Jaime Nogueira Pinto: “As tentativas políticas de mudar a natureza humana acabaram em catástrofes”

No seu mais recente livro, o politólogo e empresário descreve e analisa sete momentos decisivos da História. Em conversa com o Nascer do SOL, fala sobre o duelo entre as duas grandes potências atuais – a China e os EUA – e sobre o braço-de-ferro que se trava ao nível das mentalidades.

Nascido no Porto em 1946, em jovem considerava-se monárquico liberal. Depois entusiasmou-se com o Ultramar e alistou-se para participar na Guerra Colonial, mas só seria mobilizado para África depois do 25 de Abril. Esteve em Angola, onde passou um período de quatro meses que se revelaria decisivo na sua vida. Antes de regressar a Portugal, esteve detido com a mulher, Maria José Nogueira Pinto (mais tarde deputada do CDS), num campo da África do Sul e mais tarde passou pelo Brasil. Embora seja associado à direita, e até à extrema-direita (fez a defesa de Salazar no programa Grandes Portugueses, e já houve quem lhe chamasse fascista), Jaime Nogueira Pinto chegou a entrevistar Álvaro Cunhal e diz que tem amigos «de todas as raças, cores e religiões – e alguns até sem nenhuma religião». Um deles era o comunista Ruben de Carvalho, com quem teve um programa de rádio. Apaixonado por História, publicou nos últimos anos vários livros que revisitam o passado. Hegemonia – 7 Duelos pelo Poder Global (ed. Crítica) é o mais recente, e serviu de ponto de partida para uma conversa solta sobre guerras, confrontos de ideologias e batalhas pelo controlo do pensamento.

Assim de repente, nos últimos tempos, recordo-me de ter publicado, além este livro, os Contágios, a biografia do Champalimaud, e, indo mais atrás, O Islão e o Ocidente, os Bárbaros e Iluminados…

Isso já muito atrás.

Mas tem trabalhado intensamente.

Este período dos confinamentos ajudou, sobretudo aos fins-de-semana, porque a gente não saía de casa entre o meio-dia de sábado e a manhã de segunda-feira. Para escrever foi altamente convidativo.

Se juntarmos esses livros todos já quase ocupam uma prateleira…

Nos últimos dez anos devo ter publicado uma dúzia de livros, mais ou menos. Escrevo ao fim-de-semana, com caneta de tinta permanente, à mão, em folhas quadriculadas. As coisas sérias, mesmo artigos, são sempre manuscritas. Só uso o computador para fazer pesquisa. E às vezes à noite revejo.

Que ideia esteve na génese de Hegemonia – 7 duelos pelo poder global?

Há um livro do Graham Allison, de 2017, em que fala da ‘armadilha de Tucídides’ [Destined for War: Can America and China Escape the Thucycide’s Trap?]. O Allison diz que sempre que há um poder dominante, hegemónico, e aparece um novo poder a desafiá-lo, a guerra é quase inevitável. Esse livro, que foi um bestseller, enumera imensos casos e fala da situação atual da China e dos Estados Unidos. Eu achei que não ia fazer uma coisa igual ao que já estava feito, mas, indo ao Tucídides, de que gosto muito, os motores da ação humana são o medo, a honra – o desejo de honra e de glória –, e a cobiça, no sentido dos interesses materiais. Quis ver como é que esses três fatores tinham influenciado uma série de conflitos. Selecionei a própria guerra do Peloponeso [Atenas contra Esparta, final do século V a. C.]; as chamadas Guerras Púnicas, de Roma contra Cartago; as guerras do imperador Carlos V, no século XVI, contra os franceses, os turcos e os protestantes; as guerras, sobretudo no século XVIII e a acabar em Waterloo, entre os franceses e os ingleses, geralmente por questões coloniais; as guerras da Alemanha, a partir da sua formação [incluindo a I e a II Guerra Mundial]; a Guerra Fria, Estados Unidos contra União Soviética; e agora este nascente conflito, ou competição, entre a China e os Estados Unidos. O livro essencialmente é isso: o retrato desses conflitos, procurando dar umas linhas interpretativas em que é que esses fatores – o medo, a honra, a cobiça – influenciaram tais conflitos… É evidente, por exemplo, que o desejo de glória normalmente radica mais nos chefes. No Aníbal, no Napoleão, no próprio Hitler. O medo talvez esteja mais nos povos e nos dirigentes, que avaliam a subida de um competidor pelo poder, fazem os seus cálculos.

