Marcelo desceu finalmente à Terra

Essa é que deve ser a marca e o compromisso do Presidente Marcelo: não deixar que o poder executivo, seja de esquerda, seja de direita, desbarate os fundos que a Europa volta a conceder-nos, aumentando ainda mais os encargos futuros do Estado e a despesa pública, e desperdice aquela que bem pode ser a derradeira…

Marcelo Rebelo de Sousa teve uma noite desinspirada naquela que foi a última entrevista conduzida por Miguel Sousa Tavares, que assinalou assim a despedida da profissão de jornalista, a qual, na linguagem que também domina como advogado, merece pública e devida vénia – afinal, foram 45 anos a incomodar e a interpelar meio mundo.

Mas não obstante toda essa experiência e a inteligência com que sempre soube conduzir entrevistas, Sousa Tavares foi incapaz de contrariar a capacidade discursiva e argumentativa do Presidente Marcelo para fugir aos esclarecimentos que se impunham nas questões mais polémicas, como a da trapalhada do processo de substituição do chefe do Estado Maior da Armada, almirante Mendes Calado, pelo vice-almirante Gouveia e Melo.

Marcelo mastigou as palavras de trás para a frente e da frente para trás e conseguiu não dizer quais os equívocos que ele próprio reconheceu terem existido e que publicamente deu como esclarecidos e resolvidos.

Ou seja, mais um gravíssimo caso ou conflito institucional é dado como encerrado sem que a opinião pública veja reconhecido pela classe política e pelos mais altos agentes da nação o seu legítimo direito à informação e ao esclarecimento. É pena! Até porque já todos percebemos o que na verdade se passou.

Mas Sousa Tavares fez uma última pergunta ao Presidente Marcelo cuja resposta foi para todos ainda mais dececionante: «O Senhor beneficia de um consenso extraordinário e de uma popularidade extraordinária. Uma popularidade se calhar só comparável à do Presidente Mário Soares, mas se calhar um consenso mais alargado. Aquilo que os portugueses vão perguntar no fim do seu segundo mandato é: ‘Que utilidade tirámos da popularidade do Presidente Marcelo?’».

Marcelo embrulhou-se num conjunto de atos e ações do seu primeiro mandato, entre a utilidade de ter acompanhado «mais do que se pensa a crise bancária e o fim da crise de gestão orçamental, de ter estado atento aos fogos e de se ter aprendido alguma coisa com os fogos em termos de gestão da floresta e certamente em termos de prevenção e de resposta rápida ao risco de fogos florestais, de ter havido uma posição convergente no combate à pandemia, do Presidente da República se ter exposto ao ponto de ser porta voz das sessões do Infarmed e de ter assumido pela primeira vez na história da democracia a responsabilidade de duas declarações do estado de emergência».

Quase incrédulo, Sousa Tavares não resistiu a rematar, com o sorriso meio trocista meio condescendente que lhe é peculiar, aquela que veio mesmo a ser a sua última pergunta: «Já chega?».

Marcelo concluiu: «Não chega, mas essas pelo menos julgo que foram pacíficas».

Poucochinho. Demasiado poucochinho.
Tornou evidente que se preparou para esta entrevista de forma, essencialmente, a fugir às perguntas mais incómodas de Miguel Sousa Tavares sobre os temas mais polémicos do presente.

Revelando uma falha monumental numa questão que não devia carecer de qualquer preparação. Porque Miguel Sousa Tavares só lhe perguntou qual a marca que Marcelo gostaria de deixar para a História, e para os portugueses, dos seus mandatos em Belém.

Marcelo não demorou muito tempo a perceber o erro clamoroso que cometeu.

E respondeu no dia seguinte, 5 de Outubro, com um discurso notável sobre os desígnios nacionais, num país com dois milhões de pobres e muitos mais remediados ou no limiar entre a pobreza e o remedeio, que está na cauda da Europa e que tem talvez uma última oportunidade, com o famoso PRR, de convergir com os restantes Estados-membros da União Europeia, desenvolver a sua capacidade produtiva e geradora de riqueza, de diminuir a dependência das importações e aumentar as exportações, em suma, de construir futuro.

Essa devia ter sido a resposta de Marcelo na véspera.

Ou melhor, esse deve ser o seu compromisso para os quatro anos que ainda lhe restam deste seu segundo mandato se quer deixar marca para a História.

A estabilidade que o Presidente Marcelo tanto defende para o Governo de esquerda, como a necessidade de existência de uma alternativa forte à direita não são, nem podem ser um fim em si mesmos. São, sim, os meios ou condições políticas com que o Presidente espera contar para impor uma cultura de maior exigência ao poder executivo, por forma a perseguir os tais desígnios nacionais: a começar pela boa execução e aplicação dos fundos europeus, orientando-os para a economia e para o desenvolvimento económico sem o qual não há perspetiva alguma de não continuarmos a afundarmo-nos em mais dívida e mais pobreza.

Essa é que deve ser a marca e o compromisso do Presidente Marcelo: não deixar que o poder executivo, seja de esquerda, seja de direita, desbarate os fundos que a Europa volta a conceder-nos, aumentando ainda mais os encargos futuros do Estado e a despesa pública, e desperdice aquela que bem pode ser a derradeira oportunidade deste país à beira mar plantado e com água até ao pescoço.

Ainda bem que Marcelo desceu finalmente à Terra.