Médicos consideram OE para a Saúde um “logro” e unem-se para greve

Saúde ferve. É a segunda greve convocada esta semana, no dia em que o administrador do Hospital de Setúbal confessou que nem a pagar mais 40% consegue contratar médicos.

Sobe de tom a cada dia a insatisfação na Saúde. Depois da união inédita dos sindicatos de enfermeiros, o Sindicato Independente dos Médicos (SIM) e a Federação Nacional dos Médicos (FNAM) decidiram ontem avançar com a convocação de uma greve geral de três dias no final de novembro, a primeira paralisação convocada pelas duas estruturas nos últimos anos e falam de “insuficiências indisfarçáveis” no SNS, com duras críticas às propostas no Orçamento do Estado, que vão ao ponto de considerar ofensivas. “É a última arma para levar o Ministério a iniciar uma negociação séria”, disse ao i Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos.

Os médicos exigem que seja aberto um processo negocial para valorizar as condições de trabalho e das carreiras no SNS, aumentar as remunerações e discutir questões como a “possibilidade de opção pelo regime de trabalho em dedicação exclusiva, devidamente majorada e acessível a todos os médicos”. Recorde-se que o Governo compromete-se na proposta de OE a regulamentar a “dedicação plena” em 2022, mas só com a revisão do Estatuto do SNS. FNAM e SIM querem negociar em que moldes e são taxativos na condenação das restantes propostas do Governo OE no que respeita ao trabalho médico. Jorge Roque da Cunha classifica-as de “alucinações”, considerando que estabelecer um aumento do pagamento de horas extra nos serviços de urgência a partir da 250ª hora e depois a partir da 500ª só agrava o burnout e aumenta o risco de erro médico. Diz também que pretender estender esse regime de trabalho a médicos que têm dispensa de fazer trabalho noturno e urgências pela idade – na proposta de OE podem levantar esse direito – é uma “medida de loucos”. Noel Carrilho, presidente da FNAM, fala de “logro”: “Um orçamento que muito prometia não tem de modo algum o reforço necessário para fortalecer o SNS. No que toca aos médicos, o que lá vem proposto roça o ofensivo”, afirmou o dirigente ao i. “Não se pode interpretar como séria a proposta [de aumentar o pagamento das horas extra a partir da 250ª hora e 500ª hora]. Das duas uma, ou não é para ser levada a sério, ou é uma verdadeira tentativa de logro. Logro não aos médicos que percebem o que está em causa mas para os portugueses, que com este tipo de anúncios ficam com noção de que vai haver alguma melhoria no SNS”, continua, considerando que as situações de rutura de serviços e as demissões que têm vindo a público nas últimas semanas são a “ponta do icebergue” e que os constrangimentos deverão agravar-se com o aumento da pressão nos serviços no período do inverno. Também ontem o responsável do SIM da região Centro, depois de a urgência do Centro Hospitalar de Leiria ter fechado durante a noite por falta de recursos humanos, disse temer o pior para os próximos meses. “Temo o pior, em Leiria e em muitos outros hospitais do país, porque não há médicos suficientes para assegurar as escalas de Urgência”, afirmou José Carlos Almeida à agência Lusa.

Para os sindicatos, com as condições atuais e as que estão previstas só afastarão ainda mais os médicos do SNS. “Os médicos estão a trabalhar em condições limite por isso é essencial que se criem condições para fixar e atrair médicos para o SNS”, diz Noel Carrilho.

Contratação de médicos “fortemente distorcida” A convocação de uma greve geral de médicos para os dias 23, 24 e 25 de novembro foi decidida no mesmo dia em que a Norte foi conhecida a demissão em bloco dos responsáveis da urgência metropolitana de Psiquiatria, neste caso devido ao modelo de transferência de doentes. Já no Parlamento, após requerimentos do PCP e PSD, foram ouvidos o presidente do Centro Hospitalar de Setúbal e o diretor clínico demissionário, depois de na semana passada ter sido anunciada a demissão, em solidariedade, de 87 diretores de serviço e chefes de equipa. Algo negado por Manuel Roque Santos, que disse só ter dois pedidos de demissão e uma moção de apoio dos restantes médicos. Numa audição de cerca de uma hora, o administrador assumiu um défice crónico no hospital: todos os meses o hospital endivida-se em 2 a 3 milhões de euros, o que perfaz 36 milhões ao final do ano. “O dinheiro acaba sempre por aparecer, mas aparece tarde”, disse, assumindo dificuldades de gestão e de acesso por parte dos doentes. Sobre a contratação de médicos, teceu críticas à forma como as dotações de serviços estão atualmente definidas pela Ordem dos Médicos, considerando que não há país que tenha recursos para as cumprir, mas assumiu que a dificuldade de profissionais no hospital só tem sido ultrapassada com a “abnegação” dos médicos que lá trabalham. Roque Santos disse aos deputados que não consegue contratar médicos e que há vários constrangimentos, das autorizações superiores a não haver candidatos, dando o exemplo do último concurso para colocação de recém-especialistas. Com um exemplo prático, revelou que o hospital pediu para contratar 33 médicos, foram autorizados pela tutela 13 e só conseguiram preencher oito vagas, tendo aquelas em que têm mais falta de médicos como medicina física e de reabilitação e obstetrícia ficado desertas, como acontece há vários anos. Como solução, apontou a majoração do vencimento dos médicos em zonas especialmente sensíveis, mas deixou uma constatação: as vagas que têm ficado desertas no hospital já seriam para médicos com direito a uma majoração de 40% no salário, o regime atualmente em vigor para vagas carenciadas, para o qual o Governo prevê mais vagas em 2022. “As pessoas não estão interessadas em ir para o hospital [mesmo] com mais 40% de vencimento”, disse já no final da audição. “Este mercado está fortemente distorcido em condições de concorrência. E portanto, façam favor…”, disse, sem terminar a frase no fim da audição, como que a passar a bola ao poder legislativo.

Já na sua audição, o diretor demissionário Nuno Fachada reiterou o pedido de demissão dos colegas. “Estamos num plano inclinado de descida e já estamos abaixo da linha de água”, disse. “Eu tinha duas opções. Ou omitia o que se passava, não ficando bem com a minha consciência nem o meu juramento deontológico, ou me solidarizava com os profissionais e tentava defender o meu centro hospitalar”, afirmou.

Artigo corrigido: Na edição imprensa referia-se erradamente que a FNAM é afeta à CGTP-IN. A Federação Nacional dos Médicos não integra nenhuma central sindical, tendo esclarecido ao i que mantém relações institucionais com ambas as centrais sindicais – CGTP-IN e UGT.