Dá-me a impressão que a história militar já não está tanto na moda. É um campo que o fascina?

Isto não é só história militar. O que é interessante no Tucídides – e no fundo é um bocadinho base das minhas convicções religiosas e políticas – é que a natureza humana não muda. E todos os esforços, todos os sistemas, nomeadamente o marxista-leninista, para mudarem a natureza humana normalmente são catastróficos.

Porque têm de a violentar?

Todas as distopias do século XX, desde as famosas, como o Orwell [Mil Novecentos e Oitenta e Quatro], ou as menos famosas, como o Zamyatin [Nós], logo no princípio dos anos 20, até uma série de clássicos da ficção científica, são exatamente uma meditação sobre isso. Já o Pascal dizia: ‘Qui veut faire l’ange fait la bête’ [aproximadamente: ‘Quem quer ser um anjo, torna-se um monstro’]. Esse esforço, quando é retórico não faz muito mal, mas, quando é passado à prática e às instituições, é catastrófico. Aliás agora estamos a assistir no campo cultural a tentativas disso, o Woke, o chamado politicamente correto são tentativas de criar uma nova inquisição que proíba as pessoas de dizer determinadas coisas que são consideradas perigosas.

Já lá iremos. O facto de acreditar que a natureza humana não muda significa que estamos condenados a repetir estes ciclos, nomeadamente os conflitos?

A natureza das pessoas não muda, individualmente, mas as sociedades mudam e os valores sociais mudam. Hoje em dia os valores sociais dominantes não admitem, por exemplo, a escravatura. Mas acho que uma das razões por que a escravatura desapareceu foi porque inventámos máquinas.

Já não precisamos dos forçados nas galés porque há turbinas que empurram os barcos…

Exatamente. Hoje o querer fazer uma espécie de limpeza histórica e censurar as sociedades antigas que tinham esse tipo de instituições de certo modo é absurdo. A condenação está implícita, a história muda, as condições melhoraram, a esperança de vida aumentou, há uma coisa chamada descoberta científica e há as tecnologias que vão transformando essas descobertas em máquinas, em aparelhos, em sistemas de análise, etc. As sociedades que não tinham essas coisas recorriam a outras. Essa ideia de fazer um juízo permanente do passado à luz dos critérios dominantes do presente é um bocado absurda.

Olhando aqui para a capa, o que podem ter em comum e de diferente a batalha entre Esparta e Atenas, há 2500 anos, e o conflito entre os EUA e a China?

O que há de comum é a ideia de conflito. Agora, é evidente que os grandes avanços da tecnologia, com o nuclear e as armas de destruição maciça, tornaram muito mais cautelosa a abordagem ao conflito. Vimos como a Guerra Fria acabou com uma das partes derrotada, e ambas estavam superarmadas. Vivemos sempre da História e dos símiles históricos, e muita gente pensou numa repetição, na Rússia pós-1992, do que aconteceu com a República de Weimar [humilhação da Alemanha após a Primeira Guerra, que acabaria por levar à ascensão do nazismo]. Não aconteceu, o que aconteceu foi Putin, que apesar da tendência autoritária é um homem equilibrado, sabe perfeitamente o que pode fazer e o que não pode fazer. Mas no fim da Guerra Fria houve receios, que até foram explorados no cinema, por exemplo nalguns filmes do James Bond, que era grupos de bandidos, organizações criminosas, apoderarem-se de armas nucleares ou do saber de cientistas. Houve na altura um programa inter-Agências dos Estados Unidos para se ocuparem de cientistas russos.

