Saúde com o maior orçamento e debaixo de fogo

Governo não antecipa detalhes do plano para retomar contratos de exclusividade no SNS, que será aprovado na próxima semana em Conseho de Ministros. Para já será só para alguns médicos, revelou a ministra da Saúde. No verão, estava a ser estudada para fixar médicos de família nos concursos de 2022. 

O reforço é de 703 milhões de euros no Orçamento do Estado para a Saúde, 796 milhões diretamente para o Serviço Nacional de Saúde), o que mais uma vez garante ao SNS o maior orçamento de sempre. Mas o setor posto à prova com a resposta à covid-19 e a lidar com subidas anuais de despesa espera há anos reformas mais profundas e vive uma turbulência que promete tornar-se histórica, ao mesmo tempo que os partidos à esquerda prometem não ceder nos seus cadernos de encargos para blindar o SNS do peso e concorrência crescente do setor privado. Na semana em que a proposta do OE deu entrada no Parlamento, não houve palmas mesmo com muitos pontos de ordem inscritos no documento, da motivação dos profissionais a um aumento do investimento (+75% face a este ano) e até o compromisso de soluções para a questão dos problemas do foro social que sobrecarregam os serviços de saúde ou recurso frequente às urgências de doentes que podem ter uma resposta planeada de outra forma.

Quatro greves marcadas para a pior altura do ano 

Os sete sindicatos dos enfermeiros uniram-se pela primeira vez para dois dias de greve em novembro e os sindicatos médicos, que não faziam uma greve conjunta desde 2012, convocaram três dias de paralisação para o final de novembro. Os farmacêuticos, que há 20 anos não faziam greve, marcaram seis dias para o fim de novembro, a que se soma greve dos técnicos de emergência pré-hospitalar, que prometem parar no dia 22 com uma manifestação em Lisboa. Tudo numa altura em que os serviços, muitos a acusar dificuldades em contratação e a anteverem um novo pico de pressão neste outono/inverno, vão dando sinais de fragilidade.

Na proposta do OE, o Governo coloca ênfase na motivação dos profissionais, mas as medidas ficaram aquém das expectativas no setor: por um lado, a autonomia para contratações, há muito reclamada pelos administradores hospitalares, é só para substituições. Por outro, em termos de valorização das carreiras, os pontos fechados prendem-se sobretudo com o trabalho médico, em moldes que os sindicatos consideram um «logro», incluindo o aumento do recurso a médicos reformados ou até estrangeiros e de vagas carenciadas, que historicamente têm um problema: quem entra nelas, e nem sempre são ocupadas, fica a ganhar mais do que os colegas que trabalham no mesmo serviço. E em serviços mais periféricos e depauperados, nem a majoração de 40% chega para atrair médicos das especialidades mais desfalcadas, como disse esta semana o administrador do Centro Hospitalar do Setúbal, Manuel Roque Santos, ouvido no Parlamento. 

Uma das medidas polémicas no OE no que toca aos médicos prende-se com a intenção de, com vista a substituir o recurso a tarefeiros nas urgências (que no ano passado custaram 130 milhões de euros aos hospitais), aumentar o pagamento das horas extra aos médicos da casa, mas apenas a partir da 250.ª e da 500.ª hora. Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do SIM, considera a medida uma «alucinação», por implicar que os médicos continuem a fazer mais de 150 horas extra, «quando os limites anuais ao trabalho suplementar está fixado pelo Código do Trabalho e pelos Acordos Colectivos de Trabalho em 150 horas anuais, de modo a serem salvaguardadas a saúde de profissionais e doentes».

Noel Carrilho, da Federação Nacional dos Médicos, endurece também a crítica: «Não se pode interpretar como séria a proposta [de aumentar o pagamento das horas extra a partir da 250.ª hora e 500.ª hora]. Das duas uma, ou não é para ser levada a sério, ou é uma verdadeira tentativa de logro. Logro não aos médicos, que percebem o que está em causa, mas para os portugueses, que com este tipo de anúncios ficam com noção de que vai haver alguma melhoria no SNS», disse ao i esta semana o dirigente sindical. 

