Pessoal, sim, mas transmissível

António Costa – quando já era do seu conhecimento e do aparelho do partido que a vitória sorrira a Carlos Moedas, mas ainda se recontavam algumas mesas de voto – precipitou a sua reação pública para não ter de assumir a derrota de Fernando Medina em Lisboa e poder cantar a vitória do PS em…

As eleições autárquicas do passado domingo constituíram mais um extraordinário exemplo de que a democracia, mesmo quando dá evidentes sinais de desgaste ou até de enfermidade, continua a ser o menos mau de todos os regimes.

E que tem na sua essência uma enorme capacidade de regeneração e de construção de soluções e alternativas que nem os mais reputados teóricos da ciência política podem ter a presunção de infalivelmente antecipar.

O voto popular não tem mesmo dono. Usem-se as sondagens e estudos de opinião, as análises e teorias políticas, nada é tão certeiro como o voto popular no dia do escrutínio, no segredo protegido pelo biombo e apesar de todas as condicionantes e variáveis.

Há uma semana, ninguém arriscaria a previsão de que Fernando Medina perderia a presidência da Câmara de Lisboa para Carlos Moedas e que esse facto, por si só mas mais ainda conjugado com todos os outros menos imprevisíveis – como a conquista de mais capitais de distrito pelo PSD, com ganhos em Coimbra, Portalegre e Funchal e noutras câmaras de outra dimensão –, daria novo vigor ao líder de uma Oposição até aqui inexistente, Rui Rio, bem como ao seu parceiro de inúmeras coligações e não menos contestado no seu próprio partido, Francisco Rodrigues dos Santos, e retiraria argumentos a protagonistas que já conquistavam espaço mediático (como Paulo Rangel no PSD ou Nuno Melo no CDS), para além de colocar sob inesperada pressão, à esquerda, os inquestionáveis António Costa, Jerónimo de Sousa e Catarina Martins.

Se o PS, apesar de tudo, ganhou as eleições, PCP e BE sofreram pesadas derrotas. Como, aliás, e de forma muito pouco usual, Jerónimo de Sousa e Catarina Martins souberam reconhecer.

Por seu lado, António Costa – quando já era do seu conhecimento e do aparelho do partido que a vitória sorrira a Carlos Moedas, mas ainda se recontavam algumas mesas de voto – precipitou a sua reação pública para não ter de assumir a derrota de Fernando Medina em Lisboa e poder cantar a vitória do PS em número de Câmaras, de mandatos e de juntas de freguesia no território nacional.

O que só tornou mais meritório o discurso de derrota de Fernando Medina, que merece elogio tanto maior quanto é facto não ter sido previamente pensado nem trabalhado, porque o resultado colheu totalmente de surpresa o presidente recandidato, aliás, indisfarçavelmente abalado.

João Soares, comentador convidado para estar no estúdio de uma das televisões na noite eleitoral, foi dos primeiros a lembrar que Medina perdera com Moedas como ele próprio fora vítima de Santana Lopes há precisamente 20 anos.

As coincidências do que se passou na altura (2001) em Lisboa com o que se verificou agora são impressionantes, até na diferença percentual que as sondagens nas vésperas do dia das eleições davam de vantagem aos candidatos do PS sobre os das coligações lideradas pelo PSD, sendo que, à época como agora, também era o PS quem estava no Governo.

Fernando Medina, com esta derrota em Lisboa – depois de há quatro anos ter perdido a maioria absoluta –, hipotecou as suas legítimas ambições à liderança futura do PS, muito embora já não estivesse muito bem colocado nessa corrida, em que Pedro Nuno Santos leva clara vantagem.

Mas há que lembrar que muitos dos que agora anunciaram a sua morte política são os mesmos que ainda há dias achavam Paulo Rangel o social-democrata mais indicado para suceder a Rui Rio – sendo que o eurodeputado liderou as listas do PSD em duas eleições para o Parlamento Europeu e em ambas as ocasiões saiu derrotado, no primeiro caso (em 2014) com Francisco Assis como cabeça-de-lista do PS e no segundo caso (em 2019)  levou uma coça de Pedro Marques (o antigo ministro das Infraestruturas de quem já ninguém se lembra e que os comentadores do regime também chegaram a considerar o mais bem colocado para suceder a António Costa).

Medina soube perder com muita dignidade e com uma humildade rara, aliás contrastante com a arrogância que lhe custou votos e mais alinhada com a afabilidade que valeu ao seu adversário uma maior proximidade com o eleitorado.

Como ele próprio reconheceu, foi uma «derrota pessoal». E muito dura. Mas – ao contrário do que pretendeu com elevação e lealdade também de registar – não é «intransmissível».

O líder do PS e chefe do Governo, cuja presença na campanha eleitoral foi assumidamente marcante, tem um quota de responsabilidade significativa.

O abraço de Costa a Medina no final da noite eleitoral, já madrugada de segunda-feira, se serve de consolação para o amigo, não esmaga tudo resto.

Para todos os efeitos, a derrota de Medina foi pessoal, mas transmissível.

E deve ficar de aviso para António Costa, que continua longe de querer apresentar os papéis para a reforma e tem nova campanha eleitoral em 2023, porventura e ironicamente, com os mesmos protagonistas à sua direita e muito provavelmente novos líderes à sua esquerda.

Se bem que isto de previsões valha o que vale na política – onde nem sempre o que é verdade hoje ainda o é amanhã e, no final, o povo é mesmo quem manda. Ou não fosse essa a virtude maior da democracia.