Para eles não irem para ‘o lado negro da força’?

Foi uma das coisas mais interessantes desse período. E funcionou – pelo menos calculamos que funcionou porque nunca vimos um cenário desses a acontecer.

No seu livro faz referência ao ensaio do George Orwell ‘Nós e a Bomba Atómica’, de 1945, onde ele diz que «é provável que nos próximos cinco anos vamos todos pelos ares». Curiosamente, a bomba atómica parece ter tido um efeito dissuasor e um papel importante no evitar de muitas guerras.

Sem dúvida. Na crise dos mísseis de Cuba, em 1963, vimos isso a funcionar. E também vimos o que é a retórica para o público e depois, à parte, a negociação [com o inimigo]. O Krushchov ficou furioso quando os cubanos atingiram um avião U2 americano. Havia a noção de que numa guerra desse tipo a destruição era maciça e cruzada. Aliás o Koestler dizia uma coisa muito interessante sobre as armas nucleares: a partir da bomba atómica, a humanidade, passou a problematizar a hipótese da sua extinção total. Na minha adolescência, e não só, fui um grande leitor de ficção científica e era um dos temas recorrentes era a catástrofe e o mundo pós-catástrofe.

Aquele cenário em que só sobrevivem as baratas…

Havia uma graça americana, não sei se do New Yorker, que dizia que só sobreviviam as baratas e o Goldman Sachs.

[risos] Há dias, na mesma linha do Graham Allison, vi uma notícia cujo título era ‘Taiwan-China. O conflito que pode conduzir à Terceira Guerra Mundial’. E citava-se um analista australiano que dizia: «Não devemos pensar que uma espécie de conflito entre grandes potências não vá acontecer. Quando olhamos para a forma como ocorreu a modernização, nos últimos anos, do Exército de Libertação Popular, eles estão ativamente a preparar-se para entrar em luta e derrotar os Estados Unidos numa guerra». Acha que este confronto militar entre as duas maiores potências é inevitável?

Não sei se é inevitável. Lembro-me de um bom amigo meu, o John O’Sullivan, que foi speechwriter da Sr.ª Thatcher. E a Sr.ª Thatcher um dia diz-lhes: ‘The unexpected allways happens, the inevitable never’ [‘O inesperado acontece sempre, o inevitável nunca acontece’]. Acho que isto faz algum sentido. O que se passa, e isso é um ponto importante para refletirmos, é que os Estados Unidos estão internamente divididos – e divididos a meio e em coisas profundas –, e estão com uma liderança débil, como se viu na retirada ou debandada de Cabul. Até que ponto os dirigentes chineses podem achar que aqui está uma janela de oportunidade? Ainda para mais atendendo a um segundo fator, que é a rapidez com que os Estados Unidos dão a volta por cima. Não podemos esquecer que em meados dos anos 70 tiveram Watergate em 74, a retirada de Nixon, a derrota do Vietname em 75, em 76 é a eleição de Carter, que é um Presidente fraco e que perde o Irão. Há uma perceção de que os Estados Unidos estão em queda. E no entanto, em novembro de 1980 elegem o Reagan e passados poucos anos ganham a Guerra Fria. No livro dou outro exemplo talvez até mais significativo. No final dos anos 30 os Estados Unidos estão divididíssimos, com a Grande Depressão, muito radicalizados, com partidos quer à direita, quer à esquerda, muito poderosos, até fora do mainstream americano, à direita liderados pelo Charles Lindbergh [famoso aviador], à esquerda com um Partido Comunista também muito poderoso, e elementos muito radicais. Esses Estados Unidos divididos, radicalizados, etc., passados uns anos enfrentam uma Alemanha unidíssima e ganham. Os Estados Unidos têm uma capacidade de se regenerarem e de se unirem muito rápida. Isso pode levar às vezes os dirigentes de Pequim a pensarem – espero que não! – que agora há uma janela de oportunidade que pode fechar. Há esse perigo, até porque já vimos que aquela contenção que a China teve durante muitos anos está de certo modo a desaparecer. A afirmação nacional parece ser mais forte.

