Erros inadmissíveis e inconsistências normativas

Não sou apologista de pedidos de demissão de membros do executivo, mas não concebo como poderá João Cravinho continuar em funções, depois desta execrável manobra. A  sua manutenção em funções só pode ser interpretada como sintoma de um governo desgastado e enfermo, liderado por um primeiro-ministro cuja autoridade está ferida  de morte.

por Sofia Aureliano

1. Processo de vacinação completa. Chegámos à fase em que se concluiu a intervenção de Henrique Gouveia e Melo no comando das operações da task force da vacinação contra a Covid-19. Devemos-lhe, e à sua equipa, um grande obrigado pela forma diligente e eficaz como colocou Portugal no topo do mapa mundo, desta vez, por uma boa razão. Somos o país com maior percentagem da população vacinada com uma e duas doses. É inequivocamente um motivo de orgulho.

Mas devemos igualmente um enorme agradecimento aos milhares de profissionais de saúde que estiveram envolvidos nesta mega operação, sem férias, feriados ou fins de semana, dedicados solicitamente à causa pública. São os mesmos profissionais que reivindicam há muitos anos o reconhecimento do seu esforço e da sua desadequada compensação, que pedem revisão de estatutos e de remuneração em conformidade com a sua devoção. E mesmo com uma longa lista de reivindicações não atendidas, quando chamados, não deixaram de dizer “presente”.

Esperemos que agora o governo não se ausente e saiba agradecer-lhes convenientemente, não com espetáculos de música ou de futebol, mas com solidez e um plano de carreira. É urgente dar-lhes uma boa justificação para se manterem no SNS.

2. Erro inadmissível. Todos erramos porque, como diz a sabedoria popular, errar é humano. Mas não é indiferente quando os erros acontecem no exercício de funções e têm consequências. Um erro de um médico ou de um juiz, por exemplo, pode traduzir-se num enorme prejuízo para terceiros. E, nesse caso, é inevitável que haja um apuramento de responsabilidades.

Também no exercício de cargos ministeriais, há falhas que são inócuas e sem consequências, e há erros verdadeiramente inadmissíveis que têm de ser punidos. O que se passou na passada semana com o ministro da Defesa Nacional, João Cravinho, é um destes casos. A forma como sugeriu publicamente a nomeação imediata de Gouveia e Melo para o cargo de Chefe de Estado Maior da Armada não foi um lapso ou um mal-entendido. Foi uma ingerência propositada, gravíssima e amplamente desrespeitadora.

Primeiro, para o Almirante ​​ Mendes Calado, Chefe de Estado Maior da Armada em funções, reconduzido no cargo para mais dois anos em março de 2021, que viu a sua proposta de exoneração ser discutida indecorosamente na praça pública.

Depois, para o Presidente da República que, enquanto Comandante Supremo das Forças Armadas, é o único responsável pela nomeação do Chefe de Estado Maior da Armada. Marcelo Rebelo de Sousa foi forçado a intervir para acalmar as águas, mas o mal já estava feito e afetou todo o ramo militar.

Finalmente, para o Vice Almirante Gouveia e Melo que não merecia ser alvo de uma tentativa de instrumentalização política. O seu mediatismo, fruto do bom desempenho das funções que lhe foram superiormente atribuídas, foi ardilosamente aproveitado pelo governo para ingerir numa nomeação que não lhe cabia e tentar afastar uma voz incómoda do caminho. Tratado como se fosse uma moeda de troca, esta usurpação atentou contra o seu bom nome e honra militares.

Para além de antidemocrático, este ato revela um desrespeito profundo pelas Forças Armadas, materializando uma incomensurável afronta contra o Estado de Direito Português.

Não sou apologista de pedidos de demissão de membros do executivo, mas não concebo como poderá João Cravinho continuar em funções, depois desta execrável manobra. A  sua manutenção em funções só pode ser interpretada como sintoma de um governo desgastado e enfermo, liderado por um primeiro-ministro cuja autoridade está ferida  de morte.

3. Inconsistências normativas. O dia 1 de outubro é já considerado o dia da libertação do Covid-19. Provavelmente, daqui em diante celebrado como um feriado. Oxalá assim seja, porque seria um excelente sinal.

Depois de 20 meses de clausura e limitação, os portugueses tiveram autorização formal para voltar a sair à noite. A abertura dos espaços noturnos coincidiu com  a decisão do governo de levantar a obrigatoriedade do uso de máscaras nos restaurantes, cafés e discotecas. O resultado, digno de cobertura simultânea, no dia seguinte, em todos os jornais televisivos, apresentou aglomerados de centenas de pessoas confinadas em espaços fechados, sem distanciamento social nem qualquer outro comportamento preventivo.

É naturalmente expectável o entusiasmo de voltar à vida social, de descontrair e conviver com amigos. Também faço parte da lista de ressacados que anseiam pelo fim definitivo da pandemia e pelo regresso seguro à normalidade. Mas parece-me assustadoramente prematuro o levantamento de determinadas regras, como o uso de máscara em alguns recintos noturnos ou a redução da lotação para que seja possível algum distanciamento social. Ainda mais quando vigoram normas de lógica oculta e racional questionável como a obrigatoriedade de os alunos a partir do 2º ciclo continuarem a utilizar máscara dentro do espaço controlado das salas de aula, e já não serem obrigados a utilizá-la no espaço descontrolado dos recreios. Não faz sentido.

É normal que todos festejemos as manifestações de regresso da normalidade. O que não é normal é que este regresso nos imponha o cumprimento de regras inconsistentes em que o bom senso paira em parte incerta.

4. A terceira dose e outras questões. Esta semana, a EMA – Agência Europeia do Medicamento tornou público o parecer positivo para a administração da terceira dose de vacina contra a Covid-19 em imunodeprimidos. As autoridades portuguesas acolheram este parecer não vinculativo, e decidiram dar início à vacinação destes doentes, bem como de pessoas com 80 e mais anos. Não foi, no entanto, dada qualquer justificação científica para esta decisão. Assim como não foi ainda esclarecido pela Direção Geral de Saúde o porquê de Portugal ser um dos poucos Estados Membros que optou por dar apenas uma dose  de vacina a pessoas que tenham estado infetadas, em vez das duas doses recomendadas pelo ECDC – Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças.

Também está por saber se os restantes cidadãos terão, numa fase posterior, acesso voluntário à terceira dose. E se as crianças com menos de 12 anos poderão vir a ser vacinadas. Todas estas decisões têm acontecido de forma unilateral, sem que haja preocupação de as sustentar publicamente com fundamentos científicos. Uma atitude contraproducente e, sobretudo, injusta com os portugueses que têm demonstrado um elevado nível de confiança nas autoridades portuguesas. O mínimo exigível é que lhes seja dado o acesso ilimitado à informação.