Enrico Caruso. A morte entrou-lhe pela garganta

Aquele cujo nome se confundia com a voz, sofreu em palco, enquanto cantava uma ária de Elixir de Amor, de Donizetti, uma hemorragia bucal que o fez ter de sair de cena logo no primeiro acto. O Destino impunha a sua força. No dia 2 de Agosto de 1921, há pouco mais de cem anos,…

Em 1986, Lucio Dalla fez uma canção em sua homenagem que tanto LucianoPavarotti como Andrea Bocceli popularizaram universalmente nesse jeito próprio de quase fazerem, como glosava António Silva, n’O Pátio das Cantigas, da ópera música de operários. Caruso foi (e continua a ser) um sucesso que ultrapassou todas as fronteiras, mas nem todos sabem que tenta reproduzir, pungentemente, as últimas horas de Enrico Caruso, aquele que ainda é, para muitos, o melhor tenor de todos os tempos. «Guardò negli occhi la ragazza/quegli occhi verdi come il mare/Poi all’improvviso uscì una lacrima/ e lui credette di affogare» («Olhou através dos olhos de uma rapariga/Aqueles olhos verdes como o mar/E, depois, sem querer, caiu-lhe uma lágrima/e ele pensou que se afogava»).

Enrico passou os últimos dias da sua existência num sofrimento bruto. E tudo fez para morrer em Nápoles, a cidade em que nascera e que amava, com vista para a baía de Sorrento – que na língua napolitana ganha o tom mais musicado de Surriento. «Qui dove il mare luccica/E tira forte il vento/Sulla vecchia terrazza/Davanti al golfo di Surriento» (Aqui onde o mar brilha/E o vento sopra forte/Sobre um velho terraço/Frente ao golfo de Surriento»). No dia 2 de Agosto de 1921, fez há pouco cem anos, Enrico Caruso foi considerado morto. Eram 9h00 em ponto da manhã. Tinha apenas 48 anos. Dois dos mais prestigiados médicos italianos da época, os irmãos Bastianelli, seguiram de perto a sua degradação física impressionante e dolorosíssima. Foram eles que definiram o óbito: peritonite provocada por um abcesso subfrénico, isto é, uma acumulação crescente de líquidos infetados entre o diafragma, o fígado e o pâncreas, que foi reduzindo a sua capacidade de respirar e, subsequentemente, de produzir sons. Ninguém seria capaz de dizê-lo quando, uns meses antes, precisamente no Natal de 1920, os seus gritos lancinantes faziam estremecer as paredes do hotel de Nova Iorque onde estava instalado, pouco depois do episódio sucedido durante o primeiro acto do Elixir de Amor: as dores que sofria eram de tal forma excruciantes que foi tratado a doses cavalares de morfina e codeína. Nessa mesma altura foram-lhe diagnosticados uma pleurisia purulenta e um enfisema pulmonar. A questão que se colocava era: qual o momento em que Caruso fora sujeito a um impacto tão forte na zona entre o tórax e o abdómen que lhe provocara uma tão súbita destruição da estrutura física nunca até aí reveladora de quaisquer problemas? Foi o filho, Enrico Caruso Jr., que partiu à procura dos acontecimentos que conduziram à morte do pai. E encontrou uma cadeia de episódio que viriam a explicar o assunto.

Uma estranha cadeia de acontecimentos

«Vide le luci in mezzo al mare/Penso alle notti là in America/Ma eran solo le lampare/E la bianca scia di un’elica» («Vejo as luzes no meio do mar/Penso nas noites lá na América/Mas eram apenas as lâmpadas/E o rasto branco de uma hélice»). Enrico Caruso esteve em coma, mas mal recuperou a consciência, insistiu com a mulher, Dorothy, a necessidade de regressar a Itália. Ele sabia que voltava a Nápoles para morrer. Mas não é isso mesmo que diz o velho ditado napolitano? «Vedere Napoli e doppo morire!» Quem viu Nápoles viu a vida e a beleza do mundo.

Enrico Caruso Jr. ficou a saber, depois de muito perguntar, que durante os ensaios de Sansão e Dalila, ainda no início da sua digressão pelos Estados Unidos, uma das colunas do cenário havia caído com violência sobre as costas do pai, acertando-lhe do lado esquerdo, na zona do fígado. Uns dias mais tarde, quando se preparava para representar Os Palhaços, de Leoncavallo, no Metropolitan de Nova Iorque, o cantor foi acometido por uma constipação violenta acompanhada por febres altas e por dores agudas no peito. Do ponto de vista do médico que consultou, sofria de bronquite e devia entrar numa fase longa de repouso. Caruso não ficou convencido. Queria ouvir a opinião do seu esculápio pessoal, o dr. Phillip Harrowitz, o milagreiro que costumava libertá-lo das tremendas enxaquecas que sofria com regularidade. Horrowitz conseguiu incutir-lhe algum ânimo: na sua visão das coisas, Enrico estava apenas a ser vítima de uma neuralgia intercostal e considerou-o apto para subir aos palcos, precisamente aquilo que o seu paciente napolitano queria ouvir.