Um amigo sinófilo garante-me que a China é uma potência pacífica, que tudo fará para defender as suas fronteiras, mas não tem quaisquer ambições expansionistas.

Mas os dirigentes da China não consideram que ocupar Taiwan seja uma expansão. Na sua perspetiva, a China não estaria a conquistar nada, estaria unicamente a confirmar ou a territorializar o seu direito à unidade nacional. E será sempre fácil encontrar pretextos para isso. Tem havido umas certas tensões, uns sobrevoos, aquelas ilhas artificiais, tudo isso pode estar a criar um clima propício a um conflito. Embora o Presidente Xi Jinping pareça ser um político racional, estratégico, pode haver esta tentação, avaliando a divisão americana, que é profunda. Eu equacionaria o risco nestes termos.

A supremacia, chamemos-lhe assim, militar e financeira americana pode ser posta em causa?

A financeira já foi maior. A militar ainda existe. Mas lá está, a China também está a acelerar tudo isso. O problema é que um conflito destes não será nada parecido com outros que houve. A capacidade de destruição das armas das últimas gerações não é apenas enorme – também é rápida. Uma coisa destas pode passar-se em horas. Os Estados Unidos também têm feito, a meu ver, uma política que é muito errada, que é atirar a Rússia para os braços da China. É um erro. Uma das coisas que Kissinger dizia era fazer tudo para evitar que a Rússia e a China estejam do mesmo lado. Mas Biden, é o que tem feito.

A ascensão da China foi rápida. É curioso porque durante vários anos pensámos que, a haver uma terceira guerra mundial, seria pelo choque entre o Ocidente e o Oriente, as democracias ocidentais e o mundo árabe. Era uma guerra diferente, menos convencional, mas com focos no Iraque, na Síria, na Europa. Houve ataques em Londres, Bruxelas, Madrid, Paris…

Escrevi um livro sobre isso, O Islão e o Ocidente. Devemos ter presente que os chamados jihadistas causaram muito mais destruições e mortes em Estados muçulmanos do que nos Estados cristãos. Mataram muito mais paquistaneses, indonésios, médio-orientais, argelinos, etc., do que mataram franceses, ingleses ou mesmo americanos. Nesse aspeto, essa não é propriamente uma guerra do Islão, é uma guerra de uma seita ou de uma ala radical que também ela própria está a tentar subverter a maior parte desses países. Esses movimentos – Estado Islâmico, o ISIS, tudo isso – são movimentos com força, com militância, mas que até hoje não tomaram nenhum país.

Se bem que aproveitaram o vazio de poder na Líbia, por exemplo.

A Líbia atualmente tem uma guerra civil, onde intervêm os russos, o Irão, o Egito, a França, normalmente não com tropas, mas com recursos financeiros, com armas, com algum apoio diplomático. Mas não há propriamente um Estado. Uma das imbecilidades da administração Bush na segunda guerra do Iraque foi exatamente não ter percebido, ou não querer perceber, que o Presidente Saddam Hussein não só não apoiava os terroristas como tinha um medo danado dos americanos…

E pelos vistos era justificado.

