legalização do consumo de canábis para fins recreativos. Rejeitada a ideia por duas vezes, em 2015 e 2018, dois anos decorridos, vem de novo, agora com a Iniciativa Liberal (IL), embora esta com algumas razões diferentes.

Saliente-se que, entretanto, foi aprovada uma lei permitindo utilização de medicamentos, preparações e substâncias à base da planta da canábis para fins medicinais, já regulamentada, o que reúne consenso alargado, pois o aproveitamento de uma qualquer droga das incluídas nas tabelas das NU para fins medicinais não oferece qualquer reserva, desde que demonstrada a sua eficácia em termos médicos.

Já se suspeitava, porém, que esta aprovação podia abrir caminho ao que agora se propõe, como prevíamos em artigo de 10.02.2018, neste semanário, de acordo aliás com o que vem sucedendo nos EUA – primeiro descriminalizar, depois ‘medicalizar’ e finalmente legalizar. 

Os projetos

2. Numa breve passagem em revista pelos dois projetos verifica-se que ambos se propõem legalizar a canábis para uso pessoal ou recreativo, sem prescrição médica, afastando a ilicitude criminal ou contraordenacional. 

O cultivo, fabrico, comércio por grosso, importação e exportação da planta com aquelas finalidades passariam a poder ser autorizados pelo Estado, e também o comércio por retalho para venda ao consumidor final, salvo a menores de 18 anos, podendo haver venda online.

Além disso, seria permitido o cultivo para uso pessoal até um limite máximo de 5 plantas por habitação própria e permanente (parece que sem qualquer limite de idade). O Governo fixaria um preço máximo, tendo em conta o preço médio praticado no mercado ilegal.

Haveria uma tributação própria, cujo produto seria consignado em  50% à «promoção da redução do consumo de substâncias psicoativas, dos comportamentos aditivos e à diminuição das dependências». Louva-se nos bons exemplos dos EUA, Uruguai e Canadá. 

O projeto da IL reproduz várias disposições do BE, podendo afirmar-se que se distingue no enfoque, aqui na liberdade pessoal, em analogia com o tabaco e o álcool e tendo como objetivo criar um mercado livre, aberto e concorrencial, de bens e serviços baseados na canábis não-medicinal, com um enquadramento legal favorável ao empreendedorismo económico e social, à inovação comercial e comunitária, aos pequenos negócios familiares e comunitários, grandes interesses corporativos, enfim, diríamos nós, uma economia da droga pujante. «A cultura da canábis é uma cultura de liberdade» – diz-se. 

Após discussão na generalidade os projetos baixaram à Comissão de Saúde, sem votação, por 60 dias, agora prorrogados.

Discussão na AR

3. Numa brevíssima síntese do que foi dito na AR, extrairíamos os seguintes tópicos: 

– Uma deputada do PSD chamou a atenção para o agravamento do consumo de canábis,  apontando danos terríveis na saúde que podem advir do seu consumo mas dá abertura para a legalização, enquanto outro de formação médica, mais moderadamente, não rejeita a discussão da matéria embora reitere que «o consumo não terapêutico de canábis é negativo para a saúde humana»;

– O CDS enfatiza os riscos vários da  utilização da canábis para a saúde, a curto e longo prazo, bem como dos  casos  de  jovens  e adultos que dão entrada nas urgências dos hospitais com episódios psicóticos, alguns graves, decorrentes do consumo de canábis, alertando para as consequências da banalização do consumo de droga, opondo-se aos projetos;

– Vozes conhecedoras do PS apontam para «maior aprofundamento e discussão», mais rigor científico e precaução pois é a droga mais consumida e que leva a uma maior procura de tratamento por parte dos consumidores, bem como para o conjunto vasto de efeitos maléficos para a saúde, esclarecendo que «a recomendação da Organização Mundial da Saúde, para transferir a canábis e a resina de canábis da Lista IV para a Lista I da CUE, deixa claro que o objetivo não é autorizar o seu consumo recreativo mas, sim, estimular o progresso do conhecimento coletivo da utilidade terapêutica da canábis e dos efeitos nocivos associados»; 

– O PCP não acompanha os projetos, continuando a salientar os dados oficiais preocupantes sobre a canábis como a substância mais consumida, aliado aos fortes indícios que demonstram que a canábis pode induzir sintomas psicóticos em pessoas com predisposição para desenvolver esquizofrenia ou outras perturbações comportamentais nos mais jovens, pelo que haverá outras formas de combater esta evolução negativa;

– todos reconhecem o aumento do consumo da canábis, e alguns verberam a falta de premência e oportunidade neste tipo de discussão.

