OE 2022: de novo, uma oportunidade perdida

Este concerto orçamental tem em António Costa um maestro reforçado com a batuta da ‘bazuca’, como se fosse uma patente privativa

Por António Bagão Félix
Gestor, ex-ministro das Finanças

1.Estamos na semana da ‘liturgia orçamental’. O Governo tece as costumeiras litanias proclamatórias. As oposições tentam baralhar ou ficar baralhadas. Entretanto, o Governo deu-se ao luxo de desrespeitar as leis do país, gerindo dois OE (os de 2020 e 21) sem aprovar os respectivos decretos de execução orçamental. Uma omissão inadmissível, um silêncio mediático inexplicável (ai se fosse à direita?!) e a ausência sancionatória dos órgãos constitucionais próprios.
O OE 22 é mais uma proposta de um Governo (minoritário), que, à partida, se auto-impôs a dialogar tão-só à sua esquerda. Consequentemente, assistiremos, de novo, à lógica redutora e esfrangalhadamente ideológica de ‘negociação de retalho e de minudências’, em prejuízo de uma visão global, coerente e estratégica de política orçamental. O PCP, o BE, e seus derivativos, em concorrência patética, formulam as habituais e compulsivas exigências, todas elas com aumento da despesa ou com lirismos tributários. Até à votação, assistiremos a repetidas encenações, que lhes permitam dizer uma coisa num dia (viabilizar o OE) e o seu contrário noutro dia (serem contra o OE). Este concerto orçamental tem em António Costa um maestro reforçado com a batuta da ‘bazuca’, como se fosse uma patente privativa. E não é difícil prever que, durante o decurso parlamentar, o maestro distribua generosamente umas migalhas, para ver quem cede, em jeito de ‘ora agora aprovas tu, ora agora aprovo eu’.

2.O Relatório do OE 22 é um documento bem elaborado. Mas, como é norma, às vezes, mais importante do que lá está, é o que é omitido, ou o que está escondido em rodapés manhosos. 
Segundo o quadro macroeconómico apresentado, no final de 2022, o PIB voltará para níveis de 2019. Do mal o menos. Mas, importa ter em atenção que o nosso crescimento durante este século é absolutamente anémico: desde o seu início até 2021 (incl.) estamos a crescer, em termos reais, a uma média anual de 0,7% ao ano e, na última década, de apenas 0,3% também em média anual. Só este retrato bastaria para nos questionarmos sobre o modelo orçamental que tem sido predominante. Mas não, tudo se mantém em alegre palavreado e as mudanças são para que, no fim, fique tudo na mesma.

3.Estamos a sair de um período de grave crise sanitária, e a entrar no primeiro ano de um curto período de 5 anos, com a enxurrada dos fundos do PRR, que o primeiro-ministro resumiu, significativamente, com a frase-pedincha «quando posso ir ao banco?».
As questões-chave que ora se colocam são, fundamentalmente, duas:
– Que compromisso entre a consolidação imperativa das contas públicas (e redução do garrote do endividamento) e a necessidade de estimular a retoma económica?
– Que compromisso entre a criação de riqueza (e aumento da produtividade) e a sua distribuição por via do Estado Social?
Quando há recessão, quem paga os efeitos negativos dos estabilizadores automáticos (menos receita fiscal e mais despesa social) são as famílias e as empresas. Mas quando se volta a crescer, é o Estado glutão a apropriar-se integralmente, por via dos citados estabilizadores automáticos, da receita acrescida, não a repartindo com ganhos para as famílias e empresas. 

4.O défice previsto para 2022 traduz uma redução de 4,4% para 3,2% do PIB. Mas, tendo em conta o actual valor bruto da dívida pública de 272,9 mil milhões (que diminuirá em termos relativos face ao PIB nominal, porque este vai aumentar, mas aumentará em termos nominais) talvez se devesse reduzir ainda mais o défice em 2022. Aliás, o Governador do Banco de Portugal tem avisado que «retirando todos os efeitos das medidas covid, one-off e tudo o que é financiado por fundos europeus, o rácio da despesa primária corrente no PIB é 1,8 pontos percentuais superior ao de 2019» (cerca de 4 000 milhões). E não nos esqueçamos que se aproxima, talvez mais rapidamente do que se julgava, a alteração da política do BCE de juros negativos ou nulos, o que, poderá implicar, a breve trecho o aumento do custo da dívida pública a emitir. 