Além disso não tinha zelo religioso nenhum, era um estado laico, um dos poucos países islâmicos onde as mulheres estudavam e exerciam cargos públicos. Era mais depressa um opressor da maioria xiita dos seus conterrâneos. Aquela intervenção americana foi um disparate, não serviu para nada. Percebo perfeitamente a intervenção no Afeganistão para punir os atacantes da Al-Qaeda, a partir do momento em que essa punição se efetuou, com a morte de Bin Laden, estavam lá a fazer o quê? A querer introduzir a democracia no que era mais depressa uma confederação de tribos do que um Estado? Como se viu agora, um dos equívocos da administração e das informações americanas foi não perceberem que aquilo é feudal, está fragmentado. Os talibãs negociaram província a província com os chamados senhores da guerra. Estes, vendo que os americanos estavam de saída, quando lhes deram uma oportunidade de uma negociação e de uma saída airosa, aceitaram.

No seu livro fala bastante da Alemanha e da Segunda Guerra Mundial. A União Soviética manifestou sempre um grande orgulho por ter derrotado o nazismo, mas o facto é que no início foram cúmplices. As pessoas muitas vezes esquecem-se do pacto de não-agressão que Estaline e Hitler assinaram.

E antes disso houve uma coisa que é menos falada, mas muito importante. Durante Weimar, quando os alemães, por causa do Tratado de Versalhes, estavam impedidos de ter aviação militar, etc., foi na União Soviética que os militares alemães fizeram os treinos, ainda durante os anos 20. Os acordos Molotov-Ribbentrop funcionaram nos interesses quer da União Soviética quer de Hitler. É evidente que os comunistas procuram sempre negar essas coisas. Hoje existem dois perigos: essa deturpação intencional da História e outra coisa que eu acho que quase é pior, a profunda ignorância das pessoas, inclusive das pessoas que deviam informar os outros. A ignorância tornou-se quase bem vista.

Neste caso também são aspetos incómodos…

E estes partidos de esquerda – e alguns de direita também – têm uma visão maniqueísta. Eles têm a superioridade moral, eles são bons, eles regem-se sempre pelos interesses da Humanidade. Claro que quando acontecem essas coisas ficam um bocado atrapalhados. Não aceitam a tal ideia de que a natureza humana não muda. Eles são sempre fantásticos. E os dirigentes deles são incorruptíveis. Todo esse universo retórico é uma câmara de ocultação.

Um dia destes estava a ler um excerto de The Dictators: Hitler’s Germany and Stalin’s Russia, de Richard Overy, que dizia que tanto Hitler como Estaline se questionaram sobre o que poderia ter acontecido se tivessem juntado forças em vez de se terem confrontado: «’Juntos com os alemães’, diz-se que notou Estaline, ‘teríamos sido invencíveis’. Hitler, em fevereiro de 1945, pesando as opções que poderia ter tomado no passado, assumiu que ‘num espírito de implacável realismo de ambas as partes’ ele e Estaline ‘poderiam ter criado uma situação em que um entendimento teria sido possível’».

Quem estudou muito isso foram alguns historiadores alemães neobismarkianos, anti-hitlerianos, mas conservadores, por exemplo o [Andreas] Hillgruber. Temos de ir à raiz das coisas. A imagem de que o Estaline era um ignorante, um camponês…

Não corresponde à verdade.

Mas quem é que a espalhou? O Trotsky. Que era um comunista chique, e que ainda é hoje o inspirador dessas esquerdas que dizem que nunca tiveram nada a ver com os horrores do comunismo. Estaline, quando é preciso, é de um grande pragmatismo. Ele, que fazia aquelas perseguições às igrejas, quando o Hitler invadiu a União Soviética, percebeu que tinha de apelar para o patriotismo do povo russo. Havia uma coisa que era a ‘Liga dos Sem Deus’, ateus militantes que faziam essas perseguições aos crentes; o Estaline fechou aquilo, mandou fuzilar uma série deles, voltou a dar uma certa liberdade aos popes, restaurou tradições patrióticas. E é a grande guerra patriótica, não é a guerra internacionalista, porque o povo russo, que já tinha resistido ao Napoleão, lutava agora para defender a Rússia. Do comunismo, que os matava a todos à fome ou nos campos de concentração, estavam eles fartos. O Hitler não. O Hitler invade a Rússia sem ter conseguido resolver o problema com Inglaterra, o que, do ponto de vista geopolítico e estratégico, é abrir uma segunda frente sem necessidade nenhuma, por razões ideológicas. Ele está convencido – isso é que eu acho extraordinário – que a União Soviética é governada pelos judeus. Ora, o Estaline tinha liquidado esses judeus nas purgas de 1938, nos processos de Moscovo. O Hitler era muito mais ilógico. O Estaline não. Era mais frio, mais racional.

