Quase 300 mil vão ter de começar hoje a pagar os créditos

“Há muitos consumidores que nem sequer receberam propostas porque bancos viram que não tinham capacidades financeiras para manter o crédito”, diz Deco.

Até ao final de agosto, os bancos tinham cerca de 36,3 milhões de euros em empréstimos ao abrigo da moratória pública, ainda assim, um número ligeiramente abaixo do observado no mês anterior, sendo que mais de 289 mil famílias e empresas beneficiavam desta medida de proteção do crédito que terminou esta quinta-feira.

Deste total, 14,1 mil milhões correspondem a empréstimos a particulares – incluindo famílias, IPSS e empresários em nome individual, dos quais 12,7 mil milhões de euros são créditos da casa cuja prestação de juros e ou capital está suspensa, segundo os dados divulgados esta quinta-feira pelo Banco de Portugal – enquanto os restantes 21,5 mil milhões de euros dizem respeito a crédito de empresas, dos quais 8,3 mil milhões são dos setores mais vulneráveis — alojamento e restaurantes, comércio e transportes — que vão poder beneficiar das garantias públicas concedidas pelo Estado nas reestruturações dos contratos após o fim das moratórias.

Natália Nunes da Deco garante ao i que “nem todos os consumidores com dificuldades financeiras receberam propostas por parte da banca, uma vez que, o sistema financeiro não está obrigado a fazer uma proposta de regularização de pagamentos, quando chega à conclusão que a família não tem capacidade financeira para manter o crédito”. Já no final de agosto, tinha admitido ao nosso jornal que a bomba-relógio seria em janeiro quando terminar o período de 90 dias, altura em que não pode haver resolução de contratos, nem o banco pode avançar para a via judicial. Mas até lá, a responsável acredita que haja famílias que vão começar a vender os seus imóveis.

No entanto, garante que durante o mês de setembro foram contactados por vários consumidores que receberam propostas por parte dos bancos, a quem lhes foi apresentado algumas propostas de reestruturação de crédito com vista a baixar a sua prestação. “Mas as propostas vão quase todas no mesmo sentido: períodos de carência que variam entre os seis e os 12 meses”, acrescentando que “é um bocadinho o arrastar da situação, independentemente da causa das dificuldades. Há famílias, cujas dificuldades financeiras vão ser tão grandes que não veem a perspetiva de alterar sua situação financeira a curto prazo e vão acabar por ver que a melhor opção é vender as suas casas, a curto prazo”, diz ao i Natália Nunes.

Também os analistas contactados pelo i admitem que as perspetivas não são animadoras. Nuno Mello, da XTB admite que, na prática, muitas das famílias abrangidas pelas moratórias não tinham realmente necessidade de as pedir e começarão a pagar os empréstimos sem problemas. No entanto, acredita que nem todos estão nesta situação: “Mas alguns milhares de famílias não conseguirão cumprir com as suas obrigações e, passados os 90 dias, ou seja, no início de 2022, os bancos poderão avançar com processos judiciais e execução das hipotecas”, acrescentando que isso “provocará uma crise social, com muitas famílias a perderem as suas casas e recorrerem a processos de insolvência, e terá um impacto tremendo no mercado imobiliário que tem sido, nos últimos anos, um dos principais motores do crescimento da economia portuguesa”.

A situação também não é mais fácil para as empresas. De acordo com o analista, com o fim da moratória pública, no final do mês de setembro, existem várias empresas (sobretudo as dos setores mais afetados pela pandemia, como a restauração, alojamento e comércio) que enfrentam ainda muitas dificuldades e famílias que viram o seu rendimento diminuir ou que se encontram mesmo em situação de desemprego. E recorda: “Portugal é um dos países em que o peso dos créditos em moratória em percentagem do total da carteira de crédito é maior. Apesar dos banqueiros portugueses não parecerem muito preocupados com o impacto do fim das moratórias, até porque têm vindo a preparar-se para o impacto da pandemia ao constituir imparidades para responder a potenciais perdas futuras, o que aliás tem pressionado os resultados das instituições. Resta saber se as imparidades constituídas serão suficientes. A minha opinião é de que não são e que o rácio de crédito em incumprimento sobre o total da carteira irá aumentar significativamente”.

A própria Associação Portuguesa de Bancos (APB)_admite ao i que “o risco de maiores dificuldades prende-se com a situação das empresas viáveis dos setores mais, ou mais demoradamente, atingidos pela pandemia e que, por terem sido mais afetadas, possam ainda não ter atingido totalmente as condições de normalização do serviço das suas dívidas. Prevenir tal risco é tarefa do Governo que já anunciou medidas de apoio para esse efeito e que, tanto quanto sabemos, ainda não estarão totalmente fechadas. O sucesso ou insucesso dessa prevenção, dependerá, pois, da eficácia prática dessas medidas”, acrescentando que “quanto maior for a eficácia, mais suave será o processo de transição, e quanto menor for, maior será o risco de situações problemáticas, com consequente impacto adverso no tecido social e económico”.

