Um Nobel para o jornalismo-coragem

O Nobel da Paz atribuído aos jornalistas, Maria Ressa e Dmitry Muratov, premiou uma incansável e corajosa luta pela liberdade de expressão nos seus países, com risco da própria vida

O jornalismo está de parabéns. O Nobel da Paz atribuído a dois jornalistas, Maria Ressa e Dmitry Muratov, uma filipina e um russo, premiou uma incansável e corajosa luta pela liberdade de expressão nos seus países, com risco da própria vida. São um exemplo.

Foi necessário passar quase um século para um Nobel da Paz caber novamente a jornalistas, que pugnam pela sobrevivência do jornalismo sério e independente, contra a asfixia de sistemas que não toleram a liberdade. 

Não é pouco e não acontecia desde 1935 (se excetuarmos o Nobel atribuído em 2011 a uma ativista iemenita, que trabalhou também, como jornalista), quando Carl von Ossietzky, um jornalista opositor e crítico do nazismo, foi também distinguido pelo Comité do Nobel pela denúncia dos preparativos secretos do militarismo alemão, e pela sua obstinada luta contra os extremismos, de direita ou de esquerda. Morreu três anos depois, sem ter recebido o Prémio, proibido de ir a Oslo. 

Talvez por isso, a presidente do Comité Norueguês do Nobel, Berit Reiss-Andersen, aproveitou para salientar que os laureados «são representantes de todos os jornalistas que defendem este ideal num mundo em que a democracia e a liberdade de imprensa enfrentam condições cada vez mais adversas».

Tem razão. Tanto o comunismo como o nazismo nunca foram compatíveis com a liberdade. E continua a ser assim, onde o comunismo ainda resiste entrincheirado, ou onde se instalaram regimes mascarados de democracia. 

Subitamente, o jornalismo ganhou direito de cidadania e conseguiu, até, que o secretário geral da ONU, António Guterres, ficasse preocupado com a liberdade de expressão e de imprensa, tão maltratada neste planeta, povoado de muitos ditadores que a desprezam.

São factos. E Guterres sublinhou-os ao lembrar o «discurso anti-comunicação social», que tem vindo a agravar-se, através de «atos de violência e de assédio crescentes contra os jornalistas, pessoalmente e na internet».

Obcecado com o clima, talvez a sua principal bandeira, oxalá o secretário geral da ONU consagre, doravante, um olhar mais atento sobre o desespero de tantos jornalistas, abandonados à sua sorte, para que não pareça apenas uma falácia dizer que «nenhuma sociedade pode ser livre e justa sem jornalistas capazes de investigar infrações, informar os cidadãos, pedir contas aos dirigentes»,

Por conhecer de perto as perseguições e as ameaças, Muratov dedicou o Nobel a todos os resistentes, como Alexei Navalny, num gesto solidário, perante um regime autoritário que não hesita nos meios para silenciar os seus opositores. 

É o caso, ainda, de Maria Ressa, cuja cruzada através da palavra escrita tem posto em xeque os abusos e as arbitrariedades do regime filipino. 

Este prémio ao jornalismo-coragem não encontrou, contudo, o eco que seria desejável em Portugal. Mas já é um ‘conforto de alma’ que Marcelo Rebelo de Sousa, ele próprio antigo jornalista, tenha lembrado que «ma comunicação social fraca… significa uma sociedade civil fraca e uma democracia fraca. Isso é um risco acrescido neste tempo de radicalismos, […]».

É um diagnóstico oportuno e realista quando o jornalismo por cá não vive os seus melhores dias, cada vez mais apático, dependente e politicamente comprometido.

O governo aprendeu a lição de Sócrates e desistiu de controlar os media às claras, através de ‘testas de ferro’, que se ocupavam do trabalho sujo.

A pouco e pouco, os media, com poucas exceções, foram sabiamente ‘domesticados’ e caíram na esfera de influência socialista.

É provável que tenha sido mais fácil do que esperavam. Nos órgãos do setor público, colocaram-se ‘apparatchiks’ zeladores da conformidade da política editorial com os interesses governamentais. E, em boa parte dos media privados, ‘plantaram-se’ obediências, com o coração a bater à esquerda.

O resultado enfraqueceu a credibilidade da informação e acentuou o declínio da circulação da imprensa, que se tornou residual ou numa sombra do que já foram as tiragens dos principais títulos. Nada que tire o sono ao poder político.

Após meio século em ditadura, Portugal está prestes a completar um ciclo idêntico em democracia, apesar dos solavancos e do sufoco, capazes de contaminar a paisagem mediática. 

O governo socialista é habilidoso e tem sabido instrumentalizar a sociedade a seu favor, com a oposição em parte incerta. E pouco lhe escapa para alimentar «um apetite insaciável», como assinalava António Barreto.
Oxalá que este Nobel da Paz, partilhado por dois jornalistas, sirva como barreira ao avanço dos autocratas, e de travão a novas tentações totalitárias.

As redações precisam de respirar jornalismo, e de investigar sem medos nem subserviências diante dos poderes instalados. Por aqui, o pântano de que fugiu Guterres, afinal, não mudou de sítio…