E depois Hitler tinha um grande desprezo pelos eslavos.

Outro disparate. Vivia muito de clichês. O Hitler é muito curioso. Para subir ao poder é extremamente pragmático – isso vê-se muito na biografia do Joachim Fest. A certa altura até modera o discurso. E os conservadores acham que o têm na mão, acham que o vão controlar. Mas na ascensão ao poder, e na consolidação, ele é maquiavélico, pragmático. Usa a força, usa a persuasão, faz isso magistralmente. Mas na gestão da guerra não, é fanático. E por razões ideológicas faz coisas que prejudicam profundamente os seus interesses e os da Alemanha.

Aí ele parece que se considera ungido e que pode fazer tudo o que lhe apetece.

Mesmo nos discursos vê-se muito isso. Napoleão também tem muito essa retórica. É a retórica deste tipo de líderes populares ou populistas, porque apela às multidões. Vamos ver a retórica de Salazar e é o oposto – é uma coisa fria, racional, invocando princípios… Aliás havia uma graça ótima, quando veio o Marcello Caetano e começou com as Conversas em Família, dizia-se: ‘O outro’ – o Salazar – ‘a gente não percebia o que ele dizia, mas percebia o que ele queria dizer. Este, percebemos tudo o que ele diz, mas não percebemos o que ele quer dizer…’. Este tempo dos anos 20 e 30 é um período de grandes oradores, oradores populares, de praça. Estaline, curiosamente, não é um orador desse tipo. Por exemplo, quando é a invasão alemã, em 1941, ele está dez, doze dias praticamente sem falar. Ele próprio ficou perturbadíssimo, não estava à espera. O [Simon Sebag] Montefiore conta isso, n’A Corte do Czar Vermelho, que há vários soviéticos que informaram dos preparativos…

Até espiões.

E alguns, ele até os mandou fuzilar. Não queria ouvir, não aceitava. Achava que o Hitler era um homem inteligente e não ia invadir porque não tinha nada a ganhar com isso. De certo modo desprezou a evidência. Montar uma operação como a Barbarrossa, que envolveu uns três milhões de homens, é uma coisa que dá nas vistas. Não é a mesma coisa que ir atacar um banco à noite com três tipos mascarados…

Há um episódio muito significativo em que, com as tropas alemãs à porta de Moscovo, há um comboio preparado para evacuar Estaline e a elite soviética. Ele vai para a estação com o Molotov [ministro dos Negócios Estrangeiros], hesita, e no último momento diz ao Molotov: ‘Vá você, eu fico’. E com isso dá um sinal importante de que não abandona a cidade. Foi um momento de viragem para aqueles que já não acreditavam que era possível defender a capital.