Mais otimista está Paulo Rosa, economista sénior do Banco Carregosa, ao garantir que “o fim das moratórias teria que acontecer um dia. As autoridades competentes estão a trabalhar nessa transição e no pós-moratórias”, referindo que “os bancos devem fazer uma avaliação criteriosa da situação dos clientes que beneficiam das moratórias. Se existir risco de incumprimento e se o cliente tiver capacidade financeira, os bancos devem apresentar propostas alternativas e adequadas à situação financeira do cliente em causa, mas sem agravamento de juro. Além disso, é provável que haja prorrogações do prazo em casos excecionais e mais delicados de clientes que ainda enfrentem dificuldades.

 

Qual o impacto real?

O analista da XTB reconhece que é difícil contabilizar ao certo qual será o impacto, referindo que “o que sabemos é que em Portugal os créditos em moratória representam, em média, mais de 10% do total da carteira de crédito, que o Governo referiu ser um total de 36,8 mil milhões de euros”.

E lembra que, na Europa, cerca de 5% dos créditos sob moratória não conseguiram retomar o pagamento; se assumirmos uma taxa de incumprimento igual (estimativa conservadora) estaríamos a falar de 1,84 mil milhões de euros, o equivalente a quase 1% do PIB português em 2020.

 

Troika parte II?

Quando questionados se podemos assistir à mesma situação vivida no tempo da troika no mercado imobiliário, a opinião é unânime junto dos analistas contactados pelo i: o nível de desemprego atual é mais baixo do que nessa altura e o crescimento económico é mais robusto.

Nuno Mello lembra que, a pensar nisso, o Governo decidiu atualizar as regras do Plano de Ação para o Risco de Incumprimento (PARI) e do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), dois programas criados no tempo da troika em 2012. Mesmo com estes dois programas, caso o cliente não aceite as soluções propostas pelo banco, o banco poderá avançar para a via judicial.

“Além destas medidas parece-me pertinente a introdução de medidas adicionais de modo a permitir que as famílias não entrassem em situação de incumprimento, nem a colocar o ónus do encargo do lado das instituições de crédito”. E vai mais longe: “O risco de maiores dificuldades prende-se com a situação das empresas viáveis dos setores mais, ou mais demoradamente, atingidos pela pandemia e que, por terem sido mais afetadas, possam ainda não ter atingido totalmente as condições de normalização do serviço das suas dívidas. Prevenir tal risco é tarefa do Governo que já anunciou medidas de apoio para esse efeito e que, tanto quanto sabemos, ainda não estarão totalmente fechadas. O sucesso ou insucesso dessa prevenção, dependerá, pois, da eficácia da prática dessas medidas. Quanto maior for a eficácia, mais suave será o processo de transição, e quanto menor for, maior será o risco de situações problemáticas, com consequente impacto adverso no tecido social e económico”,

Uma opinião partilhada por Paulo Rosa ao lembrar que os setores mais afetados pela pandemia foram aqueles cuja atividade depende da proximidade social, nomeadamente o turismo. “A vacinação da população permite que este setor regresse em força nos próximos tempos e recupere gradualmente as perdas do último ano e meio”.

Posições que vão ao encontro da posição defendida pelo Banco de Portugal. Ao i, o regulador lembra que “tem vindo a acompanhar a implementação das moratórias de crédito por parte das instituições e a avaliar os procedimentos implementados para prevenir a entrada dos clientes bancários em incumprimento após o termo daquelas medidas de apoio, nomeadamente através da análise aos reportes regulares de informação sobre os contratos de crédito abrangidos pela moratória pública e pelas moratórias privadas e da fiscalização do cumprimento do regime de moratória pública”, referindo ainda que o Banco de Portugal “tem divulgado, de forma regular, informação sobre a implementação das moratórias de crédito”.

E dá como exemplo a legislação publicada em agosto, onde estabeleceu medidas para o acompanhamento dos clientes bancários com contratos de crédito abrangidos por moratórias. “Em particular, para os clientes bancários com contratos de crédito abrangidos pela moratória pública, as instituições estão obrigadas implementar o PARI – Plano de Ação para o Risco de Incumprimento, contactando os clientes e a avaliando a sua situação financeira, com a antecedência de 30 dias face ao termo daquela medida de apoio. Adicionalmente, nas situações em que se confirme que os clientes estão em risco de vir a incumprir as suas obrigações, e caso revelem capacidade financeira para o efeito, as instituições estão obrigadas a apresentar-lhes propostas (por exemplo, de renegociação do contrato de crédito ou de refinanciamento da dívida) adequadas às suas necessidades, com a antecedência de 15 dias relativamente ao termo da moratória. Estas novas regras visam também as situações em que os clientes não conseguem pagar as prestações do crédito após o termo da moratória. Designadamente, prevê-se que, nas situações em que os clientes bancários sejam integrados no PERSI – Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento – nos 90 dias após o termo da moratória, as instituições estão impedidas de acionar as garantias associadas ao empréstimo com fundamento na falta de colaboração do cliente ou na falta de capacidade financeira, enquanto se mantiver aquele procedimento”, refere.