Dedicação plena para novos médicos de família

Na proposta de OE, o Governo inscreveu o compromisso de regulamentar a dedicação plena em 2022, com a revisão do estatuto do SNS. Sendo uma reivindicação dos partidos à esquerda, pendente desde que em 2019 foi aprovada a Lei de Bases da Saúde, bandeira de BE e PCP, ao longo da semana houve a garantia de que havia condições para a concretizar, até que o primeiro-ministro anunciou esta quinta-feira que esse passo será dado já na próxima semana, com a aprovação do novo estatuto ainda antes de ser aprovado o OE onde a medida foi pela primeira vez referida.

O gabinete da ministra da Saúde, questionado pelo Nascer do SOL, não deu respostas sobre o que está previsto, mas Marta Temido começou a desvendar o plano na apresentação do OE 22 aos militantes do PS, numa reunião que decorreu no Ateneu Comercial do Porto. A nova versão da exclusividade destina-se a todas as profissões do SNS mas vai avançar primeiro e para já com apenas «uma parte» dos médicos e «não se fará numa legislatura», avisou Marta Temido, explicando também os atrasos na implementação da medida inscrita no Programa do Governo. «É certo que em 2021, o OE já referia a dedicação plena, mas a terceira vaga da pandemia veio afastar qualquer possibilidade que tenhamos tido de pensar em soluções mais estruturais […]. Estamos em condições de apresentar um estatuto de SNS que defina em regras gerais aquilo que venha a ser um regime de dedicação plena para todos os profissionais de saúde», disse, sublinhando que não se pode confundir dedicação plena com dedicação exclusiva.

Agora o Governo pretende, mais do que obrigar os profissionais a trabalhar apenas no SNS recebendo mais (quanto ainda não se sabe), premiar o seu desempenho – o que até aqui só acontece com as equipas das Unidades de Saúde Familiar do tipo B e centros de responsabilidade integrada. Em julho, numa entrevista ao Nascer do SOL, Marta Temido já tinha revelado que o dossiê estava a ser estudado, admitindo na altura um faseamento da medida. «Naturalmente não será nem aceite por todos nem para todos, nem é do interesse de uns nem de outros», disse. 

Questionada sobre se seria só para os médicos de família, área em que o Governo não tem conseguido cumprir o objetivo de atribuir médico a todos os portugueses, com os concursos para recém-especialistas a ficarem sistematicamente com vagas por preencher, a ministra da Saúde deixava essa porta em aberto: «É uma possibilidade face à circunstância que temos em cima da mesa com a dificuldade de conseguir uma equipa de saúde familiar para todos». 

Se será só para os concursos de recém-especialistas em medicina geral e familiar ou para recém-especialistas hospitalares de áreas mais carenciadas, numa altura em que o Governo quer alargar as vagas com bónus de salário para centros de saúde e hospitais mais desfalcados, é o que se verá na próxima semana. Do lado dos sindicatos, que querem negociar todas as condições, há dois pontos de ordem: não querem que seja obrigatória e pretendem que seja para todos, a par com uma revisão das condições remuneratórias e progressão na carreira, como reivindicam também os enfermeiros. 

Este ano, até agosto, o SNS registava um défice de -167,4 milhões de euros. A despesa aumentou 9,7%, mais do que as receitas. Um ciclo que, apesar de desde 2015 haver um reforço financeiro superior a 3 mil milhões de euros, o SNS ainda não conseguiu inverter, com pressão para aumentar a atividade nas várias frentes depois de a pandemia ter feito recuar os indicadores face a 2019, que tinha sido o ano com mais consultas e operações de sempre, mas ainda com tempos de espera excessivos para muitos doentes. Este ano, no final do primeiro trimestre, havia mais de 52 mil doentes a aguardar operação há mais de um ano, esperas que o Governo tinha traçado como meta a eliminar em 2019.