A invasão também foi muito atrasada por causa de os italianos terem desencadeado aquela operação nos Balcãs em que levaram dos gregos, e o Hitler teve de ir ajudá-los, mandando umas unidades de blindados que deviam estar a marchar para a Rússia. Isso atrasou à vontade dois meses a invasão. Foram dois meses fatais, porque quando estavam a chegar a Moscovo veio o inverno. Depois há outra coisa muito curiosa. Se os japoneses tivessem nessa altura avançado, grande parte das forças que a União Soviética transferiu do Extremo Oriente não podiam ter sido transferidas porque tinham de ficar a defender esses territórios. Havia um ministro japonês que queria fazer isso, mas não teve seguimento. O Hitler também conduz a guerra sem aliados. Não liga nenhuma aos aliados. Trata-os como satélites. E depois tinha os tais preconceitos raciais. Por exemplo, os alemães podiam ter promovido mais ativamente um levantamento na Índia. Mas o Hitler preferia, no fundo, que a Inglaterra continuasse a mandar, porque eram brancos… O sonho dele era fazer uma aliança com os ingleses, deixar-lhes o resto do mundo, o império, e eles deixavam-lhe o continente. E achava, como o Chamberlain – e tinha razão –, que se a Inglaterra fosse para a guerra, ficava de tal maneira exausta, financeiramente e não só, que o império ia ao ar. Aliás, uma das razões da independência da Índia foi precisamente uma negociação com o Partido do Congresso, para eles colaborarem no esforço de guerra. Colaborem agora lealmente e depois serão recompensados.

Falámos, en passant, na Guerra Fria. Uma questão que me intriga é como os americanos entregam de mão beijada as nossas colónias, que eram territórios afetos a um aliado, para a esfera soviética.

Tem de ver que isso coincide com Watergate. O Nixon está praticamente de partida. São também os anos finais [da Guerra] do Vietname [que termina em 1975]. Os americanos depois fizeram aquilo tudo muito mal, porque um dos aliados naturais deles era a África do Sul. Mas era um país-pária na altura. E repare: tirando o Partido Comunista, que tinha uma certa preocupação em encaminhar as coisas, sobretudo em Angola, o resto das forças políticas não quiseram saber absolutamente para nada do assunto. Os dirigentes do PS, do PSD, do CDS, achavam que o império era uma coisa do Salazar, que tinha ido à vida, e eles não tinham absolutamente nada a ver com aquilo. Mas a situação esteve controlada até muito tarde. Acho que o almirante Rosa Coutinho teve muita culpa na guerra civil. Não sei se premeditadamente, aceitou que cada partido – o MPLA, a UNITA, a FNLA –, levasse para Luanda 500 homens armados para a proteção dos dirigentes, que é um número clarissimamente exagerado, até porque em Luanda as coisas estavam controladas. Nesse tempo não havia guerra nenhuma. E é a partir da chegada desses homens armados, e desses conflitos uns com os outros, que começa a haver aquelas desordens e aqueles combates que levam a população civil branca a fugir para a então Metrópole. Também é interessante ver que o império português vivia muito da legalidade. O caso mais impressionante para mim é o do Afonso de Albuquerque. Quando o D. Manuel o manda regressar, injustamente, tomando o partido do Lopo Soares de Albergaria, o Albuquerque – um homem cheio de força, de prestígio – obedece. E tem aquela famosa frase: ‘Mal com os homens por amor de El-Rei, mal com El-Rei por amor dos homens. O melhor é acabar’. E morre à vista de Goa em 16 de Dezembro, nas vésperas do Natal de 1515. O desabar do império tem a ver também com o desabar da autoridade e a confusão da autoridade em Lisboa. Por exemplo, o general Silva Cardoso dizia que Lisboa não dava instruções nenhumas.

Isso em que altura?

Em 75. Naqueles meses que vão dos acordos de Alvor [janeiro de 1975, entre o Governo português e o MPLA, a UNITA e a FNLA, para a partilha do poder em Angola] até à independência.

As coisas ficaram em autogestão… 

Não tinham instruções, foram aguentando. Mas isso levou à saída em massa da população de origem portuguesa.

Falámos em conflitos entre nações, nomeadamente entre as duas maiores potências – a China e os EUA. Parece-me que, paralelamente a esse, há outro braço-de-ferro a decorrer: nas universidades, nas redes sociais, nos jornais, nas mentalidades.

Claro.

Podia dar muitos exemplos desse debate. O mais recente, talvez, foi a queima de livros do Tintin, do Asterix, etc., em escolas do Canadá. Concorda que se está a travar um duelo pelo controlo do pensamento?