Diria em resumo, ser indiscutível neste momento a alta probabilidade de agravamento do consumo e dos efeitos perniciosos da legalização, mas existe um fascínio de certos partidos pelo precipício…

A nossa opinião

4.1. Parece-nos flagrante a contradição: todos admitem – inclusive as 64 personalidades que fazem pressão pública sobre a AR – os riscos graves do consumo de canábis para a saúde, com o número cada vez maior  de utentes que iniciam o tratamento da canábis,  associado ao atual aumento do consumo que se verifica em Portugal e na Europa, em confronto com o sentido oposto dos projetos, o de colocar mais canábis ao dispor de todos. 

Por outro lado, lendo o Relatório do OEDT de 2021, sedeado em Portugal, constata-se que no plano das estimativas de prevalência do consumo quer de adultos ao longo da vida quer de jovens nos últimos 12 meses, Portugal situa-se abaixo da média europeia.

No confronto com a Europa, pode dizer-se que Portugal está numa posição favorável, apesar do crescimento do consumo de canábis. Porquê então esta medida completamente ao arrepio, abrindo as portas ao alargamento do consumo, com especial risco para jovens adultos? 

As convenções 

4.2. Recorde-se que Portugal ratificou as três convenções antidroga e que existe o Órgão Internacional de Controlo de Estupefacientes (OICE), como elemento de fiscalização e a Organização Mundial de Saúde como pilar científico, que funciona na catalogação das substâncias que devem ser incluídas nas tabelas.

No seu último Relatório (2020), como aliás no de 2018, aquele OICE percorre a situação de todos os países, nesta temática, e depois da longa descrição dos efeitos nocivos do uso da canábis para a saúde, afirma que as medidas de legalização do uso não médico de substâncias sob controlo, nomeadamente a canábis, são incompatíveis com as obrigações dos Estados Partes, em particular as estabelecidas no artigo 4, alínea c), da Convenção de 1961 emendada, convidando os Estados à sua observância.

Se as convenções, nesta parte, comportam um regime errado, não há que tentar alterá-las? Ou potenciar que os organismos de que se serve, como a OMS, sejam mais eficientes? Ou se de todo é impossível modificá-las e achamos que o devem ser, por que não denunciá-las? 

4.3.  A nosso ver, a postura da legalização transporta uma mensagem errada (do não risco) à sociedade, com abandono da desaprovação e apela à desresponsabilização das condutas sociais. Vai-se descobrindo que a canábis, tal como outras substâncias, tem propriedades benéficas e outras maléficas. Aproveitam-se as primeiras como medicamentos, o que já se fez. Porquê oferecer às pessoas os riscos e malefícios que comportam, a pretexto de que foi assim com o tabaco?

4.4. Suscita-se agora a apetência por um novo mercado, o mercado lícito das drogas, em que as empresas vão despertar para negócios de biliões, tais como as tabaqueiras. Mas esquecido lá no fundo, e mais uma vez, fica o consumidor, o dependente, o alvo útil. Daqui por uns anos sobrevirá o movimento inverso…talvez não, porque a nova indústria estará implantada.

Tudo em contrapé de instituições como a DGS, a Ordem dos Médicos e o próprio organismo de combate à droga, o SICAD. 

Para satisfazer as elites fraturantes, deixam-se de lado questões bem mais relevantes, por exemplo, uma revisão global de todas as leis da droga, o controlo dos novos diplomas sobre a droga para fins medicinais, para as quais poderiam ser canalizados os recursos pensantes da AR e do Governo.