Abdulrazak Gurnah. O romancista tanzaniano que fez história com o Prémio Nobel

Gurnah é agora o primeiro autor negro africano a ser reconhecido pela Academia Sueca em mais de trinta anos, depois do nigeriano Wole Soyinka, laureado nos anos 1980.

A Academia Sueca anunciou ontem, numa conferência de imprensa transmitida online, que o escritor tanzaniano Abdulrazak Gurnah, de 73 anos, “cronista da experiência africana e do refugiado”, é o Prémio Nobel da Literatura 2021.
Gurnah, que escreve em inglês, é agora o primeiro negro africano tanzaniano a receber o prémio desde que o nigeriano Wole Soyinka (atualmente com 87 anos) fez história em 1986, e a quarta pessoa negra a receber a prestigiada distinção literária. Perante um galardão que é “historicamente muito ocidental”, tal como escreve a agência AFP, a última vez que a Academia Sueca distinguiu um autor africano com o Nobel da Literatura foi em 2003, ao sul-africano J.M. Ccoetzee. De acordo com as contagens da AFP, em toda a história do Nobel da Literatura, atribuído pela primeira vez em 1901, “mais de 80% foram autores europeus ou norte-americanos”. 

O UNIVERSO LITERÁRIO DE GURNAH Gurnah, que reside no Reino Unido desde a sua adolescência, foi distinguido com o Nobel da Literatura “pela sua penetração descomprometida e compassiva dos efeitos do colonialismo e do destino dos refugiados no espaço entre culturas e continentes”. O romancista “nasceu em 1948 e cresceu na ilha de Zanzibar, no Oceano Índico, mas chegou a Inglaterra como refugiado no final da década de 1960. Publicou dez romances e uma série de contos”, indica a Real Academia Sueca, adiantando que “as questões relacionadas com os refugiados sempre percorreram a sua obra”.
“No universo literário de Gurnah, tudo está em mudança – memórias, nomes, identidades. Uma exploração sem fim impulsionada pela paixão intelectual que está presente em todos os seus livros, e igualmente proeminente em Afterlives de 2020, como quando ele começou a escrever como um refugiado de 21 anos”, refere o comité do prémio Nobel no Twitter. Além disso, os romances do escritor tanzaniano “abrem o nosso olhar para uma África Oriental culturalmente diversificada, desconhecida para muitos em outras partes do mundo”, acrescentou Anders Olsson, presidente do comité do Nobel.
Afterlives, publicado no ano passado, conta a história de Ilyas, que foi roubado aos seus pais pelas tropas coloniais alemãs quando era pequeno e que regressa à sua aldeia depois de anos a lutar na guerra contra o seu próprio povo. O The Guardian descreveu-o como “um romance compenetrante, que reúne todos aqueles que estavam destinados a ser esquecidos, e recusa o seu esquecimento”.  

A IMPORTÂNCIA DA SUA OBRA Gurnah nasceu em 1948 e cresceu numa das ilhas de Zanzibar antes de fugir da perseguição e chegar à Inglaterra como estudante, na década de 1960. Quando Zanzibar passou por uma revolução em 1964, cidadãos de origem árabe foram perseguidos e Gurnah foi forçado a fugir do país quando tinha apenas 18 anos. Três anos depois, começou a escrever como um refugiado na Inglaterra, escolhendo o inglês como o idioma dos seus livros (embora o swahili seja a sua língua materna). A estreia nos romances deu-se com o livro Memory of Departure que foi publicado em 1987. Até recentemente, foi professor de inglês e literaturas pós-coloniais na Universidade de Kent, até se reformar.   
O escritor estava na cozinha da sua casa quando foi informado pela fundação de que seria o premiado deste ano. O anúncio “foi uma surpresa tal que tive de aguardar para o ouvir por parte do júri antes de acreditar”, declarou Abdulrazak Gurnah à Reuters, acrescentando que “O Nobel é um prémio maravilhoso, cheio de grandes autores… Ainda me estou a adaptar à ideia”.
O seu quarto romance, Paradise, foi selecionado para o prémio Booker – prémio literário criado em 1968, e um dos mais importantes atribuídos anualmente no Reino Unido – em 1994. Olsson sublinhou que “existe uma referência óbvia a Joseph Conrad na sua representação da jornada do jovem herói inocente Yusuf ao coração das trevas”: “Gurnah tem penetrado de forma consistente e com uma grande compaixão, não só os efeitos do colonialismo na África Oriental, como os seus efeitos nas vidas de indivíduos desenraizados e migrantes”, contou aos jornalistas em Estocolmo. A Fundação Nobel destacou ainda Desertion, obra publicada em 2005, que se passa entre Zanzibar e o Quénia, envolvendo personagens britânicas. Por mais que a história seja de amor, acaba por contradizer de forma contundente aquilo que apelida de “romance imperial”.

UM ARTISTA IGNORADO? Por sua vez, a sua editora de longa data, Alexandra Pringle, da Bloomsbury, defendeu que a vitória de Gurnah foi “mais que merecida”, já que este é um escritor que não havia recebido o “reconhecimento merecido” anteriormente: “Ele é um dos maiores escritores africanos vivos, e nunca ninguém reparou nele… Fiz um podcast na semana passada e afirmei que ele era uma das pessoas constantemente ignoradas. Agora isto aconteceu!”, revelou Pringle, acrescentando que o escritor sempre escreveu sobre o “deslocamento”, “mas da forma mais bela e assustadora, que desenraíza as pessoas fazendo-as viajar pelos continentes”. “Nem sempre é um pedido de asilo, pode haver muitos motivos: o comércio, a educação, o amor…”, continuou. “O primeiro dos seus romances editado na Bloomsbury chama-se By the Sea, e há uma imagem assustadora de um homem no aeroporto de Heathrow com uma caixa de incenso entalhada. Isso é tudo aquilo que ele tem. Ao chegar, ele diz apenas uma palavra, que é ‘asilo’”, lembrou Pringle. 
A editora acredita ainda que Gurnah é um escritor tão importante quanto Chinua Achebe – um dos autores africanos mais conhecidos do século XX. “A sua escrita é particularmente bela e séria e também bem-humorada, gentil e sensível. Ele é um escritor extraordinário que escreve sobre coisas realmente importantes”.
By the Sea, em português Junto ao Mar, é o único Gurnah traduzido em Portugal e editado pela Difel, em 2003. Na altura, o jornal britânico The Observer escreveu: “Desde as primeiras linhas sabemos que estamos nas mãos de um verdadeiro escritor, alguém que tem algo a dizer sobre o mundo”. E o também britânico The Times dizia que “raras são as vezes em que abrimos um livro e achamos que lê-lo captura as qualidades mágicas de um relacionamento amoroso”. Junto ao Mar é uma dessas obras. É um livro que transforma miséria, decadência e perda em prosa, de uma elegância e de uma humanidade tal, que quase não nos atrevemos a respirar enquanto o lemos, com medo de quebrar o encanto”.
Pelo segundo ano consecutivo, o Prémio Nobel não contará com a tradicional cerimónia em Estocolmo, habitualmente marcada para dezembro, por causa da pandemia. Os laureados receberão o prémio nos seus países de residência. O Nobel da Literatura é um prémio concedido anualmente, desde 1901, pela Academia Sueca a autores que fizeram notáveis contribuições ao campo da literatura, e tem um valor pecuniário superior a 900 mil euros.
Hoje vai ser conhecido o nome do Nobel da Paz deste ano e, na segunda-feira, 11 de outubro, será revelado o vencedor do Nobel da Economia.