Isso é muito curioso na origem. Dos puritanos, uns ficaram em Inglaterra e cortaram a cabeça ao Rei [Carlos I] na Revolução Inglesa, em meados do século XVII. Outros foram para os Estados Unidos também para fugir ao poder, mas tornaram-se eles próprios perseguidores. São esses mesmos puritanos que fazem os julgamentos das bruxas, que é um fenómeno que percorre a Europa. Os problemas com a bruxaria já existiam na Idade Média, mas a grande intensificação da caça às bruxas aparece com a Reforma. Como o inimigo n.º1 do Cristianismo era o Demónio, católicos e protestantes procuram rivalizar na radicalidade do combate ao Demónio.

A ver quem era mais zeloso, por assim dizer.

O grande sítio da perseguição às bruxas é a Alemanha. Há um período muito intenso, que começa cerca de 1550 e vai até 1700, em que foram julgadas umas 80 mil pessoas acusadas de bruxaria, e mais de metade foi enforcada ou queimada. A Igreja Católica claro que também tem os seus males – é feita por pessoas – mas é de certo modo uma Igreja para pecadores. Os sacerdotes até podem ser muito piores que nós, a gente acredita que têm o poder de perdoar os pecados. Os puritanos, um bocadinho como os comunistas e todas as ideologias mais radicais, têm a tal ideia de modificar a natureza humana – ou então puni-la. Acho que o que acontece hoje em dia é que essa mentalidade puritana, maniqueísta, passou muito para estes movimentos de nova esquerda, ou Woke, desde a revisão histórica até estas preocupações da linguagem, de dizer ‘todas, todos e todes’ – coisas até caricatas, mas parece que o sentido de humor também começa a ser perseguido. Lá está, os inquisidores também não tinham muito sentido de humor… Tudo isso se radicalizou e, embora sejam minorias, a certa altura a gente tem uma espécie de censura, porque as pessoas, receosas de serem vetadas, ignoradas, sobretudo as que estão na política, começam a inibir-se de dizer certas coisas.

Mas não é o seu caso…

Graças a Deus, não. [risos] Mas é o caso de muita gente.

E depois sente as consequências disso, de dizer sempre o que pensa?

Não. Ando na rua, por todo o lado, sozinho, tive mais vezes pessoas que me vinham falar simpaticamente do que o contrário. Aconteceram dois casos… mas acho que tratei esses dois casos da devida maneira.

Disseram-lhe o quê?

Uma coisa desagradável. Mas aquilo que eu lhes respondi foi mais desagradável. Mas ainda quando foi por exemplo a história…

Da Universidade? [quando uma palestra sua foi cancelada devido a ameaças]

Aí toda a gente me telefonou, toda a gente estava do meu lado. Até foi demais… [risos] Ia falar de quando fiz a defesa do Salazar, no programa Grandes Portugueses. Tive ‘n’ pessoas que me vieram dizer o seguinte: ‘Eu não gosto do Salazar, nunca gostei do Salazar. Mas gostei da maneira como você o defendeu’. Nunca senti qualquer animosidade. Até tive um programa na rádio com o Ruben de Carvalho [historiador, deputado e vereador do PCP]. Não pensávamos da mesma maneira, mas conseguíamos falar. E sobretudo tínhamos uma coisa que acho importante, mas que está muito deteriorada. Eu dizia-lhe, meio a brincar, meio a sério: ‘Se houver um dia uma guerra civil, espero que você me dê um tiro e eu vou ver se lhe consigo acertar. Mas enquanto não há, gosto de conversar consigo’. Foi essa a ideia do programa e diga-se que o partido dele – ele dizia ‘a minha Filarmónica’ – o deixou aceitar. Civilização não é dizermos todos as mesmas coisas, é dizer coisas diferentes, e pensar coisas diferentes, até em questões fundamentais, e não andarmos às bofetadas até isso ser necessário. Isso é que é civilização.