O público, esse implacável juiz, não quis nem saber do sacrifício extremo com que Enrico Caruso, assoberbado com dores a cada movimento e com a clareza da sua voz limitada por elas, prosseguiu nas suas atuações agendadas com tanta antecedência e não o envolveu no habitual carinho de ovações demoradas e de pé. No dia 11 de Dezembro, na Brooklyn Academy of Music, durante um exibição de Elixir de Amor, Enrico foi acometido por uma horrenda hemorragia da garganta. A cena não foi bonita e muito menos digna da grandeza do tenor: começou a vomitar sangue e teve de abandonar a performance logo no primeiro acto. Na verdade estava, isso sim, a caminhar para o últimos de todos os seus actos.

A sombra de Caruso

Teimoso, profissional intocável, Enrico não quis dar-se por vencido. Depois de uns dias de recuperação, surgiu de novo no Met para três sessões contínuas de A Judia, obra prima do compositor francês Jacques-François-Fromental-Élie Halévy, fazendo o papel de Eléazar. Era um homem abatido, aquele que cantou para uma plateia que se deixava fascinar pela simples menção do seu nome. Caruso, o Grande Caruso, o homem que somou 823 presenças no Met de Nova Iorque, uma das mais fascinantes personalidade de todos os tempos, símbolo da grandeza de um género musical soberbo, balouçava-se tristemente de um lado para o outro, procurando esconder as suas fraquezas, esforçando-se para não trazer a público o seu sofrimento, mas exibindo toda a sua debilidade através do instrumento que o fizera enorme: a voz. Quem assistiu às últimas aparições de Caruso no Metropolitan, não ficou com dúvidas que ele não estava em condições de cumprir os contratos apalavrados. Não era Enrico Caruso. Era um sombra de Enrico Caruso que nem sequer cantava como Caruso. Limitava-se à condição de homem vulgar no corpo de uma lenda.

O drama prolongou-se como se imitasse o papel de Mimí em La Bohème, de Puccini. No dia de Natal de 1920, os berros aflitivos de Caruso atravessavam paredes e angustiavam qualquer um que os ouvisse. Entrara num sofrimento atroz que já nem a morfina fazia aquietar. Foram vários os médicos chamados para darem as suas opiniões. Foram várias as opiniões dadas pelo médicos consultados. A realidade, essa, superava os diagnósticos: Caruso tornara-se, praticamente, um inválido. Todos os movimentos, por mais simples que fossem, provocavam-lhe dores lancinantes. A sua saúde deteriorava-se a uma velocidade tremenda e chegou a sofrer um ataque de coração que por pouco não o matou. Em seu redor, os mais íntimos não tinham dúvidas nem guardavam esperanças: Enrico Caruso caminhava a passos largos para a morte.

Já em Itália, Enrico foi sujeito a sete intervenções cirúrgicas com o objetivo de lhe retirar a maior quantidade de líquido possível que se tinha acumulado nos pulmões e na cavidade torácica. O Destino é amargo e cínico nas suas intervenções – esmagava o grande cantor exatamente pelo peito, de onde tinham brotado sons maravilhosos e inimitáveis. «È una catena ormai/Che scioglie o’ sangue dint’e vene» («É, agora, uma corrente/Que derrete o sangue dentro das veias»).

Pelo meio de todo o drama que envolveu a morte de Enrico Caruso, desenvolveram-se episódios surrealistas e injustificáveis. Como se essa tal corrente que derrete o sangue dentro das veias fosse com um rio desesperado por um mar de aniquilamento. Nos primeiros tempos de regresso a Itália, na fase de recuperação do ataque de coração, Dorothy, sua mulher, mostrava-se otimista na total remissão da doença que lhe destruíra o marido peça a peça. Em conversa com diversas pessoas da família, bem como com amigos, gostava de dizer que Nápoles fazia milagres à saúde de Enrico. Uma nova operação, desta vez mais complicada, para retirar algumas costelas de forma a libertar os pulmões de toda a pressão possível, pareceu arribar Caruso e devolveu-lhe alguma da alegria perdida. O Golfo de Surriento parecia-lhe azul como nunca e feria-lhe os olhos enquanto o fixava do alto da varanda do Hotel Vesúvio, onde se instalara.

