Hergé. Do escuteiro ao porquinho

A vida de Georges Prosper Remi foi atribulada até ao momento que inventou um jovem repórter de gaforinha loira acompanhado por um cão branco e um marinheiro bêbado.

Em 1927, em Bruxelas, a capital da Bélgica, um jovem, de apenas vinte anos, chamado Georges Prosper Remi, conseguiu ser recebido pelo padre Norbert Wallez, um figurão sinistro que manteve relações muito próximas com Benito Mussolini. Georges precisava de ganhar a vida, até porque os seus pais, Alexis e Élisabeth, não tinham feito fortunas a vender roupas para crianças.

O padre Norbet Wallez era director da Société Nouvelle Presse e Libraire que editava o jornal Le Vingtième Siècle, onde Remi arranjara um lugar no serviço de assinaturas, bocejando horas a fio enquanto copiava listas de nomes e moradas, naquilo que o Alencar, do divino Eça, teria apelidado de grandessíssima estucha. Wallez gostou de Georges: «Malandro como é. este garoto vai desembaraçar-se». Contratou-o por um período de três anos como repórter fotográfico e desenhador. Tinha direito a um passe-imprensa e a um livre-trânsito nos caminhos-de-ferro belgas. Cabia-lhe, basicamente, fotografar, fazer trabalho de laboratório e criar ilustrações. Remi não cabia em si de contente. Muito mais tarde, numa entrevista, diria em estilo nonchalant: «Tirei, no total, duas fotografias. A do meu gato e a de um amigo a andar de bicicleta. E ninguém, nem mesmo eu, soube alguma vez dizer qual é a do gato ou a do amigo de bicicleta». Deitou, isso sim, mão aos desenhos. Começou a ilustrar, todas as quintas-feiras, histórias infantis do seu antigo colega no colégio de Saint-Boniface, René Verheagen, que saíam na secção ‘Le Coin des Enfants’ – ‘o cantinho das crianças’. A crítica seria severa: tristemente medíocres!

Apesar das evidentes falhas de traço, Georges passou a ser o desenhador-faz-tudo do Vingtième Siècle. E o seu espírito empreendedor e perfeccionista fá-lo recorrer à imitação de qualquer estilo que lhe agrade, desde Picasso a Benjamin Rabier, do modista René Vincent às gravuras do Larousse. Tudo vai servir para que, aos poucos, crie o seu próprio estilo, que mais tarde irá ganhar o nome de Linha Clara. A sua curta passagem pela fotogravura influenciou de forma decisiva a sua colocação das sombras e as suas inesperadas ampliações.

A primeira personagem:Totor

Paralelamente ao seu trabalho no Vingtième Siècle, publica pranchetas na revista Boy-Scout, da escola de escutismo onde surgiram as Extraordinaires Aventures de Totor. Totor, o Escuteiro-chefe dos Besouros, seria a sua primeira personagem com autêntica personalidade e o rapaz viaja para os Estados Unidos com o objectivo de visitar uns tios que moram no Texas, vendo-se metido em sarilhos com tribos nativas e gangsters antes de regressar ao conforto belga do lar, orgulhoso das suas façanhas. Nesse tempo, as histórias aos quadradinhos, como se tornou comum designá-las, tinham as legendas encaixadas na parte inferior ou superior do respectivo quadradinho. Georges Remi começou a utilizar os balões cada vez com mais frequência. Não tardariam a ser indispensáveis no seu trabalho.
Ganhou estatuto no jornal. Atribuíram-lhe um escritório amplo e luminoso, mesmo em cima da sala onde trabalhava o fascista padre Wallez, e uma secretária ruiva, Germaine Kieckens, um ano mais velha do que ele, mas de irresistíveis formas calipígias. Por causa dela, Remi abandonou a relação que mantinha com Marie-Louise van Cutsem, que muitos conheciam por Milou.

É precisamente nessa altura, acabado de cumprir o serviço militar, que Georges se vai ver perante um dos grandes desafios da sua vida. O Vingtième Siècle continua a vender modestamente e, para tentar atrair novos leitores, aposta em suplementos: Le Sifflet (satírico), Le Vingtième Artistique et Littéraire (cultural), Pour Tous (agenda de acontecimentos) e, claro, Le Petit Vingtième (para a juventude), publicação à qual se dedicou de forma devastadora.

O nascimento de Hergé

É preciso dizer, e é o grande biógrafo de Georges Prosper Remi, Benoît Peeters que o confirma, que os primeiros números do Le Petit Vingtième são de uma extraordinária pobreza em quase todos os aspectos. Excesso de zelo didáctico sobre regras de higiene, sobre dados enciclopédicos e sobre literatura, mais próprios para adultos do que para crianças ou adolescentes, e uma história semanal, dividida em duas pranchas de cada vez, titulada L’Extraordinaire Aventure de Flup, Nénesse, Poussette et Cochonnet. Desde o aparecimento de Totor, Georges Remi adoptara um petit-nom montado através das iniciais dos seus nomes: RG, Her-Gé. As aventuras de dois garotos de rua, Flup e Nénesse, que passam a vida à pancada um com o outro, e da irmã do segundo, Pousette, proprietária de um porco de borracha chamado Cochonnet, que se vêem metidos numa nave voadora que os leva até ao Congo onde são perseguidos por canibais doidos para os enfiarem num panelão de água a fever antes de surgir um bendito missionário católico que os salve de tamanho salsifré, podem ter sido uma fonte de experiência para o futuro Tintin au Congo, ou mesmo para as aventuras de Jo, Zett e Jocko (o macaco que substituiu o porco), mas não fugiu à banalidade. Textos pobres, um racismo latente que provocaria, muito mais tarde, críticas infinitas. Peeters não foi de modas: «O texto, de um redactor desportivo do jornal chamado Desmedt (que para o efeito assinava Smettini) é uma patetice total e o argumento, que narra a grotesca odisseia de três crianças e do seu porquinho de borracha no meio dos pretinhos, é de uma banalidade desesperante».

O primeiro álbum de Tintin

Georges queixava-se de falta de tempo e de passar a vida a ilustrar ideias alheias. O ritmo que impõe a si próprio é estafante. Justifica com isso a falta de qualidade que a sua obra vai tendo até que o padre Wallez o desafia a criar a sua própria história. Hergé anima-se. Mostra-lhe um projecto que surgira nas páginas de Le Sifflet no dia 30 de Dezembro de 1928. São duas pranchas de banda desenhada com diálogos em balões. Numa das cenas, entra um rapazinho ajuizado e o seu cachorro branco. Há uma piada de humor duvidoso a envolvê-los, mas Wallez insiste que o rapazinho e o cão podem ser os protagonistas de novas aventuras, desta vez da total responsabilidade de Georges Remi.

A cabeça dispara-lhe. Anda a mil. Procura afanosamente um nome para os personagens. Germaine forneceu-lhe Milou. Tintin surgiu-lhe de repente e nem se lembrou que Benjamin Rabier já havia utilizado o nome. «Os gestos e atitudes do meu irmão cinco anos mais novo do que eu inspiraram-me. Sem perceber, até mesmo sem querer, reproduzi-os no primeiro álbum de Tintin», confessaria Hergé. Tintin seria um repórter. Remi vivera com entusiasmo os grandes trabalhos jornalísticos de Joseph Kessel ou Albert Londres. Agora criava o seu próprio repórter. Com o tempo, o rapaz da gaforinha loura seguiria outros caminhos.