5.Analisando apenas algumas medidas, começaria por salientar, como positivas, as que se referem aos apoios às famílias com mais de um filho ou em situação de pobreza extrema, bem como o alargamento do chamado IRS jovem, ainda que aqui haja o risco de, repercutido para trás, diminuir o valor de contratação dos jovens qualificados.

Quanto ao IRS, é injustificada e até inconveniente a proliferação de escalões (de 7 para 9, ou melhor de 9 para 11, se considerarmos duas taxas adicionais, que foram apresentadas como transitórias, mas que, como habitualmente, ficam para a eternidade tributária). A progressividade fiscal não é necessariamente função do aumento do número de escalões. O seu excesso tem como contrapartida desestimular o ‘elevador social’ e punir a meritocracia laboral, penalizando mais imediatamente quem sobe no percurso profissional. O que está previsto é quase um exercício de ilusionismo para conciliar uma ligeira descida de duas taxas marginais do IRS com o agravamento fiscal de alguns rendimentos por força da alteração de limites dos escalões. As poupanças para os contribuintes são manifestamente insignificantes, na maioria inferiores a 100 euros por ano. Esta micro poupança é, aliás, rapidamente absorvida pela não actualização dos limites dos escalões em função da taxa de inflação (já de si claramente subestimada pelos critérios vigentes aqui e na Europa), pela maior incidência de impostos indirectos (em especial, do imposto sobre combustíveis), pelas taxas inventadas à esquina do consumo (p.ex., duplicação da taxa sobre operadores de TV por subscrição), e, no caso da função pública, pela redução de benefícios por parte da ADSE. 

Enfim, apresentada e digerida pelos media como a «reforma mais significativa do OE22» (!!!), não passa de uma pífia e ardilosa intenção, que só vem introduzir mais incoerência interna no IRS. O Governo dá umas migalhas com uma mão e tira-as com a outra. Em suma, nada que se possa aproximar de uma reforma com pés e cabeça, ainda que necessariamente gradualista, e que rompa com a qualificação de pessoas e famílias de rendimentos muito medianos como sujeitos ‘fiscalmente ricos’. Com estas maiorias forjadas e forçadas à esquerda, o que é que se poderia esperar? 

Quanto ao englobamento de rendimentos sujeitos à taxa liberatório de 28%, vá lá, o Governo não foi na cantiga esquerdista que, se aplicado às rendas e aos juros, traria consequências nefastas para a economia. Limitou-se a englobar as mais-valias de títulos detidos por menos de um ano, o que se afigura defensável. 
Por fim, sobre poupança, nada. Um assunto que não dá votos e por isso é ignorado olimpicamente.

6. A previsão de receita fiscal e de contribuições sociais para 2022 é de 77,5 mil milhões, o que, se comparada com a de 2019 (pré-pandemia), aumenta 3,9 mil milhões de euros (+ 5,3%). 

Este aumento da receita fiscal é ainda mais insólito, na medida em que é suportado fundamentalmente pelo IRS (mais 1,541 milhões, ou seja mais 11,7% do que em – repito – 2019). Por outro lado, os impostos indirectos (que não diferenciam pobres e ricos) representam uma fatia sempre maior do total de impostos: 56%. Impressionante é também a evolução da percentagem do IRS no valor global fiscal: em 2019, foi de 28,6%, em 2022 será de 31,6%! Vindo de um Governo que se diz de esquerda, é obra! Com o silêncio envergonhado do BE e do PCP, que fingem não perceber. 

7.Quanto à despesa corrente, limito-me a assinalar as consequências sucessivas e danosas da descida das horas de trabalho no Estado (de 40 para 35 horas, menos12,5%). Segundo a Pordata, em 2016, os funcionários totalizavam 659 mil. Agora já chegaram aos 730 mil, ou seja mais 10,8%! Não admira que, no OE 22, as despesas de pessoal sejam superiores em 2,635 mil milhões (+11,4%) face à pré-pandemia de 2019). Com uma óbvia consequência: com mais emprego público, manter o mesmo nível de despesa com pessoal, só com enorme restrição do factor preço (nível de vencimentos).

É a expressão mais clara da rotunda do despesismo socialista, rigidificando cada vez mais os futuros OE. 
Recordo a condição do Presidente da República (PR) quando, em 2016, promulgou a lei da reposição das 35 horas: «… a de saber se esta reversão vai ou não aumentar a despesa pública, num contexto em que tal é negativo e mesmo arriscado». Onde pára esta garantia? O que tem o Governo a dizer ao