«Un uomo abbraccia una ragazza/Dopo che aveva pianto/Poi si schiarisce la voce/E ricomincia il canto» («Um homem abraça uma rapariga/Depois de ter chorado/E em seguida aclara a voz/E recomeça a cantar»). Claro que Enrico Caruso não mais voltou a cantar. Numa dessas esquinas dos caminhos insondáveis do Deus dos cristãos, Enrico resolveu aconselhar-se com mais um médico, um antigo conhecimento familiar que deixara de praticar há vários anos. A visita foi fatal: o doutor fez-lhe um exame tão minucioso como se pretendia e não encontrou nada de novo. Mas, o problema mais grave é que o velho clínico tinha o consultório ao abandono e as condições de higiene que rodearam o seu exame a Enrico estavam longe, mas mesmo muito longe, de serem recomendáveis. Um novo surto infeccioso entrava no dia a dia de Caruso e isso era algo que o seu debilitadíssimo aparelho respiratório não estava preparado para suportar. A sua condição física caiu a pique no momento em que os irmãos Bastianelli entraram em funções ao seu redor. Estava, na opinião generalizada, nas mãos dos melhores dos melhores de Itália. Uma semana mais tarde, foi amputado do rim do lado esquerdo numa clínica romana.

A morfina passara a ser a sua melhor companheira. Não dispensava as suas doses diárias, muitas delas excessivas. Caruso não queria morrer mas não suportava o sofrimento. E assim, à custa do narcótico, ia sobrevivendo naquela espécie de limbo que não era morte nem vida, apenas uma sonolência contínua como se levitasse ligeiramente acima do chão que os simples mortais pisavam. Voltou para Nápoles e para o Hotel Vesúvio. Nápoles, sempre Nápoles. A Nápoles onde nascera no dia 25 de Fevereiro de 1873, na rua Santi Giovanni e Paolo n° 7. A Nápoles por cujas ruas estreitas se espalhou a história de que Marcellino e Anna Caruso teriam tido 21 filhos, 20 rapazes e uma rapariga, dos quais 18 morreram, história que, mais tarde, Dorothy ajudou a espalhar ao dizer publicamente que Enrico lhe confessara sobre a mãe: «Teve 21 filhos e só um não foi rapaz. Eu era o décimo oitavo. Gente a mais».

Se Marcellino foi mecânico e levou os filhos rapazes que sobraram para trabalharem com ele desde miúdos, avançando Enrico com o pequeno rebanho, Anna alimentou-lhe as ambições musicais, encorajando-o a tornar-se um cantor de rua, mais tarde contratado para atuar em bares e restaurantes antes de, com 22 anos, ter estagiado no Teatro Nuovo, já depois de ter sido, entretanto, apanhado pela farda e obrigado a cumprir o serviço militar. Agora, ao sentir que o resto da existência lhe escorria por entre os dedos como areia fina de uma ampulheta, Enrico tinha tempo para, nos momentos de lucidez, rememorar com emoção o esforço contínuo que tivera de fazer para atingir o topo da canção lírica.

No dia 2 de Agosto de 1921, o rei Victor Emmanuel III de Itália deu ordens para que se abrissem as portas das Basílica Real de São Francisco de Paula em Nápoles. Milhares e milhares de pessoas juntaram-se na aflição – lágrimas escorriam pelas caras constrangidas, mãos torciam lenços em gestos de desespero e inutilidade, o corpo de Enrico foi colocado num sarcófago de vidro para que todos os napolitanos pudessem vê-lo ainda mais uma vez antes de seguir para o cemitério de Del Pianto. No dia 2 de Agosto de 1921, toda a Itália chorou, não apenas Nápoles, e o Golfo de Surriento ficou cinzento como se espelhasse o fumo do Vesúvio. «Sentì il dolore nella musica/Si alzò dal pianoforte/Ma quando vide la luna uscire da una nuvola/Gli sembrò più dolce anche la morte» (Sentiu a dor da música/E levantou-se do piano/Mas quando viu a lua sair de trás de uma nuvem/Pareceu-lhe que a morte seria ainda mais doce»).

A estranha e macabra morte de Enrico Caruso serviu para dar uma aura de mistério àquele que muitos confundiam com a própria ópera. Muitos outros grandes nomes atingiram uma plenitude como a dele. Mas Caruso tinha em si algo de mágico, daquela magia que não se explica, nem mesmo quando a música é tão aguçada que nos faz chorar. Lucio Dalla soube escrevê-lo: «Quegli occhi verdi come il mare/Poi all’improvviso uscì una lacrima/E credette di affogare/Ma sì, è la vita che finisce/Ma lui non ci pensò poi tanto/Anzi si sentiva già felice/E ricominciò il suo canto»(«Aqueles olhos verdes como o mar/de repente, soltou-se uma lágrima/Pensou que se afogava/Mas, sim, é a vida que se acaba/Mas ele não pensou muito nisso/Afinal já voltava a ser feliz/E recomeçou a cantar»). A voz de Enrico Caruso já se calou há mais de cem anos. Mas Caruso era Caruso e era Caruso e era Caruso. E para sempre será o grande Enrico Caruso cujo canto fazia tremer as estrelas da Baía de Surriento…